Primeiro queria que te apresentasses, me dissesses só o ano de nascimento, ahhh. . . nacionalidade, escolaridade, ahhh. . . e depois o mesmo para o teus pais.
O mesmo?
. . . para os teus pais.
Ah! Ok! Agora deixa-me ver se eu me lembro de tudo. Ahhh, nasci em 1983, sou são-tomense, ahhh, tenho. . . neste momento sou mestranda em Linguística, sou licenciada em Linguística, sou pós-graduada em Educação Especial e sou mestranda em Linguística também. E perguntaste-me a nacionalidade dos meus pais?
Humhum.
Os meus pais são são-tomenses também.
Humhum, humhum. E a escolaridade também. . .
A escolaridade dos meus pais. . . O meu pai tem o 12º ano e a minha mãe tem o 6º ano, penso eu.
E as profissões?
Ahhh, neste momento estão os dois a trabalhar em Angola. O meu pai tem uma farmácia, portanto, é empresário e a minha mãe trabalha no negócio do meu irmão. Portanto, é gestora de uma loja.
E o que é tu fazes neste momento?
Neste momento, faço muita coisa! [risos ] Sou bolseira de investigação num projecto sobre Linguística, sobre as línguas crioulas, ahhh. . . sou apresentadora num programa de televisão, num webcanal chamado SPTV e que mais? O que é que eu faço mais? Basicamente o meu trabalho a nível profissional é esse, para além de outras pequenas coisas que vou fazendo como traduções, correcções de provas, correcções de texto e etc.
Humhum. Tens irmãos?
Tenho 3 irmãos.
Idades?
Ahhh, a primeira tem 35, o segundo tem 33, o terceiro fez ontem 32.
E podes-me dizer também as profissões?
Ahhh, sim! O meu irmão é empresário em Angola, tem alguns negócios. . . tem uma empresa ligada às comunicações, tem uma oficina. . . a minha irmã trabalha com o meu irmão, são sócios, têm. . . os dois trabalham na oficina, a minha irmã é gestora da oficina e o meu terceiro irmão é fuzileiro, oficial da marinha portuguesa. [Riso ] É! Engraçado!
Apresentações feitas, agora vamos começar com o teu percurso escolar. Onde é que foi? Como é que viste esse percurso? Tiveste alguma reprovação?
Ok! O meu percurso escolar. Comecei. . . Estudei sempre aqui em Portugal. Vim para cá desde um ano de idade. . . muito cedo! Comecei por estudar. . . no meu caso fui viver para uma aldeia pequena na zona de Torres Vedras, portanto comecei lá os meus estudos até à 4ª classe. . . ahhh, percurso normalíssimo; continuei na Malveira até ao 7º ano, até ao 9º ano, portanto também ali nos arredores; depois fui para Torres Vedras até ao 12º ano. . . ahhh, reprovei no primeiro ano (10ª ano), fui para a área de desporto. . . ahhh, depois continuei o percurso até ao 12º ano, terminei o 12º à noite, faltava-me fazer a terrível matemática e fiz à noite. E então, era para fazer desporto e entretanto por causa das matemáticas e da natação e etc. desisti do desporto e decidi vir também para uma das áreas que eu gostava muito que era relacionado com a língua portuguesa e acabei por entrar no curso de linguística.
E durante esse percurso o que é que achaste das instituições em que estiveste e dos professores?
Estranhamente eu acho que o ensino público está muito bem preparado. Depende sempre, claro, dos professores que tu apanhas e das áreas específicas. . . ahhh, mas sempre tive, ehhh. . . boa opinião em relação aos institutos públicos. Em todos os que passei não tenho muitas razões de queixa, principalmente a nível do pessoal. A educação era outra também naquele tempo: nós respeitávamos muito mais tanto os professores como os funcionários. Ahhh, nunca tive problemas! Nunca tive problemas porque também sempre fui uma miúda assim. . . apesar de ser um bocadinho maria-rapaz, mas era assim muito. . . os meus pais ensinaram-me a ser muito respeitadora e então sempre respeitei a autoridade e os mais velhos. Os professores, ahhh, sempre tive excelentes professores excepto (talvez por uma área que eu não gosto tanto). . . excepto na área da matemática. Acho que os professores de matemática não estão preparados para ensinar. Podem saber muito, mas não estão preparados. E tive principalmente dificuldades no secundário, ahhh, com os professores de matemática que a maior parte, naquele estabelecimento de ensino, naquela escola, eram engenheiros civis. E o que é que acontece? Eram muito bons nas áreas em que exerciam, mas não tinham preparação para ensinar, portanto, não tinham a parte da pedagogia então não sabiam transmitir os conhecimentos e foi sempre isso que eu senti e por isso nunca consegui me dar muito bem com a matemática. Sempre fui fazendo de 2 anos em 2 anos a matemática porque nunca consegui. Os restantes: português, sempre gostei imenso de português portanto nunca tive grandes dificuldades. . . ahhh, e acho que os professores também, principalmente no secundário ajudavam imenso e sabiam muito e acima de tudo gostavam daquilo que faziam portanto era muito mais fácil transmitir. Portanto, foi isto. . . um bocadinho isto. Acho que a escola pública está preparada, agora depende dos professores que tu apanhas.
E que tipo de aluna é que eras?
Que tipo de aluna?! Por incrível que pareça há quem veja agora que estou no mestrado: “Ah! E tal. . . eu acho que deves gostar muito de estudar. . .” Não! Nunca gostei muito de estudar. Ahhh, mas sempre fui um bocadinho preguiçosa e até hoje sou muito, um bocadinho preguiçosa para estudar mas, ahhh, mas sempre tentei cumprir os meus objectivos. Nem que fosse o objectivo mínimo! Se tinha que ter positiva, estudava para a positiva. Mas nunca fui de me preparar muito tempo antes e todo o meu percurso escolar foi assim. Só quando sabia que ia ter testes é que estudava. Sempre foi um bocadinho assim. Sempre fui muito preguiçosa, mas, humm, sempre. . . mas nunca gostei de ser, ahhh, de ter as piores notas. . . não gostei. Estava sempre. . . Não precisava de ter grandes notas, mas precisava de. . . se desse para passar confortavelmente para mim já era suficientemente bom. Ahhh, ao longo de todo o meu percurso houve uma altura, que foi no ano em que eu também reprovei, que foi um ano em que houve muitas mudanças. . . ahhh, é que eu perdi-me um bocadinho no sentido que gostava daquilo que fazia, do desporto, imenso, mas não gostava de todas as outras disciplinas. . . ahhh, e então foi aí que os meus pais e graças aos pais que tenho, eles disseram: “Ok, não queres estudar, tudo bem! Mas já sabes, se não estudares, se não te. . . (era a tal coisa), se não tiveres um curso, se não fores mais além, já sabes os trabalhos que te esperam! Portanto, ou vais para empregada de limpeza ou vais trabalhar no campo. . . tu sabes! Se não quiseres estudar não estudas! Se quiseres estudar, nós apoiamos! Se não quiseres estudar, tudo bem! Mas sabes que não vais passar dali”. E então foi isso que me fez. . . e porque também sempre nos incentivaram nas férias a ganharmos o nosso dinheiro. Queríamos comprar as nossas roupas e tal, então nas férias lá nas aldeias nós tínhamos o trabalho de campo: ir apanhar batatas, apanhar morangos, apanhar fruta. . . íamos para a vindima para ganharmos o nosso dinheiro para conseguirmos comprar as nossas roupas e etc. E os nossos pais sempre incentivaram. E também, hoje eu consigo ver, que eles nos incentivaram para quê? Para nós percebermos o tipo de trabalho que se faz quando não se tem um curso superior, quando não se estuda. E então aí nós percebemos: “Ok, isto de férias até é engraçado. Fazer isto um mês, dois meses até é engraçado. Agora fazer isto o resto da minha vida, ahhh, não é isto que eu quero para mim!” Portanto, trabalhar de sol a sol, trabalhos muito duros, ahhh, a nível de trabalhos que exigem mesmo força e corpo e etc. . .. então nós percebemos: “Ok, se calhar é melhor estudar e ter um curso do que nos sujeitarmos a estes trabalhos!” Então foi aí que eu comecei a perceber: então tenho um objectivo; o meu objectivo é terminar a faculdade, ahhh, é fazer faculdade e a partir daí, se eu não conseguir ter um melhor emprego, aí a culpa já não é minha, já vai ser do país que não está preparado para a minha preparação. E aí eu já não serei culpada porque tentei chegar ao máximo e tentei ter uma vida melhor. E foi isso que eu fiz! Portanto, a partir daí tive. . . foi a partir do 10º ano a primeira vez que chumbei que percebi que para realmente ir mais além tinha mesmo que estudar. Por muito que não gostasse, tinha mesmo que estudar. E foi isso que eu fiz! Nem que fossem as notas mínimas mas consegui terminar os meus estudos e por incrível que pareça agora até estou a fazer o mestrado e já não sei onde é que vou parar com os estudos, mas continuo.
Então dirias que quem te influenciou mais para os estudos foram os teus pais?
Sim, sem dúvida! Sem dúvida!
Os dois?
Os dois, os dois, sempre! Tanto o meu pai como a minha mãe sempre foram. . . tiveram um papel fundamental tanto para mim como para os meus irmãos e também o exemplo dos meus irnãos. Os três. . . dos quatro, só um deles é que não é formado, mesmo assim teve frequência universitária. . . ahhh, e pronto, mesmo a minha primeira irmã que formou-se na altura estudou numa universidade privada porque não entrou na pública, ahhh, formou-se. O meu segundo irmão também teve frequência universitária e o meu terceiro irmão, entramos ao mesmo tempo na faculdade e terminamos ao mesmo tempo. Portanto, sempre foi um incentivo de toda a família.
E achas que o teu percurso foi de alguma forma planeado?
Sem dúvida que foi! Eu sou muito metódica. É a tal coisa, como disse há pouco, a partir do 10º ano eu estabeleci um objectivo: queria terminar a faculdade. Tanto que quando entrei na faculdade, eu acho que também sou um bocadinho precoce, talvez por andar sempre com as minhas irmãs e primas que sempre foram mais velhas do que eu, era. . . ahhh, não tinha muita paciência para os meninos da minha idade, então estabeleci um objectivo que era entrar para a faculdade e terminar nos quatro anos. Na minha altura ainda eram os quatro anos de licenciatura. Então, assim que eu entrei na faculdade eu disse: “Não, não me vou distrair com praxes e com cafés com os amigos e não sei quê. Não, o meu objectivo é estudar e vou estudar e vou terminar em quatro anos. E foi isso que eu fiz! Custasse o que custasse, eu tinha que fazer nos quatro anos! É claro que tinha umas notas melhores e outras piores, mas fiz o curso em quatro anos sem nunca ter perdido nenhum ano. Portanto foi tudo planeado e graças a Deus correu tudo bem! risos
Agora a parte profissional. Ahhh, como que idade é que começaste a trabalhar e em que circunstâncias?
Idade com que eu comecei a trabalhar?! Portanto, como disse há pouco, aqueles pequenos trabalhos comecei por volta dos 15 anos, talvez. A ir trabalhar durante as férias, a ir apanhar fruta, ahhh, que não era. . . era trabalho, claro, ganhávamos dinheiro, mas nós víamos mais como diversão porque íamos todos juntos e não sei quê. A partir dessa idade comecei a ir trabalhar nos empregos, trabalhos sazonais. A partir. . . o trabalho mesmo a sério, comecei penso que foi aos 18 anos quando comecei a estudar à noite, comecei a trabalhar numa empresa de telemóveis que tinha uma linha de montagem em que tínhamos que embalar os telemóveis, etc. Então enquanto estudava de noite, durante o dia fazia esse trabalho. Fi-lo durante um ano. Portanto, um ano antes de entrar na faculdade. Quando entrei na faculdade, saí desse trabalho e assim que comecei a faculdade, duas ou três semanas depois, comecei a trabalhar num call center. Estudava durante o dia e trabalhava no call center à noite. Ahhh, estive durante dois anos a trabalhar no call center e deixei. . . o trabalho já não era compatível com o meu horário. . . ahhh, pronto, foi essa parte do call center. Depois de terminar a faculdade, no primeiro trabalho. . . terminei a faculdade em Julho, em Setembro comecei a trabalhar num laboratório de análises clínicas a fazer a parte administrativa do laboratório. Também estive lá durante 2 anos enquanto iniciei a primeira vez o mestrado, entretanto desisti daquela vez, fiz o curso de. . . como é que se chama?! Formação de formadores, nessa altura e trabalhei os dois anos. Ahhh, entretanto saí, ahhh, quando engravidei e depois tive umas complicações na gravidez, tive que dar baixa e entretanto o contrato terminou. . . ahhh, depois disso, do laboratório, pronto, foi o projecto. Entrei cerca de um ano depois para o projecto e estou até agora no projecto e ao mesmo tempo, ahhh, agora mais recentemente estou a trabalhar neste programa de televisão. 00: 15 -
E durante o percurso profissional, esse anterior à profissão que tens agora, que dificuldades é que sentiste na adaptação, na transição da parte escolar para a parte profissional?
Dificuldades?! Ahhh, dificuldades do mundo real do trabalho, o essencial é o convívio entre colegas. O ambiente de trabalho. Também tem a ver com as minhas características. Primeiro porque somos imigrantes. Logo a partir daí é a primeira barreira. Num local de trabalho onde estás rodeado. . . no meu primeiro trabalho, por exemplo, onde estás rodeado de portugueses, eu sendo estrangeira, logo à partida tinha que ter. . . há logo uma barreira. Então depende da forma como tu reages. Eu, como a maior parte dos imigrantes, sempre sofreu muita discriminação, sempre. . . ainda mais eu vivia numa aldeia onde não se conheciam africanos, em que vinha. . . a maior parte dos africanos vinha para Lisboa e há comunidades africanos em Lisboa. . . nós fomos para uma aldeia. Então nós eramos os únicos africanos. E tivemos que criar muitos anticorpos, muita resistência e também tivemos que marcar a nossa posição enquanto africanos e enquanto cidadãos do mundo, não é?! Então acabamos por marcar a nossa posição, acabamos por ser respeitados e em qualquer local de trabalho onde eu vou, eu faço questão de marcar a minha posição. Sou africana com todo o orgulho, mas não permito que se passe de um certo ponto comigo. Portanto, com tudo o que. . . com tudo o que sofri na pele em termos de discriminação, acabei por me proteger mantendo uma certa distância. Então essa foi a minha primeira barreira em todos os trabalhos onde vou: fazer questão de. . . de marcar uma barreira, de fazer a distinção, de ser respeitada, acima de tudo. E então há sempre os conflitos iniciais em que por ser jovem, por ser imigrante, por ter um tom de pele mais escuro do que eles. . . então há sempre aquela primeira resistência, em que querem ver até onde é que podem ir contigo, em que começam com aquelas ideias discriminatórias e que querem aquelas brincadeiras sobre a cor da pele e etc., e eu sempre fiz questão de manter uma posição e que me respeitassem e nos primeiros meses há sempre aquele primeiro atrito. Como é que ela é, como é que não é? Até onde é que posso ir? E acabo por marcar sempre a minha posição e a partir daí, a partir do momento em que percebem até onde é que podem ir, até onde é que não podem ir, as coisas acabam por correr bem. Porquê? Porque eu não do espaço, esse é se calhar um dos meus defeitos, acabo por me fechar muito, convivo com as pessoas, sou educada, mas não tenho que ser simpática com toda a gente e não sou simpática com toda a gente. E então é essa a minha primeira dificuldade. Passando essa primeira barreira em que se estabelece uma relação de colegas, não de amigos, mas de colegas, as coisas acabam por correr bem e sempre foram. . . nesse e noutros trabalhos sempre foi assim. Depois também depende da idade das pessoas com quem tu estás a trabalhar. Nesse primeiro trabalho eram pessoas mais velhas do que eu. No segundo trabalho, no call center, já eram mais pessoas da minha idade, jovens, estudantes também como eu, não havia tanto esse problema. . . ahhh, o meu problema era mais a nível profissional, de. . . é a tal coisa, depois tenho este defeito de tudo o que faço querer ser perfeccionista, ser a melhor naquilo que faço. É claro que nem sempre consigo, mas tento sempre e então mesmo no call center esse era o meu objectivo. Senti-me um bocado frustrada no início porque não conseguia fazer vendas, na primeira semana não consegui fazer venda nenhuma e já começava a ficar frustrada: “Porque é que os outros conseguem e eu não?!” Ahhh, porque eu quero ser sempre a melhor e ser destacada pela negativa então deixava-me assim com dores de cabeça. Sempre que tinha que ir trabalhar ficava com dor de cabeça porque já sabia: “Não vou conseguir!” e não sei o quê, mas depois é a tal coisa, comecei a entrar no ritmo, também colegas a ajudarem e darem incentivo e consegui superar e é a tal coisa. . . acabei por sair do call center como a melhor vendedora na minha altura. Portanto, a minha primeira dificuldade nesse caso foi cumprir objectivos. Porque é a tal coisa, por ser africana, nós temos que ter. . . nós não podemos ser só bons, nós temos que ser melhores do que os outros. E então, em todos os trabalhos em que eu inicio eu tenho que ir com esta perspectiva: não basta ser boa, não basta ser muito boa, para eu conseguir ter espaço eu tenho que ser melhor do que todos os outros. E então é esta a minha. . . ahhh, é sempre este o meu objectivo final em todos os trabalhos. É claro que isso acaba por criar alguns conflitos no início, comigo mesma, não é?! Quando não consigo, mas isso também é incentivo para. . . pequena pausa
Então consideras que Portugal é um país racista?
Sem dúvida que sim. É claro que já houve muitas alterações, não é?! Desde os anos 80, que foi a minha primeira realidade, que houve muitas alterações. O princípio dos anos 80 era o total desconhecimento dos africanos, foi a altura em que houve uma maior imigração, ahhh, e que de facto aquela primeira vaga de imigrantes os portugueses não conheciam não sabiam e pronto, sempre foi aquela primeira resistência. Então, nós africanos eramos conotados como sendo ladrões; ahhh, como sendo vadios; ahhh, como pessoas que fazem confusão e então em brigas e que. . . acima de tudo, como seres inferiores. Ainda havia muito a mentalidade do colonizador em que os africanos eram escravos e os escravos não pensavam, não eram seres iguais. Claro que não! Os europeus ou os brancos eram seres superiores. No entanto, as coisas foram mudando porque tinham que mudar e as coisas foram evoluindo e os africanos foram cada vez mais marcando o seu espaço dentro de. . . em Portugal. Foram conquistando o seu espaço, foram aprendendo a ser respeitados a cima de tudo e hoje continua a haver racismo, não nos podemos iludir, mas de uma forma mais camuflada. A camada mais jovem já consegue aceitar-nos mais como pares, ahhh, mas ainda nós temos os chamados “Velhos do Restelo”, os mais antigos da época da colonização e que continuam a ser racistas e a não nos ver como iguais e a nos quererem mandar para os nossos países. Portanto, não nos podemos iludir, ainda é um país racista.
Tens algum episódio que te marcou nesse sentido? De te sentires discriminada ou de conhecer alguém que tenha passado por uma situação dessas?
Sim! Sim, sim, sim. Fui discriminada muitas vezes. A discriminação, ok, ahhh. . . acho que não há um sentido canónico de discriminação. Nós somos discriminados de várias formas: desde pelo teu estatuto social, por teres menos que os teus colegas da escola, não teres os ténis que ele tem, não teres os jogos e a playstation que ele tem, os pais olharem-te um bocadinho de lado por andares com os filhos deles e não quererem que eles andem contigo, mas o que mais me marcou, por incrível que pareça, nem foi enquanto menina. Se calhar enquanto miúda, enquanto criança era mais inocente não levava as coisas tão a ferro e forro, a ferro e fogo. Aliás protegia-me de outra forma. Porquê? Por isso é que eu era um bocadinho maria-rapaz e acabava por brigar. Sempre que me chamavam de preta eu ia lá e batia e o assunto estava resolvido e aí acabava por conquistar o meu respeito. Ahhh. . . quando nós passamos essa fase da meninice em que já não resolvemos as coisas à porrada, as coisas tornam-se mais complicadas porque temos que saber resolver diplomaticamente e usando a nossa cabecinha, usando a inteligência. Sermos mais inteligentes do que eles. Porque se formos continuar, e esse é o mal de muita gente, de muitos de nós africanos, se continuarmos a querer resolver as coisas à base da força, aí nós perdemos a razão. Esse é nosso mal, o mal de alguns africanos. E por isso é que somos conotados como briguentos e etc. Temos que saber resolver inteligentemente e foi no 10º ano, no primeiro 10º ano, donde eu menos esperava, uma professora de educação física, professora de desporto que em conversa. . . estava em conversa com os meus colegas e de repente chamaram-me e a própria professora me perguntou: “Ó ACT, assim vocês como é que preferem ser chamados? De pretos ou de negros?” E aquilo caiu-me tão mal, tão mal, principalmente vindo de uma professora. Se fosse um dos meus colegas, ok, eu sabia como responder, ahhh, e aliás nem dava espaço para que houvesse esse tipo de conversas comigo, mas vindo de uma professora magoou-me ainda mais. E é a tal coisa: nós temos que saber responder com a cabeça. E foi isso que eu fiz na altura! Porque ela achava e estava ali toda contente a querer explicar aos meus colegas que era melhor chamar-me de negra do que de preta para eu não me sentir ofendida. Então respondi: “ Olhe, nem negra, nem preta! Prefiro que me chamem de BUD!” E ela: “Sim, está bem! Mas o que é que tu preferes? Se fosse outra coisa o que é que tu preferes?” E eu: “Nem uma coisa, nem outra! Prefiro que me chamem de ATC.” Ela ficou muito chateada porque não lhe dei a razão que ela queria e foi a forma que eu vi para conseguir responder à altura, sem entrar em conflitos, sem demonstrar que estava ofendida para depois não vir aquela parte da comiseração ou de serem condescendentes: “Ai não, mas não é para te ofender!” Aquela conversa que também irrita-me extremamente, mas consegui manter a dignidade, respondi daquela forma, mas é uma coisa que me marcou até hoje porque veio de onde eu menos esperava. Veio de um adulto que já deveria ter esses conceitos resolvidos e que já deveriam perceber que isso não são perguntas que se façam, muito menos perante os outros colegas. Portanto, era. . . ahhh, sem ela se ter apercebido estava-me a excluir do grupo, isto é, “nós somos assim, mas a ACT é diferente”. . . ahhh, e então eu que sempre lutei para me sem. . . para me enquadrar, para fazer parte de um grupo, principalmente de uma turma, isso fez-me sentir motivo de exclusão, quer dizer “nós somos assim e como é que eles, pretos, gostam de ser chamados?” E então, pronto, esse foi um dos momentos, por incrível que pareça, que mais me marcou até hoje.
Ahhh. . . e agora falando um bocadinho da cultura. Os teus pais são os dois de São Tomé. . . Como é que interpretas a cultura e a transmissão dessa cultura que foi feita em relação a ti?
É engraçado! Os meus pais são são-tomenses, sim, mas eu considero que para a época deles, eles eram uns são-tomenses. . . ahhh, não tão. . . não com uma raíz. . . não quer dizer que não tinham uma raíz tão forte são-tomense, não! Eram são-tomenses, tinham raízes são-tomenses, mas tinham uma mente aberta. Os meus pais não eram daquelas pessoas que lhes diziam que culturalmente tinha que se fazer assim, então eles faziam assim cegamente e transmitiam aos filhos cegamente. Não! Eles sempre foram uns pais que nos ensinaram a pensar e eles próprios transmitiram a nossa cultura, a cultura que eles tinham, sim. Eles são seres africanos, têm a cultura africana e em termos da educação, transmitiram-nos a educação africana. O saber respeitar os mais velhos, a obediência, a obediência aos pais, ahhh. . . enfim, os valores básicos, eles nos ensinaram. . . da cultura africana, porque nós vemos que a cultura europeia é um bocadinho diferente em termos de educação. Em relação às tradições, que nós africanos também temos as tradições para muitas coisas. . . ahhh, já foi diferente. Eles próprios já não se identificavam com muitas das tradições são-tomenses e dou alguns exemplos: quando uma mulher tem filho tem que passar sei lá quanto tempo a tomar banho de ervas e sei lá mais o quê, e as crianças têm que tomar banhos com vinhos e com umas ervas e tal e eles nunca nos transmitiram essas coisas porque eles próprios já não aceitavam essa parte da cultura, essa parte mais cultural. Então eles sempre nos educaram como seres africanos, a não nos esquecermos da nossa origem, aliás, o meu pai é dos homens mais apaixonados que eu conheço pelo seu país e foi dele que eu. . . que eu, ahhh, herdei este. . . esta minha paixão pelo meu país, por São Tomé. Sempre nos ensinaram que a nossa origem é São Tomé e Príncipe, é África, sim, sempre nos transmitiram, mas sempre nos ensinaram que os verdadeiros valores culturais, nós temos que saber analisá-los e ver se se adequam a nós ou não. Portanto, educaram-nos como africanos, transmitiram, sim, mas ensinaram-nos acima de tudo a pensar, o que eu acho fantástico.
E o que é que destacarias da cultura são-tomense? ACT: Ahhh. . .
O que é para ti uma vantagem ou um ponto positivo?
Da cultura são-tomense. . . é a tal coisa! É a educação respeitosa acima de tudo! É saber estratificar a educação, saber dar valor acima de tudo aos mais velhos, aos nossos mais velhos. Aprender a sabedoria dos mais velhos. Isso é uma mais-valia que nós hoje vemos cada vez menos aqui em Portugal e na Europa em geral. Nós em África não temos lares de idosos, por exemplo. Os nossos velhos moram connosco e acabam por morrer connosco. A minha avó morreu na casa da minha tia. Viveu muitos anos na minha casa também a minha avó e os meus pais sempre trabalharam isso em nós, porque nós era um bocadinho estranho: “ok, agora a minha avó vem viver aqui, é mais um peso.” Mas não! Sempre fizeram questão de nos mostrar que “ela faz parte da família”, tal como nós e que ela tinha muito ainda para nos ensinar. E foi o que aconteceu! E tenho pena, ahhh. . . hoje saberia aproveitar muito mais a sabedoria dos ensinamentos dela do que naquela altura. Portanto, é isso! Um dos valores essenciais que eu vejo que os nossos pais nos transmitiram ou que a cultura são-tomense e africana no geral nos transmite é a educação, o respeito pelos nossos mais velhos, ahhh, e o saber, ahhh, a noção de família. Os são-tomenses, e quando falo dos são-tomenses acabo por falar um bocadinho dos africanos em geral porque os africanos são um povo. . . são muito parecidos, nós temos esta questão de. . . o conceito de família. O nosso conceito de família é de família alargada. Portanto, em Angola todos são tios, os mais velhos tudo é tio e em São Tomé não chamamos de tio mas temos noção que fazem todos parte da família. Se é tio, se é primo, se primo de segundo grau, de terceiro grau, de milésimo grau é tudo primo e é tudo chegado, é tudo próximo. Se é tio, do tio, do tio do primo é nosso tio, ponto final. Ahhh, são familiares próximos e nós vemos que em Portugal, não! A pessoa pode perguntar: “Ah, mas quem é aquela? É minha prima mas é de segundo grau!” Esse “mas é de segundo grau” quer dizer que já é distante, que já não tenho relação com ela. Mas as minhas primas, por exemplo. . . mas as minhas melhores amigas, por exemplo, para além da minha irmã são as minhas duas primas. Portanto, nós vemo-nos todas como irmãs. No fundo nós somos as quatro irmãs, não temos essa distinção de prima de segunda ou prima de terceira. Então essa noção de família, também, é dos valores essenciais que nós são-tomenses e africanos temos. 00: 32 -
E pontos negativos? ACT: Pontos negativos da nossa cultura? Temos alguns, temos alguns. Temos alguns velhos hábitos da época da colonização. Falo em termos de corrupção; em termos de vermos. . . muita das vezes, de ver o outro abaixo de nós por qualquer motivo, pela cor da pele, por incrível que pareça ainda há racismo entre os africanos ou entre os são-tomenses por um ser mais escuro e outro ser mais claro. Os são-tomenses têm um problema também com os caboverdianos que foram. . . por razões históricas houve uma altura da colonização em que muitos caboverdianos foram trabalhar nas roças em São Tomé e acabaram por ficar lá depois da colonização e estão muito relegados a um cantinho, às roças, e vivem nas roças e são um bocado discriminados ou são muito discriminados. E um dos pontos negativos é exactamente isso. Nós acabamos por nos discriminarmos uns aos outros, há uma estratificação: há os forros, que são os verdadeiros são-tomenses; há os caboverdianos, que já não são são-tomenses. . . ahhh, mas que são são-tomenses porque viveram lá a vida toda que já se identificam como são-tomenses; há os angulares, que são chamados de. . . que são descendentes mais da parte de Angola e não só, então também já não são-tomenses. . . “nós são-tomenses somos melhores do que eles porque somos os autênticos”; há os chamados moncós que são a mistura dos moçambicanos e não sei o quê ou dos estrangeiros, também não são são-tomenses, então ainda há um bocadinho essa resistência racial. São diferentes, vêm dos estrangeiro então não são. . . já não são como nós. Não são verdadeiros são-tomenses. Depois é a questão das políticas e das politiquices: ahhh, ou tu tens uns valores que te foram transmitidos, tu tens os valores vincados e vives consoante os valores ou deixas-te muito facilmente embeber no espírito da corrupção, do salve-se quem puder, do tal nepotismo que existe, enfim. . . se não tiveres os teus valores marcados ainda há muitos valores culturais que são negativos. Eu vejo um bocadinho. . . é claro, não é querer culpabilizar, nós também ainda temos uma democracia muito recente, mas o facto é que ainda são valores culturais e valores dentro da colonização que nos foram impostos e. . . tinha-me acabado de lembrar de um terceiro ponto negativo, mas já não me lembro do que ia dizer. Falávamos. . . depois já disso. risos. Mas pronto, estes são no essencial os pontos negativos.
E agora em relação à cultura portuguesa. O que é que destacarias. . . ahhh, o que é que destacarias como positivo e como negativo?
Como positivo, temos muita coisa positiva na cultura europeia. Ahhh, essencialmente. . . Ah! Já me lembrei do que é que eu queria dizer acerca da parte negativa mas vou aproveitar para a parte positiva da cultura europeia. Ahhh, nós africanos no geral. . . ahhh, os africanos têm muito o hábito, ahhh, ou a cultura africana, de não acarinhar os filhos. Principalmente os filhos. Entre. . . as relações entre eles, mas principalmente os filhos e as mulheres. Não transmitem carinho, o amor. Dificilmente vês um africano a dizer a um filho: “Eu gosto muito de ti! Eu amo-te!” Ahhh, e isso é um dos pontos negativos na cultura africana. E é um dos que eu destaco. . . positivo na cultura portuguesa e na cultura europeia no geral. Ahhh. . . Esta questão da. . . do. . . da proximidade, do dizer. . . do dar carinho ao filho, de dizer “eu amo-te”, de dar um beijinho, de pegar no colo. . . ahhh, porque isto são coisas que vais levar para o resto da vida, mais do que uma playstation, do que o teu pai te possa dar, é esta transmissão de. . .. o carinho! É a tal coisa! Nós somos seres que nascemos para ser amados. O ser humano nasceu para ser amado, para ser acarinhado e quando nós não somos falta-nos alguma coisa. E isso acaba. . . e é. . . é um círculo vicioso que acaba por se criar. Quando temos a parte afectiva mal resolvida também vamos ter outras partes. . . vai afectar noutras partes que vamos acabar por ser mal resolvidos. E isso é uma das partes que eu gostava também nos meus pais: é que souberam fazer este equilíbrio. São africanos, mas também beberam esta cultura europeia e sempre nos transmitiram. E esta é parte que eu gos. . .. a maior parte que eu destaco como positivo. O facto de haver afectos. Não haver medo trocar afectos. Ahhh, e depois mais a nível material é a capacidade que tu aqui tens de ter. . . a capacidade de ter! Se tu trabalhares, claro que agora na altura de crise é mais complicado mas, desde sempre (por isso é que as pessoas imigravam, não é?!), porque aqui tu trabalhando podes ter. Podes ter a tua casa, podes ter o teu carro, podes ter os teus bens. . . o que é mais difícil na. . . nos nossos países africanos. Em termos de pontos negativos, ainda assim. . . ainda assim, Portugal tem uma mente. . . os portugueses têm uma mente muito fechada. Continuam a viver das glórias do passado. Continuam a ver os africanos, principalmente, como seres inferiores. Então ainda precisam muito de trabalhar essa parte do racismo, o achar que o outro é diferente, não só em relação aos africanos mas em relação. . . porque Portugal sempre foi um país de emigrantes, tanto de emigrantes como de imigrantes. Portugal sempre recebeu muita gente e Portugal também sempre mandou muita gente para fora, mas ainda assim têm muita resistência aos imigrantes, tanto africanos, como brasileiros, como dos países do leste. Então precisam de abrir ainda a mente e perceber que nós somos todos iguais e que o ser humano, o Homem é todo igual. Muda a cor de pele, mas por dentro. . . por detrás da cor da pele é tudo igual: os nossos órgãos, o nosso sangue, é tudo igual! Ainda tive um pequeno conflito em um dos trabalhos que tive em que a senhora me dizia que: ”Ela tem berço! Tem sangue azul!” E eu disse: ”Ó meu Deus! Afinal isto ainda existe! Ainda há pessoas que pensam assim!” quer dizer, se ela ainda não percebeu que se nos cortarmos o nosso sangue é igual e que tudo é igual. . . portanto, essa parte ainda precisa de ser muito trabalhada.
Ahhh, e em termos de identidade, como é que te descreves?
Como é que eu me identifico?! Bem, acima de tudo como africana! Sempre! Sou africana, sou uma africana com muitas influências europeias. Sou são-tomense, sim. Sou africana, sim. A minha cultura há de ser sempre maioritariamente africana. Ahhh, respiro o ar africano, mas tenho muitas influências, positivas e não só, europeias. Portanto considero-me um ser do mundo, um cidadão do mundo, acima de tudo. Mas uma africana com influências europeias, sempre!
E expectativas para o futuro?
Expectativas. Ahhh. . . A que níveis? risos
Por exemplo, tens algum sonho que gostasses de realizar e que. . .
Já tive uns sonhos. . . já tive uns sonhos. . . Agora já não sonho tanto. Deixo a vida correr o seu curso porque é aquela coisa, nós fazemos tantos planos e quando damos por isso.. é a tal coisa: “nós fazemos planos e Deus ri-se”. Porque Deus é que sabe o que nos vai acontecer. E eu já tive muitos sonhos: sonhei em ser desportista, jogadora de futebol profissional, não fui; sonhei ser. . . ahhh, professora de educação física ou ligada ao desporto, também não fui; ahhh, hoje sou apresentadora de televisão mas nunca sonhei trabalhar na televisão, como as meninas geralmente sonham e aparecer nas capas de revista. . . nunca sonhei com isso e hoje faço, ahhh, mas essencialmente sonho ver a minha África diferente, a minha África independente. Porque, é claro que já há. . . a escravatura já foi abolida há muito tempo, já somos. . . já estamos livres do período da colonização e dos colonizadores há muito tempo ou relativamente pouco tempo, mas tempo suficiente, mas ainda não somos livres nem independentes. Ainda a tal mão invisível, como dizia o Sócrates. . . ainda há a mão europeia ou a mão não-africana que comanda. Nós. . . Africa ainda é um bocadinho como uma marionete nas mãos dos maiores grupos económicos, maiores grupos económicos não-africanos. E então ainda sonho ver a minha África livre e independente. É esse um dos meus maiores sonhos. E a nível pessoal sonho ser totalmente realizada profissionalmente. Dou graças a Deus pelo que já atingi, mas. . . sonho ser ainda mais realizada. Ter uma carreira profissional mais sólida. Não tenho. . . é a tal coisa, há pessoas que desde muito cedo já sabem exactamente aquilo que querem ser quando tiverem 40, 50 anos. Eu ainda não sei. Ainda não sei o que quero ser. Mas. . . eu sonho ser realizada profissionalmente. Continuar a ser realizada profissionalmente, essencialmente. Independentemente do que isso seja. Se for a ser. . . sei lá, nem que seja a ser empregada da limpeza, mas se for realizada profissionalmente, então é esse o meu sonho.
E o que é que te vês a fazer daqui a 10 anos. Assim, planos a curto prazo?
Isso é mais difícil! risos Eu sou muito sincera. . . eu, eu adapto-me muito. . . adapto-me muito às situações. Como eu disse, o meu primeiro objectivo era ser formada em desporto, ahhh, mas acabei por chegar ao 10º, mesmo ao 12º ano e percebi que se fosse para desporto ia ter muita matemática, ia ter um dos desportos que eu. . . eu nunca gostei, que é a natação. Naquela altura, no 12º ano, nem sabia nadar! E então, é a tal coisa, é como eu disse há pouco, eu quando faço alguma coisa gosto de ser a melhor naquilo que eu faço e eu era a melhor em todos os desportos que fazia, até então. Em desporto, na disciplina de desporto, em educação física. . . eu era sempre a melhor em tudo. E chegou à parte da natação e eu era a pior da turma. Sabes quando. . . é um bocadinho mau, mas em desporto sabes que tens que ter uma forma física atlética, não é?!, e havia uns mais gordinhos e tal que eram sempre os piores e eu via, “Oh! Coitadinhos, são sempre os piores, vão ter as piores notas!”, e, por incrível que pareça, chegou à parte da natação e eu era pior do que eles. Eu era a pior da turma. Sabes quando estão a escolher os grupos para fazer. . . para formar equipa e tu és a última a ser escolhida. Eu nunca fui a última a ser escolhida em nada e eu era a última a ser escolhida em natação porque eu realmente era muito má. Não sabia nadar, pronto! E então eu decidi : “Não, se eu for para natação para não ser a melhor naquilo que faço, então eu não vou!” E não fui! E então. . . eu já não sei porque é que eu estou a falar disto! risos Qual foi a pergunta que me fizeste? Já me perdi não sei porquê. . .
O que é que te vias a fazer daqui a 10 anos. . .
Ah! Daqui a 10 anos o que é que eu me vejo a fazer. . . Portanto, eu queria ser desportista, já sei que não vou ser. . . Ahhh, eu queria ser uma grande linguista, isto é, trabalhar nestas línguas crioulas, de São Tomé e Príncipe, essencialmente, daqui a 10 anos queria-me ver a fazer um dicionário sobre os dialectos crioulos de São Tomé e Príncipe, a trabalhar em gramáticas sobre São Tomé e Príncipe. . . mas neste momento já estou dividida entre dois amores: entre a linguística e a televisão. Portanto, eu daqui a 10 anos. . . ahhh, essencialmente, que eu esteja a fazer aquilo que gosto e neste momento o que gosto de fazer é trabalhar com os crioulos de São Tomé e trabalhar em televisão. Portanto, pretendo estar ainda a fazer as duas coisas daqui a 10 anos.
00:46 . Agora voltamos um bocadinho atrás e queria que me descrevesses o sítio onde nasceste ou cresceste, assim em termos sociais. A convivência com as pessoas, etc.. Já falaste um bocadinho, mas. . .
Pois! O mal de falar muito é isso. . . risos Eu nasci em São Tomé, não é?!, e vim para cá com 1 ano de idade, portanto, todas as minhas memórias de infância são em Portugal. Como eu disse há pouco, eu cresci numa aldeia, perto da zona de Torres Vedras, uma aldeia muito pequena. . . ahhh, e o ambiente social era a tal coisa, aquilo que eu chamava. . . hoje a esta distância, eu já não chamaria de racismo, eu chamaria mais de desconhecimento. As pessoas não conheciam o que era o africano. Então, em termos sociais, eu acabei por ser muito feliz porque as pessoas, apesar de ter uma mente ainda pequena, em nos verem um pouco como diferentes, acabaram por nos acolher. . . primeiro nos respeitar, porque soubemos fazer nos respeitar, e depois por nos acolher. Então, às tantas, já pertencíamos àquele meio e então, em termos sociais, ahhh. . . é claro, nós eramos. . . economicamente, tínhamos menos poder económico. Bom, eramos imigrantes, estávamos ali há pouquíssimo tempo, os pais eram. . . o meu pai trabalhava na obra na altura, a minha mãe trabalhava no campo então, economicamente, nós eramos. . . tínhamos menos! Eramos inferiores em relação aos outros que tinham tudo e mais alguma coisa. Mas, socialmente, sempre conseguimos conviver muito bem com os nossos amiguinhos das nossas idades. Na altura as crianças não iam para as creches. Qual creche, qual quê! Ficavam com os avós. Eu não tinha avó na altura aqui, mas é o que nós dizemos: a nossa creche foi o parque infantil que tínhamos perto de casa, porque acabávamos por passar lá o dia todo, havia as avós que controlavam os filhos, os netos, os filhos dos filhos, né?!, os seus netos e acabavam por nos controlar a nós também. Ahhh, há uma das senhoras, ahhh, que tinha lá o seu neto, ahhh, com quem. . . que era da minha idade e lidávamos muito bem e ela morava mesmo ao pé do parque e estava sempre de olho no filho dela, no neto dela e acabava por estar de olho em nós também e estávamos ali todos como uma grande família. Portanto, acabamos, apesar de todas as diferenças sociais, nós acabamos por crescer. . . a nossa creche foi o parque, ahhh, e digamos que as nossas educadoras foram os avós e as mães dos nossos colegas.. Portanto, socialmente eu acho que acabamos até por ser bem inseridos dentro do ambiente em que crescemos.
Desculpa, não te perguntei, os teus pais vieram para Portugal porque. . .?
Ahhh, em termos. . . ahhh, na altura da imigração, em que. . . depois de 75, já na década, nas décadas de 80, em que os países africanos estavam a atravessar uma altura de crise muito grande, então houve um grande boom de imigração e foi nesse contexto de imigração que os meus pais vieram. Foi para trabalhar e ter melhores condições de vida aqui.
E viagens? Por onde é que já andaste?
Viagens?! Infelizmente, ainda não fiz tantas quanto gostaria. Fiz pouquíssimas! Fiz a São Tomé, regressei ao meu país depois de 20 anos. Fui para conhecer. Ahhh, já estive em Angola mais recentemente, também um mês de férias, agora tenho lá família; ahhh, fui a Espanha, tive lá também umas duas semanas; tive na Suíça, tive lá cerca de duas semanas; ahhh, recentemente fui à Dinamarca, em missão de trabalho, pode-se dizer, fiz uma apresentação numa conferência; e ainda estive a semana passada na Bélgica, a passar uns diaszinhos para descansar. Mas, essencialmente, são essas as viagens. Que me lembre agora, sim.
E fala-me um bocadinho da tua viagem a São Tomé. Qual foi a tua impressão?
Ah! Foi voltar a casa! Foi sentir. . . foi finalmente perceber quem eu era! Porque isso de me assumir como africana, e sempre me assumi como africana, e aquela pergunta. . . sempre fizeram aquela pergunta: “Gostas mais de estar cá ou de estar lá?”, eu não conhecia África. Quando me faziam essa pergunta, eu era miúda, não conhecia África. Perguntavam: “Gostas mais de estar cá ou estar lá?” Eu respondia sempre: “Sim, gosto mais de lá, é o meu país, é a minha terra!” mas nunca tinha estado lá! E como vim com um ano é claro que não conhecia nada. Ahhh, mas o voltar a São Tomé foi exactamente isso. Foi o voltar para casa! Sentir-me em casa. O meu primeiro impacto para além do calor enorme que se começava a sentir desde o avião, desde que estávamos a sobrevoar a ilha. . . o meu primeiro impacto foi quando ainda a descer o avião, ahhh, comecei a ver o verde por todo o lado e a ver lá no fundo um conjunto de africanos, pretos, eu: “Uau! Afinal há um país em que só há africanos!” E aquela minha primeira viagem do aeroporto até casa, passei pela marginal em que havia a praia e os coqueiros e aquela imagem paradisíaca que só se vê na televisão e a minha reacção era: “Afinal isto existe!” Nós estamos ali (naquela altura ainda não tinha viajado para nenhum dos outros países). . . estamos ali confinados a Portugal e vemos as imagens dos países paradisíacos e pensamos: “Ok! Isto deve existir por aí algures. . .”, e agora eu vejo que isto realmente existe; passava pelas senhoras com as cabaças na cabeça, com os filhos às costas e eu vi: “Afinal é daqui que eu vim! Esta é a minha identidade!” Ahhh, e foi essa a minha primeira reacção a África: foi descobrir-me! Ver que lá eu era mais uma, igual a todos os outros, por um lado; mas por outro, nós acabamos por não ser africanos ou acabo por não ser são-tomense como os são-tomenses que lá estão. Ahhh, por mais que queiramos assumir como plenos são-tomenses, nós já não somos como os são-tomenses que lá estão. E eu acabei por perceber isso muito rapidamente. Cada vez que eu abria a boca para falar com um são-tomense, davam: “Hum! Tu não és de cá!” E viam. . . então estava numa altura na praia como uns mi. . . na praia sozinha e estavam uns miúdos à minha volta a brincar e a atirarem-me água e eu:”Ai!”, já me estavam a irritar, mas eu não queria falar porque eu já sabia: assim que eu abrisse a minha boca iam perceber que eu não era de lá e houve uma altura que eu tive que dizer: “Ó meninos, cuidado! Tenham atenção que eu estou aqui!”, “Olha, a portuguesinha!” e eu, pronto! risos já. . . por mais que eu queira me assumir como são-tomense, também já não sou como eles porque os são-tomenses já não me assumem como são-tomense e os portugueses já não me assumem como portuguesa. Portanto, nós temos. . . estamos assim num lugar escuro, num lugar meio cinzento em que não somos nem de um sítio, nem do outro e apercebi-me disso quando fui para São Tomé, mas a primeira. . . o que mais trago da minha primeira viagem a São Tomé foi, de facto, encontrei a minha identidade e é isto que eu quero. . . e é isto que eu vou assumir ser sempre. Antes eu assumia mas não vivia totalmente. Quando me diziam: “preferes ser de lá ou de cá?”, eu dizia: “prefiro lá”, mas um bocadinho naquela de me proteger, de reagir, ser reactiva: “Eles pensam que eu vou dizer o quê? Que Portugal é melhor do que África? Não! Vou dizer que África é melhor.” Mas só depois de ir para lá é que eu vi: “Realmente, não! Sem desprimor para Portugal. . . realmente África é melhor! Porque somos um país pobre e vi muita coisa que não gostei mas, somos muito humanos, somos muito família, somos muito da fa. . . de estar uns com os outros, então. . . sim! Identidade. Acima de tudo, a minha primeira viagem a São Tomé foi encontrar a minha identidade.
E vês-te a viver em São Tomé?
Vi, vi. Engraçado. Quando voltei de São Tomé. . . ahhh. . . huuu, defini como objectivo terminar (ainda estava na faculdade a terminar o segundo ano). . . defini como objectivo terminar a faculdade e voltar (na altura os meus pais estavam lá). . . e voltar para São Tomé. Viver em São Tomé, trabalhar em São Tomé, dar o meu contributo. . . ahhh, porque claro que é uma realidade totalmente diferente, não temos o conforto, ahhh, que temos aqui nas coisas mais elementares, mas o que eu constatei é que São Tomé tinha tudo. Se tu tiveres dinheiro, tu tens tudo! Eu fiquei abismada de ter visto numa loja Nestum, por exemplo. É que parece uma coisa assim tão trivial, que nós tínhamos aqui e que eu pensei que lá não houvesse, mas vi. Vi Nestum, vi os mesmos iogurtes que gostava aqui e disse: “basta ter dinheiro, tu consegues ter o mesmo nível de vida que tens lá!” Por isso, sim! Vim com o sonho de regressar.
E em relação às outras viagens que fizeste, o que é que destacas e que diferenças é que achaste em relação a Portugal?
Para os outros países da Europa, essencialmente, ahhh. . . o que eu vi de diferente em relação a Portugal. . . acho que às tantas já começo a ver a Europa um pouco em termos de. . . estruturais, a arquitectura um bocadinho parecidos. Em termos de relações humanas, eu achei interessante que não. . . não nos olhavam de lado, não nos olharam como sendo diferentes, principalmente em Espanha, na Suíça, era mais uma que estava ali, quer dizer. . . não me viam como “Ai, é africana” e não sei o quê. Achei interessante porque pensei “Ok! Agora vamos para mais um país europeu, mais uma vez vamos ser vistos de lado” e não aconteceu. A civilização. Portanto, eu quando saio de Portugal, vou para qualquer outro país da Europa, eu digo que “vou para a Europa! Agora vou viajar para a Europa! Para um país de primeiro mundo!” porque Portugal ainda está muito na cauda da Europa. Então vejo civilização, vejo ruas limpíssimas, vejo pessoas civilizadas, principalmente na Dinamarca, na Bélgica. . . tudo organizado, não há lixo no chão, não há confusões, ahhh. . . vi um primeiro mundo, é a tal coisa, vimos. . . ahhh, Portugal ainda está um bocadinho atrasado em relação a isso. E acho que a Europa ainda barulho de sirene de ambulância. . .risos Agora vais ter a ambulância na gravação!. . . Mas fora de Portugal tu vês uma Europa diferente. Uma Europa muito diferente.
Hum.Hum.
E em relação aos países africanos, já falei um bocadinho de São Tomé. . . a viagem que fiz a Angola fiquei. . . também foi mais recentemente, não é?! E com este novo boom que Angola está a ter a nível internacional, a crescer imenso economicamente, ahhh. . . e vi também, ahhh, humm, muita probabilidade de morar em Angola. Porque é uma realidade completamente diferente, a cidade em Luanda, principalmente, é uma cidade que está muito cheia, tem muita gente, muito trânsito, é. . . o trânsito é horrível! Mas é um país em que tu sentes esperança! Mesmo. . . é claro que os canais televisivos não são muito bom exemplo, mas tu lá as notícias, por exemplo, são sempre notícias positivas. Está a crescer, está-se a construir isto, está-se a construir aquilo. . . claro que nem tudo corresponde à realidade, mas é um país onde tu respiras esperança, crescimento, optimismo. Nós saímos daqui a ouvir crise, crise, crise e chegamos lá a ouvir esperança. Eu senti que tu ali, tu trabalhando, tu podes ter um nível de vida muito superior ao que tu tens aqui. E dou um exemplo muito. . . um exemplo muito claro: nós aqui para conseguir ter uma casa, nós temos que. . . ou és muito rico e consegues pagar na altura ou ficas uma vida toda a pagar uma casa. Até à tua velhice estás a pagar a tua casa. São contractos de 30, 40 anos. Tu em Angola, conseguindo um trabalho minimamente estável, os valores que tu recebes são superiores. . . muito superiores aos que tu recebes aqui, tu consegues não só. . . é o que eu digo, lá tu não só sobrevives. . . aqui tu sobrevives, lá consegues viver! Consegues economizar e consegues construir uma casa. Consegues comprar um terreno a valores muito inferiores do que tu tens aqui, consegues, ahhh, construir uma casa muito rapidamente. . . ahhh, em cinco anos consegues ter a tua própria casa ou se calhar até menos. Consegue-se poupar imenso dinheiro. Consegues trabalhar. . . é o que eu digo, tenho que dizer que é trabalhar, mas as pessoas pensam que vai-se lá e o dinheiro está no chão, que apanhas no chão. Não! Trabalhas com uma vida regrada consegues juntar imenso dinheiro e consegues fazer mais, consegues viajar muito mais. . . o exemplo que eu ia dar: o meu irmão aqui era um funcionário como outro qualquer, ganhava para as suas despesas, tinha a sua família, mulher, três filhos, ganhava para as suas despesas e era um bocadinho apertado; foi para Angola, aventurou-se, abriu a sua própria empresa e hoje, em menos de. . . sei lá, quatro anos talvez que ele está lá, ahhh, tem a sua própria casa, tem os seus negócios, começou do zero (para as pessoas não se iludirem, né?! porque tinha alguma influência lá. . . não! Não tinha nada!). . . começou do zero, ahhh, hoje viaja imenso, vai a. . . já foi à África do Sul, ao Dubai que é assim aquela coisa que hoje em dia está muito na moda, ahhh, neste momento está de férias no Brasil, a mulher é brasileira e estão lá um mês de férias a família toda e nós sabemos que de Angola para o Brasil as viagens são caríssimas, mas se fosse aqui ele jamais conseguiria ter a liquidez suficiente para fazer estas viagens e muito menos para uma viagem ao Brasil com a mulher, filh.. mulher e três filhos! Lá, temos a capacidade de sonhar, em Angola! Temos a capacidade de sonhar. Em Angola e noutros países da Europa como a Suíça, a Inglaterra e não só. Portanto, esse foi uma de. . . um aspecto que eu ressalvo de Angola. A capacidade. . . dá-te. . . restitui-te a capacidade de sonhar. Tu aqui perdes um bocadinho. Dizes: “Ok! Eu quero viajar, eu quero ter uma casa, eu quero ter um carro, mas chega ao final do mês e o dinheiro não sobra para mais e lá não. Lá tu consegues, ahhh, ter uma vida regrada, mas tu consegues ter as tuas economias e sonhar.
E em termos de hobbies? Como é que geres os teus tempos livres? Se os tiveres. . . risos
Bem. . . risos O pouco tempo livre que tenho, principalmente aos fins-de-semana. . . eu gosto muito de desporto, sempre gostei muito de desporto, então quando posso. . . e agora obriguei-me a ir ao ginásio, porque para mim é. . . quando eu consigo sair um pouco da minha vida de corre-corre é quando eu vou ao ginásio. Consigo esquecer marido, filhos, a linguística, a televisão. . . quando eu estou na passadeira a correr eu esqueço. Ahhh, faço no ginásio porque é uma questão de tempo porque que eu gosto muito mais de fazer ao ar livre, correr ao ar livre e não sei quê. . . Então obrigo-me a ir ao ginásio quando posso; gosto imenso de ler ao ar livre, agora não tenho tanto tempo, mas é ler, ler, ler, leio imenso, ahhh, e sou cristã, portanto aos domingos para mim domingo é dia de ir à igreja. Passo os domingos na igreja, portanto, resta-me o sábado e pouco sábado que eu tenho é dedicado à minha família, ao meu marido, à minha filha, ou vamos passear ou levo a miúda a passear. . . é ter tempo de qualidade e ter tempo de qualidade no pouco que tenho com o meu marido e a minha filha. Ou é. . . não vou muito ao cinema, mas passear, levar a miúda ao parque ou ir uma vez por outra nós os dois sozinhos, jantarmos fora, ter uma vida de adultos sem filhos, mas pronto! Divido assim o pouco tempo livre que tenho.
E como pessoa, como é que te descreves? Qualidades e defeitos?
Ah! Isso é a parte mais difícil! risos Qualidades e defeitos? Qualidades: sou muito regrada, tenho objectivos. . . para além. . . não é ser muito regrada, é ter objectivos definidos e fazer de tudo, dentro do possível, dentro do que não vá para além dos meus valores, fazer de tudo para conquistar os meus objectivos. Ahhh, mais coisas positivas que eu tenho?! Falo muito, portanto, não sei se é positivo ou negativo. . . Ás vezes pode ser positivo, às vezes também não é assim tão positivo. Ahhh, mas gosto muito de estar com pessoas, gosto essencialmente de sair com os meus amigos e com as minhas amigas, que neste momento está cada uma num país diferente, infelizmente, mas gosto. Gosto muito de me divertir, gosto muito de rir e fazer rir, quem me vê pensa que eu sou uma pessoa muito séria à primeira vista, mas gosto muito de fazer as pessoas rir e a minha família diz que eu sou um bocadinho o palhacinho da família porque quando eu chego, pronto, é risada no geral. Ahhh, e em termos de defeitos: ahhh, tenho muitos, mau feitio, tenho pouca paciência para algumas coisas, ahhh, gosto das coisas à minha maneira, quando foge um bocadinho à minha maneira fico assim um bocadinho irritada, gosto de ter tudo muito controlado. Na vida não podemos ser assim, ser muito assim, mas gosto de ter tudo controlado. Tudo o que foge ao meu controlo deixa-me muito irritada. Ahhh, e pronto! Dos meus maiores defeitos e ter um bcadinho de mau feito, não tenho paciência com muitas coisas e. . . e já que estamos a falar de questões raciais, um dos meus defeitos também é esse. É como eu disse, eu não sou simpática com toda. . . sou educada com toda a gente, mas não sou simpática com toda a gente e acabo por me pôr também eu própria um bocadinho de parte. Na dúvida. . . eu vejo sempre assim. . . na dúvida, eu prefiro não me envolver. E então no meu local de trabalho nunca. . . nos locais de trabalho por onde passei nunca saí com verdadeiros amigos. Nunca! Porquê? Porque não me envolvo ao ponto de conseguir conquistar amigos. Mesmo aqui, tenho alguns colegas. . . tinha um colega que trabalhava aqui comigo. . . tudo o resto são pessoas que não me conhecem minimamente. São pessoas a quem eu digo, “Olá!”, “Boa tarde!”, “Bom dia!”, posso falar um bocado, posso rir um bocadinho, mas há uma barreira que não transponho. Tudo o que já inclua a minha vida pessoal eu deixo sempre muito de parte, não deixo que as pessoas entrem na minha vida e isso acaba por ser um bocadinho um grande defeito porque eu acabo por ter aquele grupo de amigos e não permito que outras pessoas de fora entrem na minha vida. Então tenho um grupo muito restrito de amigos. Ahhh, mas pronto! É uma das coisas que ainda tenho que trabalhar.
E aproveitando que falas do grupo de amigos, como é que descreverias o teu grupo de amigos e aonde é que surgiu essa amizade? Em que contexto?
É como eu disse, as minhas melhores amigas são a minha irmã e as minhas primas. Porquê? Porque todas nós vivemos, crescemos, vivemos e crescemos naquela aldeia todas juntas, acabamos por criar laços muito, muito, muito fortes, ahhh, hoje conhecemos a vida umas das outras. . . há coisas da minha vida que só elas é que conhecem, há coisas das vidas delas, ahhh, que só eu e nós é que conhecemos, ahhh. . . portanto, somos mais do que amigas, somos irmãs, todas nós. Surgiu no contexto precisamente de família porque crescemos todas juntas e uma das críticas que fazem a nós, mulheres da família, essencialmente, e à família no gral, é que é muito difícil quando entram os maridos e as mulheres, que é muito difícil entrar no nosso grupo porque nós já temos códigos próprios, nós já temos brincadeiras próprias, nós marcamos jantares entre nós, ahhh. . . é muito difícil quem vem de fora conseguir se adaptar. Ahhh, o meu grupo de amigos, ahhh, nós somos todas muito espontâneas, somos pessoas que adoramos rir, que adoramos brincar, mas eu identifico-me muito com elas. . . porque também tenho outras primas, não é?!, mas não me identifico tanto, ahhh, acabamos por não ser tão próximas porque para além de tudo, ahhh, as minhas primas eu não. . . e a minha irmã, admiro-as imenso como mulheres. A nível profissional, eu sou a mais nova do grupo por isso é que eu sempre disse que se calhar acabei por ser um bocadinho precoce por causa disso, porque cresci ao ritmo delas, ahhh, e elas são. . . são umas verdadeiras guerreiras. Nunca baixaram os braços. Uma das minhas primas, por exemplo, do meu grupo. . . eu descrevo como. . .. São daquelas africanas acima da média. Que nós vemos que, infelizmente, os nossos africanos que quando vão para as comunidades, saem dos países de origem e vêm viver nas comunidades aqui em Portugal, como nós temos muitas comunidades do outro lado do rio, na Jamaica, temos aqui na Quinta do Mocho e etc. e acabam por não evoluir. Acabam por viver como se ainda vivessem em África. E o que eu destaco no meu grupo de amigas é que evoluíram, ahhh, procuram ter uma cultura geral acima da média, procuram lutar pelos seus objectivos, ahhh. . . todos eles, o meu grupo de amigos é essencialmente a minha família, não só essas primas mas também os meus primos que vivem em Itália, os meus irmãos são pessoas que eu considero acima da média. Todos, cada um na sua área, nem todos são formados academicamente, mas todos procuram dentro daquilo que fazem ser bons e ser melhores e investigar e estudar aquilo que fazem e é isso uma das que faz. . . eu admiro muito as pessoas pelo. . . pela inteligência, pela sabedoria, pela capacidade que têm de evoluir. Ahhh, e hoje que sou um pouco mais velhinha, relaciono-me muito melhor com pessoas acima dos 40 anos, por exemplo, eu tenho 30, do que com miúdos na casa dos 20 ou dos 30 e pouco, porque essencialmente eu relaciono-me, mesmo dentro do meu grupo de amigos mas num núcleo mais alargado, relaciono-me. . .. as pessoas com quem eu me relaciono são essencialmente, ahhh, pessoas com um nível de cultura acima da média porque eu gosto de pessoas que me estimulem, com quem possa conversar, passar horas a conversar, sobre tudo, sobre política, religião, ahhh, sei lá. . . sobre, sobre o mundo no geral. Pessoas que tenham conhecimento do mundo. Ahhh, então é isso que eu admiro nas pessoas em geral: a capacidade de pensar sobre as coisas, essencialmente.
Já agora queria aproveitar e queria que me falasses um bocadinho, ahhh, do que é ser apresentadora de TV.
Ah! Ótimo! risos Isto ser apresentadora de televisão, olha. . . essencialmente eu acho que me chamaram para essa. . . para esse desafio, ahhh, porque para além de ter. . . muitas coisas que eu faço, muitas vezes sou convidada para dar palestras sobre estas coisas da linguística e das línguas africanas e etc., ahhh, muito entre a comunidade africana, e uma das coisa que, que eu acho que se destaca em mim é esta minha capacidade de falar e de gostar de falar e de conversar com muita gente. Então ser apresentadora de, principalmente um talk show como o meu, é conversar com as pessoas, é primeiro ser um bocado mediadora da conversa, ahhh, e é gostar do que estamos a fazer aqui que é uns perguntam, outros respondem e conversar sobre o tema seja ele qual for. Portanto, um apresentador de televisão é esquecer que tem as câmaras à sua frente, é receber pessoas. . . é como se estivesse a receber pessoas na minha casa e estamos ali a conversar só que não temos o café ou um copo de vinho para estarmos ali a conversar uma conversa amena, ahhh, e tentar puxar um bocadinho mais e tentar descobrir o que cada um faz, e fez, e os objectivos, e etc., ahhh, é um bocadinho isto. É. . . é ser a anfitriã, digamos assim, uma apresentadora. Os perigos do munda da televisão, ahhh, e isto é uma coisa que eu peço sempre a Deus: que me mantenha os pés no chão, é que facilmente te podes deixar deslumbrar com esse mundo. Ahhh, porque claro que acabas por ser. . . eu sempre fui o chamado “low profile”, nunca gostei muito de me expor, mesmo no facebook e etc., nunca gostei de expor a minha vida íntima, ahhh, nunca gostei que as pessoas me conhecessem muito e com isto acabo por estar aberta ao mundo, portanto, toda a gente que me quiser conhecer, acaba por me conhecer. E um dos perigos é tu deixares-te deslumbrar por isso e te achares superior às outras pessoas porque tens ali meia hora ou uma hora no ecrã em que toda a gente te vê e toda a gente te admira e as pessoas acabam por te admirar por aquilo que tu fazes, por seres apresentadora, pela ATC apresentadora e não pela ATC enquanto aquilo que ela é. Portanto, eu não sou aquilo que faço, eu não sou. . . a ATC não é a apresentadora que eles vêm ali, a ATC não é aquela pessoa sempre bem disposta, ahhh. . . uma das coisas que eu gosto que me aconteça e que aconteceu ontem foi quando estava a gravar e uma miúda saiu de lá a dizer: “Ai, a apresentadora é tão simpática, é tão fixe, pá! Gostei tanto de estar com ela!” Isso para mim é óptimo, quer dizer que as pessoas sentiram-se em casa. Quando. . . o perigo da televisão é quando as pessoas embebem muito daquele espírito, acham-se superiores e já te olham de um patamar acima, então acabas por te perder um bocadinho neste mundo. Então ser apresentadora é isto! Gosto. . . curiosamente, apaixonei-me. . . eu adapto-me muito às coisas, então acabei por me apaixonar por esta área e. . . pronto, sinto-me uma perfeita anfitriã naquilo que faço.
E agora queria aproveitar o facto de teres referido que tens uma filha para te perguntar, culturalmente, o que é que lhes transmites?
Eu transmito. . . ahhh. . . uma coisa que eu sempre. . . quando pensava em ter filhos, sempre que pensava nesse aspecto, ahhh, o que eu sempre pensei para mim foi: no dia em que eu for mãe ou no dia em que eu for mãe ou no dia em que eu for mãe e tiver um marido como pai, eu quero que nós sejamos, no mínimo, os pais que os meus pais foram para mim, ou para nós, para mim e para os meus irmãos. E é isso que eu procuro ser! Por incrível que pareça as coisas que eu mais detestava que os meus pais fizessem, que não eram muitas coisas, provavelmente as coisas dos horários, de ao fim-de-semana ter que chegar a casa antes das 11h da noite, horrível para os adolescentes e para os jovens e não sei o quê. . . eu era jovem e: “já tenho 18 anos, 20 anos e não posso ficar na rua até à hora que me apetecesse” e hoje, essencialmente, o que eu quero transmitir é aquilo que os meus pais me transmitiram: respeito, acima de tudo respeito com os mais velhos, na escola, respeito com os professores, respeito com tios, primos, seja com quem for, nada de levantar a voz, responder mal, manter o nível, ahhh, saber diferenciar entre os pais e os colegas de escola, saber como falar com os pais, ahhh, e o afecto, o afecto acima de tudo. Eu dou imensos beijinhos à minha filha e se alguma coisa acontecer sem nós sabermos, não é?!, a qualquer momento pode nos acontecer qualquer coisa, e uma das coisas que eu guardo comigo é saber que eu dei todos os beijinhos à minha filha que eu podia dar. Não ficou nada por dar, não ficou nada por dizer. Dizer que a acho linda, “gosto muito de ti”, “a mamã ama-te muito”, “a mamã tem muito orgulho de ti”, “o teu cabelo é lindo!”, porque nós sabemos que uma das coisas pelas quais nós somos discriminados é pelo nosso cabelo, temos imenso problema, temos o cabelo rijo, crespo, cabelo ruim, ahhh, e o que eu quero que ela sinta. . . porque eu na idade dela, eu não tinha cabelo praticamente nenhum e por isso é que me chamavam de rapazinho também, porque eu não tinha cabelo. . . ela já tem muito mais cabelo do que eu tinha na altura e há uma coisa que eu faço questão de lhe dizer: “o teu cabelo é lindo!”, e ela vira “Ah! O cabelo da não sei quem. . .” (ela tem 4 anos), “. . . o cabelo é assim para baixo. . .”, “mas o teu cabelo é assim e é lindo!” Eu fa. . . eu não! Eu levo à cabeleireira para fazer tranças e ela fica com as trancinhas e eu digo: “as tuas tranças são lindas! O teu cabelo como é, é lindo! E não deixes. . .” , agora imagina, uma miúda de 4 anos e eu a ter este discurso: “. . . e não deixes nunca que ninguém te diga que o teu cabelo não é lindo!” risos Ela provavelmente não percebe nada do que eu estou a dizer, mas um dia vai perceber. Então eu faço questão de dar os valores ou a educação africana que os meus pais me deram, ahhh, e pegar. . . é a tal coisa: fazer o equilíbrio. . . pegar na parte europeia dos afectos, do carinho, do. . . do. . . do toque, de não ter medo de tocar, de pegar no colo e incentivar o meu marido a fazer o mesmo. Ahhh, porque antes o papel dos pais era o de corrigir e a parte dos afectos e dos carinhos era deixado mais para a mãe. Hoje, não! Hoje os pais têm o mesmo papel que as mães. Corrigem, claro! É sempre um bocadinho mais essa parte dos pais, mas o pai também. . . é fundamental um pai também dar carinho ao filho, pegar no colo, como o meu pai me fez a mim, ahhh, pegar no colo, levar para a praia, levar a jogar à bola. . . e é uma das coisas que eu enquanto mãe o meu coração fica a fervilhar é quando vejo o meu marido abrincar com a minha filha, a ter aquelas brincadeirinhas de pai e filha. Então isso é o que eu procuro transmitir à minha filha: valores. . . educação africana e com valores europeus também.
Ok! Obrigada! risos
Já está?! risos Obrigada eu! Foi engraçado! Foi uma entrevista engraçada! risos