O meu nome é CC, eu nasci a 1 de março de 1976, nasci em Lisboa… ahhh, na maternidade Alfredo da Costa, sou advogada, sou licenciada em Direito e também tenho algumas pós-graduações nessa área… ahhh, [empregada de mesa: “Bom apetite!”, responde à empregada de mesa: “Obrigada.”]; os meus pais são de nacionalidade caboverdiana também e… é preciso a escolaridade deles? O meu pai tem o antigo 7º ano/9º ano e a minha mãe tem a 3ª classe… Estou aqui a tentar me lembrar do meu pai, mas acho que é o antigo 5º ano. Aliás é o antigo 5º ano que corresponde ao 9º, sim!
E o que é que faziam os teus pais? O que é que faziam o pai e a mãe?
O meu pai trabalhou na siderurgia durante… pá, dutrante todo o tempo desde que veio de Cabo Verde para cá. Ele veio para cá salvo erro em 74… ahhh, ele trabalhava na siderurgia nacional entretanto saiu num processo de despedimento colectivo que eles fizeram, ahhh, há muito tempo… não me lembro há quanto tempo, mas há muitos anos… ahhh, entretanto ele trabalhou aqui e ali, as coisas não correram muito bem porque depois não… ainda teve alguns empregadores, os quais não lhe pagavam, ficou com salários em atraso e não sei quê e depois acabou por decidir ir emigrar e foi para a Suiça. Na Suiça trabalhou no campo durante algum tempo e depois passados uns anos começo a trabalhar num hotel que foi onde ele acabou por se reformar. Ahhh, a minha mãe sempre trabalhou no campo. Desde que começou a trabalhar… não começou logo, logo a trabalhar, até porque a minha mãe chegou em 75, eu nasci em 76, depois entretanto os meus irmãos nasceram: eu nasci em 76, tive uma irmã que nasceu em 78 e outro que nasceu depois em 80… em 80 não! 76, 77 e 78, assim é que é! E, pronto! Depois a minha mãe só começou a trabalhar em 81/82, nessa altura… desde essa altura que ela trabalha sempre no campo… Sempre trabalhou no campo.
E agora saltamos um bocadinho para os irmãos. O que é que fazem e a escolaridade.
tenho dois irmãos que não completaram o 12ª ano, apesar de a irmã mais nova ter depois mais tarde na Suiça voltado a estudar e tirou um curso, não sei se equivalerá a um curso médio de secretariado que depois fez um upgrade para recursos humanos. Ahhh, o meu irmão ficou com o 12ª ano. Depois as minhas irmãs… a mais velha é professora. Está agora a fazer o doutoramento. E a outra é licenciada em… ela é higienista oral. Portanto, fez o bacharelato e depois entretanto fez a equivalência à licenciatura.
São só 3?
Não, são essas duas e depois mais os dois. O meu irmão e a minha irmã que têm o 12º e mais as outras duas que uma é professora e a outra é Higienista oral.
Então e o percurso escolar como é que foi?
O percurso escolar não foi muito atribulado. Fiz a primária… quando fui para a primária nós já morávamos na Quinta do Conde. Fiz lá a primária. Depois fiz o ciclo preparatório, também fiz na Quinta do Conde até depois ao 9º ano. Depois fui para Setúbal estudar na escola do Guiso, onde fiz até ao 12ª ano. Depois quando acabei o 12ª ano ainda estive um ano em Filosofia antes de ir para Direito. Fiz um ano de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa e depois fiz Direito na clássica e terminei o curso em 2000.
E sempre sem reprovações?
HumHum! Nunca reprovei. Sempre fui boa aluna. Depois quando estive em… no primeiro ano em que fui para a faculdade não consegui entrar em Direito, entrei em Filosofia que era a minha segunda opção e entretanto acabei por mudar para Direito porque na faculdade deixaram-nos claro que se seguíssemos ficaríamos desempregados, basicamente. E portanto, isso não era uma perspectiva que por nós era sequer equacionável e portanto, acabei por mudar logo para Direito e pronto.
E o ambiente? Como é que vês as instituições por onde passaste e… ahhh, o próprio ensino e o convívio com os colegas e os professores?
Eu acho que o facto de ter sido sempre boa aluna foi determinante para a forma como… como correu o meu percurso escolar no sentido do relacionamento quer para com… quer para com colegas, quer para com professores. Ahhh, e digo isto porquê? Porque sempre fui uma pessoa de relacionamento mais ou menos fácil. Não… nunca tive problemas de maior. Ahhh, tive uma ocasião ou outra mais no ciclo preparatório do que propriamente na primária em que tive aquele comentário do “ó preta, vai para a tua terra!” ou qualquer coisa do género, mas não era uma coisa muito comum. Eu não lidei muito com isso. As minhas irmãs mais velhas lidaram com isso muito mais. Eu, aconteceu-me ocasionalmente, mas não era uma coisa frequente. Ahhh, e por isso o meu percurso em termos sociais foi sempre muito pouco atribulado e como era boa aluna, sei lá, acho que naturalmente os professores têm uma predilecção pelos melhores alunos e… e com os colegas esse trato também torna-se mais fácil por isso. Porque de alguma maneira também temos alguma coisa que possamos dar aos nossos colegas e, portanto, não tive nunca problema nenhum.
E em termos de matérias? Havia alguma em que tu tivesses dificuldades?
Não tinha… a primeira vez que eu notei alguma dificuldade em alguma matéria foi no 10º… pela primeira vez no 9º ano… não era aluna de 4 e 5 a matemática. Sempre fui boa aluna e nessa altura tive que me esforçar mais para conseguir ter um 4. Fiquei com 4 no final do ano, mas tive que me esforçar muito mais do que o normal. Depois no… quando fui para o secundário, apesar de depois ter ido para Direito e ter seguido a área de letras, eu tive de… entrei para a área de economia e portento, tive matemáticas até ao 12º ano… até ao 11º ano, aliás e quer dizer, não era propriamente a disciplina em que tivesse a melhor nota, mas também estava longe da negativa. Era uma aluna mediana a matemática e de resto, todas as outras notas eram boas. Eu acabei o 12º ano com média de 19 e pronto, nunca tive problemas em termos de notas.
E como é que eram os hábitos de estudo?
Até à faculdade… aliás até o meu… posso dizer que até ao meu 12ª ano praticamente não tinha grandes hábitos de estudo. Fazia os trabalhos de casa, mas fazia o mínimo necessário. No 9º ano, de facto, tive que estudar mais a matemática porque tive… acho que pela primeira vez tive um teste negativo. Não foi uma negativa muito baixa, mas foi o suficiente para me fazer soar o alerta para estudar. Depois, ahhh, voltei a estudar no 12º ano a história porque tive uma professora que… como eu não tinha tido história no 10º e 11º, ahhh, pôs em causa ou… espicaçou-me, se quisermos assim, no sentido de dizer “Não sei se o teu 5 do 9ª ano vale alguma coisa ou não” porque tive 5 a história e foi mais naquela de provar à professora que efectivamente era uma boa aluna e que eu não tinha problemas nenhuns e que o meu 5 valia 5. Ahhh, e… mas até nunca tive hábitos de estudo por aí além. Portanto, eu estudava quando muito para esclarecer dúvidas aos meus colegas. Não era aluna de estudar para testes nem nada porque também não era necessário. Sempre participei muito nas aulas, o que levava a que tivesse a matéria sempre mais ou menos em dia. Depois quando fui para a faculdade… aí, sim, comecei a estudar e como a minha casa sempre foi uma casa cheia, sempre tive família… para além da família nuclear sempre tivemos primos a viver connosco e por aí a fora, acabei por estudar sempre na faculdade. Estudava na biblioteca. Se tinha aulas de manhã (porque normalmente nós tínhamos aulas de meio período), se tinha aulas de manhã, estudava de tarde. Se tinha aulas de tarde, estudava de manhã. Portanto, o meu…. E estudei sempre na biblioteca. 00: 08 -
E quais foram as pessoas que incentivaram mais o estudo?
Em casa, mais a minha mãe. O meu pai também sempre deu muita importância à escola, mas, ahhh, mas, mas para o meu pai era mais ou menos como se fosse um dado adquirido. E a minha mãe, não. A minha mãe sempre nos incentivou muito, sempre disse que a escola era importante, que ela gostaria de ter estudo mais e não estudou. A minha mãe era daquelas pessoas que… que, pronto, cresceram naquela altura em que as mulheres para estudarem era porque obviamente eram mais atrevidas e queria escrever para os namorados e, portanto, não fazia muito sentido as mulheres estudarem. Ahhh, os pais dela não incentivaram, antes pelo contrário. Ela, parte da infância dela, ela esteve a ser criada pela avó que era contra ela estudar e, portanto, a minha mãe era daquelas que fugia para ir à escola e que tinha castigos porque tinha ido à escola. E por isso, acho que ela sempre incutiu mais ou menos esse gosto e essa importância da escola em todos nós. E portanto, se temos alguém das nossas relações familiares que nos incentivava mais para a escola, sempre foi a minha mãe.
E como é que foi a escolha do Direito? Porquê Direito?
Eu acho que a escolha do Direito foi mais ou menos uma escolha natural. Tinha a ver com a minha personalidade. Eu sempre fui muito interventiva, sempre parti muito em defesa do outro, sempre fui muito desinibida e desde pequenina de alguma maneira os meus familiares mais próximos rotulavam-me um bocado nesse sentido. Usam muito a expressão “Como cima mae di padri” que é típico de Cabo Verde de uma pessoa assim mais metida, mais mexida e o meu tio… tenho um tio que é irmão da minha mãe que dizia que eu certamente seria advogada porque não sei o quê. Eu quando fui para o 12º ano gostei muito de Filosofia, apaixonei-me por Filosofia e daí a minha escolha por Filosofia. Acabei por sair de Filosofia, não porque não gostasse, mas porque me disseram claramente que não teria grandes hipóteses, em termos de futuro e de mercado e isso para nós era importante. Quer dizer, eu cresci numa família em que nunca faltou nada, mas nunca sobrou nada e não fazia sentido nenhum para mim a perspectiva de estar até aos 30 anos desempregada como dizia um dos nossos professores que estava mentalizado para sustentar a filha até pelo menos aos 30 anos. Isso para nós não era… não era… nunca seria possível porque nós trabalhámos todos desde cedo nas férias escolares e por aí fora, e tínhamos a plena noção de que não poderíamos viver encostados aos nossos pais e que obviamente teríamos que trabalhar e de ganhar a vida. Portanto, a perspectiva de ficar desempregada para mim estava completamente fora e foi essa a razão principal que eu diria para depois para mudar para Direito, não ter entrado para Direito no… em 99 como minha primeira opção. E depois, pronto! As coisas seguiram-se naturalmente. Estou no mesmo escritório onde estou… onde comecei a estagiar. Fui fazendo a minha vida por aí, quer dizer, não… acho que foi natural. Acho que, que ser advogada é mais ou menos natural em mim.
E como é que foi a transição da escola para o trabalho? Mas primeiro diz-me que trabalhos é que tiveste até hoje?
Ui!!! Não sei! A primeira vez que eu trabalhei tinha 12 anos e fui tomar conta de um bebé, ahhh, que era de uma senhora que morava perto da nossa casa… como em nossa casa estavam sempre muitos miúdos, ela tinha uma… o marido tinha uma firma de camionagem e ela tinha um bebé pequeno, ahhh, e foi lá pedir à minha mãe se podia mandar uma das filhas para tomar conta do bebé porque ela ajudava na firma e não sei quê, e portanto eu durante os meus… durante o verão eu ia para lá e depois quando começavam as aulas às vezes ia para lá ocasionalmente quando ela precisava de mim. Depois disso, fiz vindima, apanhei tomate, trabalhei em estufas de flores, trabalhei em casa de pessoas como doméstica, em que supostamente ia para tomar conta dos putos, mas depois na prática ia fazer o trabalho de empregada doméstica. Ahhh, trabalhei como promotora de interpass, a vender cartões de férias. Ahhh, e fiz… fui operadora de call center e depois… depois fiz o estágio e comecei a trabalhar. Que eu me lembre acho que não tive outras experiências profissionais. Ainda cheguei a fazer vindima para a Suiça, um ano no verão. Ah! Fiz restauração. Isso foi uma coisa que eu fiz durante 5 anos seguidos em Algarve, no Algarve, em Armação de Pêra a trabalhar num restaurante, durante os meses do verão. Fazia isso todos os anos durante o tempo de faculdade.
E com que idade é que começa a trabalhar como advogada?
Eu acabei o curso tinha 23. Tinha 23 para 24 e comecei a fazer o estágio e naturalmente comecei a trabalhar nessa altura. Acabei o curso em 2000 tinha 24 anos, fui fazer o… depois nessa altura inscrevi-me na ordem e comecei a trabalhar nesse ano, em 2000, a trabalhar porque entrei como estagiária e lá nesse escritório começamos logo a trabalhar. Entrei em Outubro de 2000… em Setembro de 2000, perdão, salvo erro no dia 4 de Setembro de 2000 e estou aí desde então.
E como é que foi essa transição da fase de trabalho mais esporádico, vá, e o início de carreira?
Pronto! É assim: para mim não foi muito difícil porque nós em… nós, se bem que o estágio… no início nós tínhamos o período de estágio, mas nós iniciamos o estágio e os primeiros dois ou três dias tivemos a ler processos, mas a partir daí estivemos a trabalhar nos processos em concreto. Davam-nos os processos para ler, mas para fazer uma peça processual, para fazer uma informação para o cliente, para fazer qualquer coisa e começamos a trabalhar logo. Depois para além disso na altura, para o escritório onde eu fui estagiar, os primeiros seis meses de estágio não eram remunerados e eu falei com eles e disse-lhes que isso para mim não era uma opção porque eu era uma bolseira. Fui bolseira e que os meus pais não tinham condições para me estar a sustentar a vir para Lisboa todos os dias, pagar passe, alimentação… se eu não tivesse nenhuma retribuição. Então acordámos que eu fazia… propuseram que eu fizesse três manhãs ou três tardes, três meios dias por semana de arquivo e que me pagariam na altura 50 contos e eu contrapropus que trabalhasse duas manhãs portanto a fazer arquivo e assim durante os primeiros dois meses e a partir daí começaram-me a pagar e todo o tempo foi.. era tempo que estava a trabalhar na área, pronto, em Direito e na advocacia. Não foi… Não foi custoso! Quer dizer, nós já tínhamos uma cultura de trabalho. Durante essas mesmas férias… ahhh, aliás, quando eu vim para a faculdade eu já estava a trabalhar em Lisboa, no verão foi quando… por acaso comecei em Setúbal e depois entrei para a faculdade, e mudei da mesma empresa para vir para Lisboa que era para estar perto da faculdade e quando começaram as aulas eu já estava a trabalhar em Lisboa… ahhh, durante o período de faculdade, durante o primeiro semestre, normalmente, eu trabalhava no call center até Dezembro, pelo menos, até Dezembro/Janeiro e depois parava nas frequências de Fevereiro e aí já não voltava a trabalhar até ao verão seguinte que ia para o Algarve trabalhar… quer dizer, nós sempre tivemos uma cultura de trabalho, o trabalho para nós sempre nos acompanhou a vida toda, por isso a entrada no mundo do trabalho não foi assim uma transição muito assinalável, se eu quiser assim. Portanto, foi diferente, porque comecei a dar-me com pessoas diferentes, a ter que me vestir de maneira diferente, portanto, claro que… mas tirando isso, a diferença era nenhuma, em termos de impacto na… no meu dia-a-dia, na minha maneira de ser e não sei o quê, acho que não teve nenhum impacto significativo. 00: 16 -
E em termos de convivência? Como é que define o ambiente de trabalho e…?
Nós temos um bom ambiente de trabalho. Na… Lá no escritório temos um bom ambiente de trabalho. O ambiente já não é o mesmo. A sociedade cresceu muito desde 2000 até agora e, portanto, passaram-se quase 14 anos desde que eu estou naquela sociedade. Houve alguma coisa que mudou e a sociedade passou por muitas transformações e processos de fusão e de decisão e de não sei o quê… ahhh, mas manteve… o núcleo duro, se quisermos assim, manteve-se sempre… ahhh, o ambiente é bom, quer dizer, as pessoas tratam-se com… inicialmente até com mais amizade do que agora, agora as relações se calhar são mais profissionais nesse aspecto. Dantes as relações começavam por ser profissionais mas depois confundiam-se muito com as relações de amizade e agora, fruto também do crescimento da sociedade, claro que temos também algumas relações privilegiadas de amizade, mas… mas tornou-se uma relação mais profissional mas um ambiente… mas um ambiente, um ambiente bom! Um ambiente… sei lá, bom para trabalhar. As pessoas respeitam-se mutuamente, dá para brincar, dá para… quando é para trabalhar à séria, estamos a trabalhar à seria, se temos que trabalhar até tarde, temos que trabalhar até tarde, se… é um ambiente normal. Acho que é um ambiente normal para um mundo de trabalho. Nada de estranho! E é assim… 00: 17 -
Nunca sentiste nenhum preconceito ou discriminação?
Sim, eu acho que é normal… Se calhar não é normal, mas eu encaro como normal uma boca aqui ou ali ou uma brincadeira mais vincada nesse aspecto. Se bem que… se bem que algo de discriminação por esse aspecto, não. Eu que o facto de ser… de ter sido sempre boa aluna e de me considerar uma profissional também competente, acabou por… acaba por ser determinante para que não sinta essa grande diferença. Diferente seria… por exemplo, às vezes sinto isso quando ocasionalmente estamos a falar e às vezes há aquele conceito que muitas vezes eu lembro-me… tinha uma colega no secundário que dizia, quando falava não sei quê, quando falava dos pretos e os pretos isto e os pretos aquilo, dizia: “Ó C, tu não és preta!”. É claro que eu sou preta, mas ela dizia que eu não era preta no sentido de que não me equiparava aos outros ou de que não me considerava… que eu não correspondia ao padrão que ela tinha daquilo que seriam os pretos. Aqui no escritório, ocasionalmente surge uma questão ou outra quando estão a falar… surgiu uma vez uma questão por causa de umas empregadas domésticas e a maneira como falam das empregadas e as pessoas que têm trabalhos menores e pessoas que não sei o quê… quer dizer, o facto de eu ter tido sempre um conjunto de trabalhos que aos olhos, se calhar, dos meus colegas são considerados trabalhos menores, leva a que tenha uma… uma… uma apreciação diferente do que a que eles têm desse tipo de trabalho e uma… e que olhe para esses trabalhos como um trabalho igual. A minha mãe sempre me ensinou que todo o trabalho é honrado e portanto, acho que é um trabalho… que ser advogado ou se empregado doméstico… não vejo grande diferença. Desde que sejamos sérios naquilo que estejamos a fazer e sejamos competentes, acho que é igual. Em termos de dignidade para o trabalho, acho que é perfeitamente igual. Claro que a remuneração é diferente, mas também infelizmente mesmo hoje em dia se calhar há muitos advogados que se calhar ganham menos do que certas empregadas domésticas que cobram à hora e portanto... Mas é claro que, em termos sociais, obviamente é diferente um advogado e uma doméstica, quer nós queiramos ou não, porque isto é fruto da sociedade que temos. Mas, ahhh… mas sentir-me discriminada por isso, não! Não necessariamente. Aliás o nosso escritório até tem, tem, tem escritórios correspondentes fora. Temos escritórios em Angola e temos escritórios em Moçambique e aí, obviamente, que a massa… a massa humana é dominada por pessoas pretas e não há qualquer tipo de… por aí, não! Agora, se é que houve alguma discriminação, não sei até que ponto… às vezes acho que sim, às vezes acho que não… mas isso tem a ver com alturas e com determinados comportamentos, mas tem a ver não com isso, mas com o facto de eu ser casada e ter cinco filhos. E aí já é diferente! Aí tem a ver com as questões de progressão na carreira que eu acho que também seriam iguais aqui ou em qualquer outra sociedade, não vejo que por aí seja uma questão. Talvez tenha havido em determinadas alturas, no contacto com alguns clientes, nalguma reunião aqui ou ali algum temor que eu pudesse eventualmente não estar à altura de reunir com determinados clientes. É claro que isso nunca foi dito. Claro que isso nunca foi expresso. Mas às vezes podia sentir que havia alguma resistência nesse aspecto mas isso também foi facilmente ultrapassado, portanto não… eu não posso me dizer uma vítima de… de discriminação! Não acho que possa dizer uma coisa dessas. 00: 20 -
E em termos hierárquicos? Como é que funciona o escritório? Em que nível é que te encontras?
Ahhh! Portanto, o escritório tem… em termos da escala da advocacia, se quisermos assim, temos os… os advogados estagiários que uma vez feita a prova de agregação se ficarem na sociedade passam a associados. Depois existem os associados… ahhh, dependem das escalas… se estivermos a falar das escalas de re… não só de remuneração, mas a escala de … a própria escala de tabelas que se cobram aos clientes. Depois tem os seniores, os pré-seniores e os sócios. Ahhh, eu estou na sociedade há… vai fazer 14 anos. Sou considerada para fora como uma associada sénior e dentro do escritório depende. Francamente depende. Há situações em que sou considerada sénior porque nós temos seniores… os advogados mais velhos que são seniores têm mais dois ou três anos do que eu de casa e, portanto, nessa medida… mas quer dizer, à partida, sou considerada uma advogada sénior mesmo dentro da estrutura. Para determinadas coisas, às vezes consideram-me pré-sénior. Não é…
E é uma pessoa que faz planos ou não?
Depende. Tendencialmente não faço muitos planos porque os planos serão sempre só nossos mas há sempre uma série de contingências que nós não podemos controlar e, portanto, acho que ficar preso a planos é sempre um risco enorme. Ahhh, eu sempre planeei casar-me, sempre planeei ter filhos, nunca planeei ter cinco filhos. Quer dizer, tive os filhos que me apareceram, tive os filhos que Deus me deu, teria mais eventualmente, não é uma coisa que provavelmente seja planeada. Sou capaz de planear umas férias, mas muitas vezes já aconteceu planear umas férias e depois sai tudo ao contrário. Ahhh… não vivo agarrada aos planos. Eu vivo muito um dia de cada vez. Ahhh, mas não sou completamente inconsequente, como é óbvio, não é?! Tenho cinco filhos, não posso ser completamente desprendida e não sei o quê. Acho que sim, posso ter alguns planos, faço alguns planos, mas planos q.b.. Eu não planeei vir para a sociedade na qual trabalho, não planeei ficar aqui estes anos todos… foram coisas que foram acontecendo naturalmente. Não sou de fazer planos nessa perspectiva.
Mas a entrada na Universidade era um plano ou não?
A entrada na Universidade era um objectivo. Acho que era um… não era um objectivo. Acho que isso faria parte de um curso natural de coisas, porque nós sempre fomos encorajados a estudar. As minhas duas irmãs mais velhas tinham ido para a Universidade e eu era boa aluna, portanto, ir para a Universidade era uma consequência era mais ou menos natural. Por isso se quisesse ser advogada ou se quisesse ser… ter qualquer outra profissão, acho que a licenciatura fazia parte, teria necessariamente que fazer parte. A Universidade… sim, se nós quisermos olhar para tudo nesse aspecto como um plano, sim. Naturalmente que sim, fazia parte dos planos. Mas era mais um dos passos naturais que previsivelmente seriam dados na minha vida. Portanto, não… Mas sim, nessa perspectiva, sim!
E hobbies? O que é que faz nos tempos livres?
Não consigo fazer muita coisa riso, porque com cinco filhos não é propriamente muito fácil. Ahhh, o pouco tempo livre que eu tenho que não é passado com os meus filhos… portanto, o tempo que não é virado para os filhos, no sentido de… sei lá, de estar com eles um bocado, de educar eventualmente… não sou propriamente uma mãe que brinca muito com os filhos, mas tirando o tempo que passo com eles e alguma coisa que naturalmente faço com eles, as coisas que eu gosto de fazer é: gosto de acompanhar algumas séries, gosto de filmes, se bem que há muito tempo não vou ao cinema… Portanto, em termos de gestão, não tenho saído de casa, de gerir para sairmos os dois para ir ao cinema não é muito fácil. Às vezes vamos com os miúdos, mas irmos só os dois não é muito fácil. Mas neste momento não tenho assim nenhum hobby assim em especial. Houve uma altura em que ainda… que ainda lia, mas depois deixei de ler porque comecei a ficar muito cansada para ler… quer dizer, lia uma coisa aqui ou ali… uma coisa, se houver uma coisa que realmente me interesse sou capaz de ler, mas deixei de ler porque fico completamente morta. Começo a ler, passado um bocado caio para o lado, portanto,… e dantes quando vinha nos transportes, usava também os transportes para isso. Continuo a vir de transportes, mas os trajectos que nós fazemos agora de transportes são muito curtos e acabo por estar a fazer outras coisas. Normalmente aproveito esse tempo para, sei lá, para conversar com o meu marido, uma vez que nós vimos juntos. Ou qualquer coisa do género. Tempo para mim, de coisas que eu faça para mim é quando tenho algum tempo, deito-me no sofá e vejo um bocado de televisão ou qualquer coisa do género. Não faço mais nada de especial.
E viagens?
Nós vamos fazendo alguma coisa. Eu acho que viajar é importante, mas não acho que seja uma coisa de suma importância. Acho que é importante na medida em que nos permite ver outras realidades, conhecer outras culturas eventualmente, mas… mas eu tendo a apostar um bocado na segurança. E portanto, acabo por ir para sítios onde conheço alguém, onde tenha alguma referência, onde… portanto não,… se me perguntarem: “Olha, gostavas de ir à China?” Sim, gostava de ir. Se tivesse oportunidade, eventualmente iria, mas não… não vou matar-me para ir à China. Mas, por exemplo, temos familiares e amigos na Holanda, em França, em Inglaterra e esses países eu já… eu já fui conhecer. Ahhh, fui ao Brasil na altura da viagem de finalistas e gostei imenso e gostava de lá voltar com o meu marido. Quando fomos de lua de mel, fomos para as Maurícias, gostava de lá voltar… mas tenho sempre aquela coisa de voltar aos sítios onde fui e gostei. Quando não… não sou aquela pessoa que quer ir ao mundo inteiro, conhecer o mundo inteiro… isso não sou eu. Há sítios se calhar em Portugal que eu gostava de conhecer e não conheço. Já fomos à Madeira, não fomos aos Açores e há uns sítios que eu gostava de ir e que hei de ir com certeza com os meus filhos… mas não sou aquela pessoa que quer ir a este mundo e ao outro, não… gosto, mas se não for não me faz mossa absolutamente nenhuma. Acho que é capaz de ser muito mais prazeroso e muito mais válido pegar na minha família e ir visitar outra família que não vejo, que estão do outro lado, do que propriamente ir à descoberta, só assim… Portanto, acho que são perspectivas diferentes. Mas gosto de viajar, aliás os miúdos adoram andar de avião. A perspectiva de viajar, de fazer uma viagem para fora é assim uma coisa que nos é cara e que nós gostamos de fazer e que temos feito, mas não… se não fizer… por exemplo, nós já fomos N vezes à Suíça porque tenho família lá e é uma coisa que eu gosto sempre de fazer. Não… Poderia ir à Alemanha, assim que fica ali ao lado… Podia! Já fomos a Praga, já fomos a Budapeste, já fomos a vários sítios, mas se for, vou… se não, for não vou! Se for, guardo fotografias, guardo memórias, gosto da experiências, mas se não for também não me faz diferença alguma. 00:27:42 – E das viagens que fez, qual foi a que mais gostou e porquê?
Hum… Não sei. Eu gostei muito de ter ido à Holanda. Na altura já estava casada, já tínhamos dois filhos e gostei muito da Holanda… gostei muito dessa viagem, sobretudo porque me… me… como é que eu hei de dizer?! Foi uma viagem, ahhh… na qual fomos para uma pessoa da casa… fomos ficar na casa de uma pessoa que o meu marido já conhecia, que era uma amiga que ele tinha encontrado num encontro TZ e nós fomos ficar em casa dessa rapariga que eu mal conhecia. Ela tinha passado por Portugal, tinha passado… quando passou por Portugal, ficou em nossa casa durante uns dois ou três dias, mas… mas pronto! Foi só isso! E quando estive lá fiquei maravilhada com a forma hospitaleira como nós fomos recebidos, como sobretudo… lá está! As viagens a mim marcam-me sobretudo pelas pessoas e marcou-me sobretudo pela forma como fomos recebidos. Ela era uma rapariga solteira que vivia em união de facto com o namorado que não… que não… que eu saiba não tinha na altura quando esteve cá e moveu todo o bairro porque nós íamos para lá! Foi pedir aos vizinhos brinquedos para os miúdos poderem ter onde brincar, foi pedir camas emprestadas a outros vizinhos e mais um berço para nós podermos ter, reorganizou o horário dela e do namorado para poderem ir connosco a determinados sítios, compraram-nos bilhetes de autocarro, tinham mapas para não sei o quê e tudo, tinham planos para passeios que nós deveríamos fazer com os miúdos e sítios que eles achavam que nós poderíamos ir mas que poderiam não ser tão adequados para os miúdos, tinha N imagens impressas para os miúdos poderem pintar, quer dizer, foi… foi… aquilo que me marcou nessa viagem foi a maneira como… como uma pessoa pode ser hospitaleira. Ensinou-me a mim própria como ajudar a receber as outras pessoas que eventualmente passam pela minha casa. Quer dizer, ela moveu céus e terra para que nós tivéssemos tudo o que era preciso. Eu tenho… também tenho familiares de lá que nós até acabámos por ir visitar. Não ficámos em casa dessas pessoas mas… mas, por exemplo, a minha tia deu-nos a morada e ela fez questão de nos mostrar onde é que era e como é que era e como é que nós íamos lá ter e como é que não sei o quê e o que é que apanhávamos e o quê que não apanhávamos e emprestou-nos um carro… por exemplo, ela arranjou um carro para nós podermos andar, foi tudo… e essa viagem marcou-me por causa disso! Fizemos outras também… nós temos outra também… por exemplo, outra experiência idêntica também foi aquela que nós fizemos quando fomos à Madeira, em que também era suposto ficarmos em casa de uma colega minha de faculdade, depois entretanto ela achou que… de repente começou a ficar preocupada porque achava que a casa não tinha capacidade para nos receber porque na altura nós já eramos seis e falou com o pai e o pai disponibilizou-se a ir ficar na casa da avó durante o tempo que nós lá estivéssemos, portanto, o pai deu-nos a casa durante uma semana e nós ficámos sozinhos na casa do pai que tinha três quartos, portanto, ficámos sozinhos no apartamento e entretanto, o padrinho de uma das minhas filhas tinha pedido à irmã que também morava lá, que nos arranjou… pediu a não sei quem que nos arranjou uma carrinha que tinha seis lugares para nós nos transportarmos com os miúdos… quer dizer, marcam-me as viagens por estas coisas! Não tanto pelos lugares que posso gostar mais ou menos… Madeira é lindíssima, Holanda também tem muita coisa para se ver, mas, mas sobretudo pelas pessoas que nós vamos encontrando nestas viagens que nós vamos fazendo.
E a volta às origens? Por exemplo, presumo que já tenha ido a Cabo Verde, não é? É a terra dos pais… Como é que é sentida a volta às origens? Ou seja, a ligação com a cultura caboverdiana?
Para nós… para nós, para mim e para o meu marido, de maneiras diferentes. Mas, para nós a ligação a Cabo Verde e às origens sempre foi uma coisa natural. Eu fui a Cabo Verde a primeira vez era miúda. Nem me lembro. Era pequenina ainda. Era bebé de colo, tinha para aí 2 anos e voltei doente, quer dizer, lembrava… sabia que tinha feito essa viagem porque ter voltado doente foi uma coisa que marcou imenso a minha mãe, porque não sabia o que eu tinha, depois estive internada, depois não sei o quê e depois “se alguém morrer?!” e foi todo um drama em torno daquela minha viagem. Depois, curiosamente, quando eu voltei a Cabo Verde foi em 99. Portanto, véspera de acabar o curso de Direito porque nessa altura tinha perspectivas de ir para Cabo Verde trabalhar apesar de nunca ter vivido lá. Porque apesar de nunca ter vivido lá, ouvia maravilhas de Cabo Verde, dos meus pais, sempre fomos muito próximos à cultura de Cabo Verde apesar de sempre termos vivido cá em Portugal e fora de bairros e, portanto, em que todos os nossos vizinhos eram brancos. Ocasionalmente encontrávamos um caboverdiano aqui ou ali, ou um angolano aqui ou ali, mas vivemos sempre no meio dos brancos como se costuma dizer, e portanto, a nossa aculturação cá foi relativamente fácil. Mas por outro lado, nós vivemos sempre com as tradições de Cabo Verde, a minha mãe sempre manteve essas tradições, nós sempre falámos crioulo em casa, sempre usámos lenço, púnhamos o cabelo no cordão, trançávamos o cabelo, usávamos combinação, comíamos cachupa, nós inclusivamente cochíamos o milho, fazíamos as comidas típicas de Cabo Verde, e eu lembro-me de escrever as coisas… cartas para o meu avó da minha mãe e de ler e de vice-versa, porque a minha mãe sabia ler mas… mas a determinada altura quando nós começamos a escrever, ela pedia-nos para escrever as cartas e portanto, nós sempre tivemos uma relação muito próxima com Cabo Verde. Portanto, para mim, ir para Cabo Verde na altura que acabei o curso era uma decisão natural, quer dizer, não… e depois também no tempo de faculdade conheci alguns estudantes que tinham vindo para cá,, bolseiros… e que estavam cá, pronto, a estudar para depois regressar e que também… também não, eles de alguma maneira confirmaram a ideia que eu já tinha de Cabo Verde. Portanto, para mim, na altura fazia todo o sentido acabar o curso e ir para Cabo Verde. Era uma coisa naturalíssima. Entretanto acabei por não ir porque eu decidi ir a Cabo Verde nessa altura precisamente para ir perceber como é que as coisas funcionavam lá em termos de advocacia. Tirei o curso de Direito e portanto, para perceber como é que era para poder exercer lá. Na altura até colocava a hipótese de eventualmente fazer o CEJ, para o Centro de Estudos Judiciários para ser juíza e fui a Cabo Verde na altura para ir falar com a ministra da justiça na altura, com o objectivo de perceber quais é que seriam as minhas perspectivas lá. Como é que estava o mercado, o que é que era preciso, o que é que não era preciso e não sei quê e para grande desilusão e surpresa minha a ministra não se mostrou minimamente interessada no meu regresso a Cabo Verde. Ela passou todo o tempo ou grande parte do tempo que nós estivemos juntas a dizer que eu nunca tinha vivido em Cabo Verde e que, portanto, provavelmente não iria ter capacidade de viver lá porque era tudo muito diferente de Portugal e que isto e aquilo e que não sei o quê, quando para mim não fazia diferença nenhuma porque nós apesar de vivermos cá e termos água potável em casa e essas coisas todas, portanto, o normal aqui, sempre vivi muito de acordo com… com… com a cultura e a vivência de lá. Portanto, para mim aquilo era… fazia parte de mim. Não era uma coisa estranha e para além disso eu já tinha estado em África antes. Não em Cabo Verde mas, para conhecer, mas… mas já tinha estado na Guiné, já tinha estado em Moçambique e em sítios em que as condições eram muito piores do que as condições que eu encontrei na casa da família da minha mãe quando fui para Cabo Verde… pronto, a família da minha mãe e do meu pai… pronto para mim não era uma coisa do outro mundo. Nós sempre fomos habituados a viver com o essencial, nunca nos faltou nada como já disse. Mas para nós o luxo ou as mordomias próprias daqui não… pelo menos para mim, nunca foram essenciais e nessa medida poderia perfeitamente prescindir delas e trabalhar em prol daquilo que eu achava que era o que fazia sentido que era trabalhar em prol de um país que poderia melhorar, que poderia não sei o quê. Mas ela fez sempre questão de dizer que se tivesse… por exemplo, eu pus a hipótese de entrar no CEJ por via de Cabo Verde para depois poder ir para lá para fazer a minha estrutura e ela disse-me sempre que nunca me daria a bolsa havendo pessoas que tivessem… portanto, estudantes de Cabo Verde que tivessem não sei quê. Eu, tudo bem, não queria que ela me desse uma bolsa, mas em situações normais eu concorreria à bolsa e poderia ter direito à bolsa, porque havia testes para fazer, tenho ideia… e ela dizia-me que se tivesse que escolher entre mim e um que estivesse lá, que nunca me daria a mim e que… e depois, pôs sempre uma série de entraves que a mim, francamente, causaram-me alguma estranheza. E na altura, não havia ainda Ordem dos Advogados ainda em Cabo Verde nem nada, portanto, poderia trabalhar teoricamente querendo ser advogada com qualquer escritório que lá estivesse e começar a trabalhar. Teria a licenciatura e portanto, estaria habilitada teoricamente para, mas ela mostrou… não mostrou abertura nenhuma e isso para mim foi determinante na decisão de não ir e de não ficar. Não tanto pelo país e não tanto pelo que poderia fazer lá, mas porque tive a sensação de que não me queriam lá ou que não seria bem-vinda lá. E isso a mim causa-me alguma estranheza, como digo, mas… tanto que eu até aí nem sequer… estavam os meus colegas doidos todos à procura de escritórios, a mandar currículos e não sei o quê e eu nem nunca tinha mandado um único currículo porque não… porque não fazia parte dos meus planos ficar em Portugal. Eu tinha pensado… lá está! Lá começa a história dos planos… Eu tinha pensado… durante o curso eu tinha pensado que acabava o curso e ia para Cabo Verde trabalhar. E foi nisso que eu me foquei, portanto, nunca me preocupei em procurar aqui um sítio para estagiar e um sítio para ficar. Quando voltei de Cabo Verde, aí sim, comecei a pensar no assunto. E ainda assim, ponderei durante algum tempo o que é que eu haveria de fazer, porque pois é?!, não é por causa daquilo que a ministra diz que eu vou deixar de ir para Cabo Verde, porque se existem hipóteses, existe não sei o quê… mas depois cheguei à conclusão que, de facto, a maioria dos bolseiros que estavam cá, pelo menos os que eu conhecia, tinhas costas quentes, digamos assim. Eram filhos de fulano de tal ou tinham alguém colocado em tal parte ou já sabiam que poderiam ir fazer isto ou fazer aquilo, mesmo aqueles que acabaram o curso três ou quatro anos depois de eu ter acabado e que já estavam na faculdade quando eu entrei, e portanto, pensei… bem, eu não tenho lá ninguém. Tinha lá o meu avô, mas que era uma pessoa do interior, que era uma pessoa simples, que era uma pessoa da terra e portanto, que não era filho de fulano e de sicrano que me pudesse abrir porta onde quer que seja, portanto. E eu achei que lá como cá bastaria o meu trabalho para poder chegar a algum lado. E aquilo que eu fui lá tentar fazer foi tentar perceber como é que era o mercado e achei que a ministra seria a pessoa privilegiada e mais capacitada para me dizer com o que é que eu poderia contar, onde é que eu poderia ir e o que é que eu poderia fazer. Isto quando ela me disse precisamente o contrário: “Vê lá se queres mesmo vir!”, “Vê lá se tens mesmo a certeza!”, que “ Não vais aguentar!”, “Não vais ficar aqui!” e depois também não sei o quê… e “Nós não te vamos… nós não te vamos facilitar a vida em nada!” Eu não queria que me facilitassem, mas queria que pelo menos me deixassem estar e não me pareceu que fosse essa a postura, então acabei por desistir e por ficar cá e um dos perigos que me tinham dito sempre foi “Atenção! Se queres ir para Cabo Verde, então faz o estágio… depois do curso, faz o estágio e depois vais para Cabo Verde porque se a coisa correr mal, vens cá e entras num escritório qualquer.” E eu achava sempre: “Não, eu vou para lá e vou ficar! Se por absurdo correr mal e venho para e então faço um estágio e desenrasco-me como toda a vida me desenrasquei.”, também não seria por aí. Mas não, o percurso depois acabou por ser completamente diverso e fiquei por cá. 00:38 - E em termos culturais, se tivesse que apontar pontos positivos à cultura caboverdiana e pontos negativos, o que é que seriam?
Eu acho que os pontos positivos é que o povo caboverdiano é um povo trabalhador, normalmente são pessoas muito sérias, ahhh… que dão valor à família, que dão valor ao trabalho, que dão valor às coisas boas nesse aspecto. Ahhh, acho que é um povo empreendedor, portanto há… costuma-se dizer que há um português em todo o lado do mundo, e há um caboverdiano com certeza ao lado desse português, portanto há caboverdianos espalhados por todos os cantos do mundo e… e normalmente, encontra-se muito (mas acho que isso é típico de cada imigrante) encontra-se muito a coisa de voltar, de ir à terra, de zelar pelos que estão na terra e isso foi uma das coisas que eu aprendi com a minha família, muito com a minha mãe e com o meu pai, que é os meus pais estavam cá mas sempre mandaram dinheiro para Cabo Verde, sempre ajudaram aqueles que lá estavam e isso foi uma coisa que sempre se manteve na minha família. Portanto, acho que nesse aspecto o povo caboverdiano é um povo trabalhador, é um povo de gente inteligente, trabalhadora e amiga dos seus amigos, amiga dos seus familiares, amiga dos seus. O aspecto negativo, talvez porque sejam muito trabalhadores e muito sérios eventualmente não olhem… não olhem muito longe, não sejam muito ambiciosos e isso às vezes é negativo. E infelizmente, os casos que nós vemos de ambição é ambição pelo dinheiro que dá sempre em problemas e descamba e… e esse tipo de situações assim. Mas de resto não… eu diria que tendem, porque não olham muito longe, a não se importar no trato na vida comum, a ser um tanto ou quanto subservientes desde que corra tudo bem, quer dizer… conformam-se com aquilo que lhes é dado e com aquilo que a vida lhes permite e não se chateiam com isso. Isso não é necessariamente mau, também tem o seu aspecto positivo, mas em termos de fazer desenvolver, de fazer crescer, poderá não ser a melhor abordagem, a melhor perspectiva.
E com que aspecto da cultura caboverdiana é que te identificas mais?
Com… com as ligações à família. Com a maneira como… como olham pelos seus e como olham e como acolhem os seus. O povo caboverdiano é um povo acolhedor para toda a gente: para os da sua família e para os de fora. Eu sempre fiquei muito impressionada com a história dos “djunta mon” que a minha mãe nos falava sempre. Aquela coisa do cada um ir trabalhar para a terra dos outros e ajudarem-se mutuamente e não sei quê, aquela historia do pai dela ter uma casa na estrada, portanto, num sítio de passagem e estar sempre aberto a dar um copo de água mesmo quando tinham que ir apanhar água sabe Deus onde para ter água em casa e dar um prato de comida e por aí… Isso foi uma coisa que eu enraízei muito, portanto, nesse aspecto também sou muito generosa e muito dada e acolho facilmente e ajudo muito facilmente, muito fruto daquilo que eu recebi da minha mãe. Portanto, nós na minha casa, os meus filhos já não falam crioulo… ahhh, apesar do meu marido também ser caboverdiano nascido cá, os meus filhos não falam crioulo mas… mas os meus filhos lidam com os primos que falam crioulo e, e… não… acho que não será aí ainda que se perderá a identidade ou o que é mais típico de Cabo Verde, quer dizer… mas acho que sim! Acho que é mais isso: acho que é mais o ser família, o ser… o ser…, pronto, o ser dos seus, acho que é aquilo que mais me caracteriza daquilo que é próprio da cultura caboverdiana.
E em relação à cultura portuguesa? Pontos positivos, pontos negativos…
Ui!!! Sei lá! Não sei! Aí é mais difícil! Ahhh, acho que os pontos positivos é de… acho que os portugueses têm uma capacidade natural de dar a volta à situação. Acho que isso é um aspecto muito positivo. Que passam pelas maiores… aliás, em qualquer situação, os portugueses têm sempre uma maneira de dar a volta. Seja boa, seja má, acabam sempre por dar: o português é criativo nesse aspecto. Portanto, é um criativo não para a criatividade pura e dura, mas é um criativo do desenrascanso. É um povo que se desenrasca bem em qualquer sítio. O português é por natureza desenrascado, eu acho. Ahhh… aspecto negativo: não sei! Acho que o português, se calhar corro o risco de estar a ser injusta, mas acho que o português é um povo um tanto ou quanto invejoso, no sentido de tudo o que o outros têm eu também quero! Posso não querer fazer o mesmo esforço mas eu quero tudo o que os outros têm ou gostava de ter! Portanto, não é… não é aquela inveja visceral e má, mas é inveja neste sentido. Acho que é uma coisa que caracteriza um bocado os portugueses.
E com o que é que te identificas mais na cultura portuguesa?
Identifico-me muito com a história do desenrascanso, quer dizer, uma pessoa que é a filha do meio de cinco irmãos e que cresce numa terra em que não é sua… por exemplo, eu lembro-me que quando tava na.. quando entrei para a faculdade houve uma altura em que eu estava muito em cima do muro: não sabia se era portuguesa ou se era caboverdiana porque aí os apelos eram mais fortes. Porque enquanto no secundário a coisa era sempre mais ou menos, ahhh… e o facto de ser boa aluna ofuscava tudo o resto, quando cheguei à faculdade é diferente! O mundo abre-se de outra maneira, um universo muito maior de gente e de misturas e de não sei o quê… mas também é um sítio maior eventualmente de segregação se for para ter lugar! Porque eu estudei com filhos de ministros, filhos de presidentes, filhos de não sei o quê e era a filha do homem do campo e da mulher da siderurgia e isto junta-se e eu juntei-me ou aproximei-me mais dessas pessoas porque também era boa aluna como eles, mas na faculdade havia, de facto, essa coisa do… também por se calhar haver alguns estudantes caboverdianos que tinham vindo para cá, e depois havia ali um… pronto, havia aquela coisa… tava muito em cima do muro! Até que eu cheguei à conclusão que: eu não tenho que estar em cima do muro porque eu na prática sou as duas coisas. Sempre fui as duas duas coisas, não me sinto estrangeira cá e não me sinto estrangeira em Cabo Verde. Não me sinto fora de nenhuma das duas culturas, sinto-me parte das duas e portanto, acho que não… não sei!
E hoje? Se tiveres que te definir, como é que te defines em termos de identidade?
Eu diria que sou, sou sobretudo… sei lá! Eu diria, sou mãe, mulher e profissional, talvez por essa ordem. Ahhh, porque a minha primeira preocupação são os meus filhos neste momento, para todos os aspectos… ahhh, procuro ser mulher nas minhas coisas todas, mas não deixo de ser profissional e advogada, quer dizer! Acho que tudo se fundo e se trans… e se, e se toca! E se, e se… é transversal a tudo aquilo que eu faço durante todo o meu dia. Organizo o meu dia para que possa no fim do dia, aquela hora certa, ir para a minha família e estar disponível para a minha família, portanto, acho que sem família não seria nada! Acho que se não fosse advogada poderia ter outra profissão qualquer, mas sem a minha família não seria quem sou e, portanto, nesse aspecto isso é a coisa mais importante para mim neste momento e neste momento definir-me-ia nesse sentido como mãe e mulher. Agora, como portuguesa ou caboverdiana: eu acho que sou as duas coisas, acho que tanto… eu lembro-me, há uns anos… há uns nos estive num… fazia parte de uma mesa redonda num, numa palestra, já não me lembro bem, numa conferência que foi organizada pela liga, ai como é que se chama, aquilo não é liga, pelo movimento das migrações católicas, já não me lembro bem como é que se chama, ahhh… e estava no painel e foi engraçada que era uma coisa que eu não tinha reparado, mas quando eu falava, falava sempre em nós quando era portugueses e falava sempre em nós quando era em nome dos imigrantes, portanto aquilo… e isso foi uma coisa que eu achei piada porque estava lá a Maria Barrroso, a mulher do Mário Soares e ela depois quando falou no fim disse que achava curioso de eu ter falado sempre em nós como portuguesa e ter falado em nós e era uma coisa que eu nunca tinha reparado, mas de facto isso é uma coisa que acaba por ser um bocado porque eu sinto as duas coisas. Eu não acho que são eles que vêm para cá e não acho que somos nós que os recebemos cá. Portanto, é um bocado… em mim, acho que se funde as duas coisas porque lá está sempre fui criada muito como caboverdiana, muito porque a minha mãe passou-nos o grosso e acho que a melhor parte da cultura de Cabo Verde, mas por outro lado, também cresci muito portuguesa! Cresci num bairro de brancos, os meus amigos, os meus melhores amigos, os mais antigos, são todos brancos e nessa medida sinto-me tão portuguesa como caboverdiana, não cindiria as coisas.
E aproveito já para perguntar como é que era o ambiente no bairro onde cresceste?
Era um ambiente perfeitamente normal. Como disse, não era propriamente um Bairro, eu morava na Quinta do Conde, antes de ir para lá nós morávamos em Paio Pires, mas disso não tenho memória. Eu tinha 3 anos quando, ainda não tinha 3 anos feitos quando nós saímos de Pio Pires porque a estrada… fizeram uma estrada para a siderurgia, para fzer serviço à siderurgia ou para servir a siderugia que passava pelo sítio onde ficava a casa onde nós morávamos, que era uma casa arrendada, portanto nós mudámos de casa na altura, fomos mudar para a casa da Quinta do Conte porque a casa foi despropriada. Na altura fomos morar para uma garagem que o meu pai transformou… eu nem sei se foi bem o meu pai porque aquilo era uma garagem enorme que tinha uma casa-de-banho e não sei quê, que o meu pai fez umas obras e transformou aquilo numa casa, portanto tinha… era uma casa com três quartos, ahhh… que tinha uma casa-de-banho, uma cozinha, uma marquise, que era marquise/sala de jantar e tinha um quintal enorme e esse sítio foi o nosso mundo até aos meus 14 anos. Ahhh, até aos meus 13, 14 anos. E… E tínhamos… quer dizer, a minha mãe… lá está, a boa maneira caboverdiana e porque também estava no meio de brancos, lá está, aquilo que ela dizia era: “vocês, o vosso mundo é este quintal! Toda a gente pode vir aqui, vocês não vão para casa de ninguém! Não vão incomodar ninguém porque eu não quero que hoje ou amanhã venham dizer que os teus filhos foram, fizeram, não sei quê, não sei quê!” Sempre fomos, todos … Nós sempre fomos crianças bem educadas nesse sentido. Nunca fomos crianças que respondessem torto, que falassem mal aos velhos, que não respeitassem os adultos e não sei quê… não! Antes pelo contrário! Todos nos portávamos sempre muito bem nesse aspecto e… e portanto, a vida ali à volta com os amigos, com os vizinhos, era tudo fácil! E nós morávamos numa zona de vivendas! Portanto, nós morávamos naquilo que era uma garagem, mas que não era bem uma garagem… uma garagem enorme dentro de um quintal que tinha a vivenda, que era a vivenda da senhoria, mas que eram dois lotes de terreno grandes. Portanto, nós tínhamos um universo ali e toda a gente vinha para o nosso quintal. Nós começamos a ir para os outros quintais bastante mais tarde, já bastante crescidos. Íamos para casa desta ou daquela vizinha em particular porque tinha miúdos da nossa idade e porque a minha mãe tinha mais confiança com elas e porque deixava e porque gostava e porque não sei quê… mas a nossa convivência ali foi fácil. Nós ainda hoje, já não moramos na Quinta do Conde há muito tempo, aliás eu voltei a morar na Quinta do Conde. Nós saímos da Quinta do Conde quando tínhamos para aí… quando eu tinha para aí 13 para 14 anos e agora tenho… vou fazer 38, portanto, nós temos… e continuamos a voltar lá. Quando vemos os vizinhos, toda a gente gosta de nós, toda a gente… nós falamos com toda a gente, temos uma boa relação com as pessoas na mesma, não… sei lá! Acho que foi uma vida perfeitamente normal, por isso a princípio a minha mãe também para nos proteger um bocado não queria que nós fossemos porque não queria eventualmente, pode ser que na cabeça dela não queria que nós fossemos discriminados, mas facilmente oi uma coisa que se ultrapassou porque quando as pessoas se conhecem, depois a cor da pele deixa de fazer diferença. Eu lembro-me muito de ouvir quando era miúda: “Ai, estes meninos andam sempre tão limpinhos!”, como se os pretos tivessem que andar sujinhos! Mas, pronto! Lá está! Era outro tempo e as pessoas não estavam tão habituadas e portanto, e como eramos só nós ali, e as pessoas diziam sempre isso: “Ai, estes meninos andam sempre tão limpinhos!”. A minha mãe diz sempre: “posso andar com uma saia rasgada, mas vou andar sempre limpa!” E portanto, acho que isso é normal!
E planos para o futuro?
Não tenho assim planos muito… não tenho nada, não tenho planos muito delineados. Eu nesta altura trabalho… trabalho no mesmo sítio onde estou desde há quase 14 anos, portanto, não vou dizer que queria sair daqui, mas gostava de ter oportunidade de fazer algumas coisas diferentes. Gostava de por exemplo ter mais tempo para a minha família e gostava de trabalhar mais numa área que eu gosto muito que é a de propriedade intelectual e que faço alguma coisa, mas não faço o quanto gostava. Ahhh, mas planos concretos para mudar isto não tenho. Não tenho planos! Acho que os meus planos é ser… o único plano que eu tenho é trabalhar… [interrompe a empregada de mesa: Quer um café? Responde: Não. Obrigada!] O único plano que eu tenho é trabalhar mais e melhor, ser mais competente naquilo que vou fazendo, fazer uma formação em direitos de autor que isso é uma coisa que está nos planos não sei para quando, ahhh… e procurar de alguma maneira, também não sei bem qual, trabalhar mais em propriedade intelectual. De resto não tenho um núcleo de planos maior. Faço tensões de continuar casada, faço tensões de continuar a aproveitar a minha família… eventualmente, não sei se a família aumentará ou não, pelo menos nesta conjuntura não sei se vamos aumentar ou não, mas também se formos aumentar não é um drama nem é nada por aí além… ahhh, sou uma pessoa simples, não tenho planos complicados. Um dia de cada vez e pronto!
E como é que te vês daqui a 10 anos? Assim, daqui a curto prazo?
A curto prazo… Não é assim a tão curto prazo quanto isso! Ahhh,… eu gostava de… eu gostava de daqui a 10 anos estar só a fazer propriedade intelectual, gostava! Aqui ou noutro sítio qualquer, gostava de estar a fazer só propriedade intelectual. Gostava de ter… sei lá! Não digo obras publicadas porque isso também não é uma coisa que me ofusque ou que me coiso… mas gostava de ser, efectivamente, uma profissional muito reconhecida nessa área. O que eu gosto… gostava que o meu filho mais velho já estivesse na faculdade e a outra também que já teriam idade para isso. Ahhh, gostava de ter a certeza que os meus filhos são gente de bem. Nessa altura já terei a certeza disso. Humm, não muito mais. Pá, não… sim, gostava de ter mais folga de dinheiro, gostava de ter mais não sei quê… mas não é por aí! Gostava que os meus pais fossem vivos. Gosta muito que os meus pais fossem vivos e mais nada assim de especial.
E em termos de formação? Pretendes continuar, fazer algum curso ou…?
Eu gostava de fazer uma pós-graduação ainda em Direitos de Autor. Uma pós-graduação, uma especialização ou uma coisa qualquer em Direitos de Autor. Gostava! E gostava de eventualmente fazer qualquer coisa também na área de patentes, mas fora isso, não! Não tenho assim nada, nada que me seduza neste momento. Não tenho assim mais nada…
E agora falando um bocadinho do grupo de amigos. Como é que é o grupo de amigos? Ahhh, a constituição? Se é um grupo ou se são vários grupos?
Não, eu tenho… nós temos o… pronto, temos o ciclo familiar, pronto, que para nós é um ciclo familiar alargado. Em termos de amigos, temos muitos amigos vindos de grupos diferentes. Eu não tenho… eu acho que não posso dizer que tenho uma melhor amiga. Tenho várias amigas, mas não creio que posso dizer que tenho uma melhor amiga. Já tive uma melhor amiga mas depois, entretanto, a vida não nos separou, não estamos zangadas nem nada disso, mas ela vive fora, mal nos vemos e as coisas mudaram muito nesse sentido. Mas, nós temos… se formos falar em grupos, tenho o meu grupo de amigos do escritório, tenho umas amigas do tempo da faculdade, ahhh… tenho alguns amigos da igreja, porque nós somos católicos praticantes, o meu marido deu catequese até ao ano passado e um dos objectivos que eu já tive era dar catequese mas deixei de ter desde que a minha família começou a crescer… ahhh, depois temos os amigos da igreja, temos os amigos da faculdade, temos os amigos da… temos amigos do escritório, dos nossos locais de trabalho e os da igreja são vários. Portanto, temos amigos da igreja onde nós estamos e de vários grupos de movimentos da igreja dos quais nós fazemos parte ou fizemos parte e depois, temos agora um grupo novo de amigos que está a surgir que tem a ver com amigos ligados aos nossos filhos. Ahhh, de pais dos nossos filhos… pais dos nossos filhos?! Pais de amigos dos nossos filhos! Mas aí temos mais um ou dois, portanto, mas de grupos é assim. Não tenho muitos amigos caboverdianos. Não tenho. A maioria dos meus amigos são brancos. Acho que isso é natural porque vivi sempre cá, nunca vivi em bairros e portanto, os caboverdianos para mim são muito família. São quase todos… mesmo os que não são, são quase todos como se fossem da família, portanto, eu vejo os caboverdianos mais como família do que propriamente como amigos. Não que tivesse algum problema com isso, como é óbvio, mas porque não calhou por via das relações e do percurso que eu fiz que terá sido um pouco diferente do percurso que a maioria dos caboverdianos que vivem cá terão feito. Ahhh, mas pronto! Os meus amigos são maioritariamente brancos e eu percebi isso quando uma vez fomos a um casamento e o meu filho disse assim: “Ó mãe, estão aqui tantos castanhos!” E depois, de facto, eu percebi que nós íamos a muitas festas, imensas… sempre fomos porque temos muitos amigos e íamos a muitos casamentos e a muitos baptizados e, de facto, normalmente não vamos a festas de “castanhos”, como ele dizia. Portanto, as festas de “castanhos” eram normalmente as festas da família. E aí sim, por acaso foi a festa de uns amigos que eram caboverdianos, que são caboverdianos e foi aí que eu percebi quando o meu filho me disse aquilo. Quer dizer, são aquelas coisas que para mim são tão naturais que nem penso muito no assunto.
E sente que o percurso que fez foi influenciado por algum dos amigos desses circuitos todos?
Não, isso não! O meu percurso foi muito influenciado pela minha família. Sobretudo pela minha família. Sobretudo se calhar mais pela minha mãe. Não por amigos. Porque eu sempre fui muito independente e os amigos sempre tiveram um lugar mas nunca foram eles que determinaram o meu percurso. Posso dizer, por exemplo, eu faço… eu, o escritório onde estou é um escritório onde é sócio um dos meus monitores da faculdade. Foi meu monitor na faculdade, eu era boa aluna, dava-me bem com ele, nós gostávamos muito dele porque ele era um rapaz mais novo e era bem disposto e não sei quê, e nós convidávamo-lo muito para jantares de turma e não sei quê e depois, no fim do ano, eu ainda não tinha para onde ir, não tinha enviado um único currículo e ele perguntou-me se não queria mandar o currículo para cá porque eu estive todo o ano na expectativa de que eventualmente iria para Cabo Verde, ele perguntou-me se não queria mandar o currículo para a sociedade onde ele trabalha e mandei… foi o único que mandei… não foi único, mentira! Ou foi? Esse foi o único, que entreguei-lhe em mão e depois entreguei um outro a um colega de faculdade caboverdiano que me disse para lhe dar o currículo que ele ia dar a um amigo e não sei quê… Depois na altura fiz as duas opções, o outro era em Almada, este era em Lisboa, acabei por optar por este porque eles em Almada não pagavam a estagiários. Porque senão eventualmente até teria ido para Almada porque era mais perto. Mas, mas pronto! Mas não… o meu percurso, se quisermos ir por essa via, então o meu único amigo… vá… que determinou o meu percurso terá sido esse que recebeu o meu currículo e o deu ao escritório onde eu estou. Porque de resto, não… toda a minha… quer dizer, é claro que nós vamos bebendo das pessoas que nos rodeiam, mas, ahhh… na igreja… da igreja, as pessoas que me influenciaram mais foram alguns padres que passaram no meu percurso ou que fizeram parte do meu percurso de vida. Amigos, amigos, não!
E agora vem uma pergunta um pouco descontextualizada, mas tenho que perguntar se acha que Portugal é um país racista?
E acho que já não é! Que já não é um país racista! Eu acho que ainda há racistas em Portugal e há muitos até, mas acho que já não é. Só que agora as palavras são sempre… é tudo muito polido, tudo muito velado. Já não se ouve: “Preto, vai para a tua terra!” ou isso… Isso agora, quando se ouve isso até os brancos ficam com os cabelos em pé, portanto, isso já não se ouve. Mas há outras maneiras mais requintadas de se ser racista. Acho que aí ainda é, ou… não sei! Pode-se dizer ou já não é ou ainda tem resquícios aqui e ali. Por natureza, acho que não é. Acho que não.
Nem tem conhecimento de episódios ou…?
Ui!!! Há muitos! Há muitos, isso posso dizer, há muitos, há muitos… especialmente em situações com a polícia, há muitos… com a polícia, com instituições, há muitos… há muitos! A maneira como tratam os pretos de um modo geral e as pessoas que moram em bairros de um modo particular, há muitos! Mas, ahhh, mas acho que isso são rasgos e depois assim, se calhar se eu estivesse num bairro teria uma resposta muito diferente, se eu tivesse vivido num bairro teria uma resposta muito diferente, mas na minha vida, na minha realidade, não diria que há muito. Há, ainda há! Em termos, nesses contextos concretos em que supostamente o crime se toca com o bairro e a polícia e não sei o quê… há muito! Aí há muito e nota-se! E isso é uma coisa que basta nós irmos ao Prior… lembro-me que acompanhei um processo que ocorreu no Seixal e que eu ficava horrorizada com as coisas que ouvia os polícias dizerem. Eles falavam comigo como igual porque eu era advogada na altura, já era advogada estagiária na altura, portanto, eles olhavam para mim e falavam para mim como igual. Não olhavam para mim como preta, olhavam para mim como branca, mas eu ficava horrorizada com algumas coisas que eles diziam… Mas, pronto, também era fruto da realidade deles, porque eles olham para os pretos de um modo geral como criminosos porque vão aos bairros ou estão naqueles bairros e depois há muito não sei quê e associa-se muito. Portanto, acho que nessa perspectiva, quer dizer, se nós pusermos… se eu olhasse para os pretos como eles olham, achando que a maioria dos pretos são criminosos, acho que seria quase que inevitável ser-se racista, é o que eu penso. Mas aí, eles só olham assim porque querem e porque só têm aquele contacto com aquela realidade e depois vêm dizer: “Ai, não, eu também tenho amigos pretos!”, mas pronto, é aquela coisa… Vamos demorar?
Só mais duas perguntas.
Eu estou a perguntar porque senão íamos embora e marcávamos para outro dia…
Só duas! Se tivesse que se definir como é que se definia como pessoa?
Eu? Ui!!!
Defeitos e qualidades… por aí.
Humm, sei lá, eu sou trabalhadora e batalhadora, mas aquela coisa que eu dizia que os caboverdianos às vezes são conformados e não sei quê, não sei quê… sou um bocado assim. Em termos profissionais, por exemplo, eu sei que poderia singrar muito mais se não me conformasse com aquilo que tenho. Mas como também não olho para a profissão como um fim, mas como um meio para poder prover para a minha família, se calhar acho que isso… por um lado, há um lado de frustração que gostava de fazer outras coisas, mas por outro lado isso também me segura porque isso, não é a parte mais importante da minha vida. Isso é uma das partes da minha vida que contribuem ou que confluem para a parte mais importante da minha vida que é a minha família, portanto, não é… não é para motivo de agonia ou o que quer que seja. Ahhh, eu acho que sou uma pessoa que à primeira vista posso não ser muito acolhedora ou muito simpática, mas sou uma pessoa sociável, preocupada… ahhh, e até… até generosa/afável porque se percebe aquilo que eu estou a dizer. Defeitos: às vezes sou… sou bastante teimosa, não é… não é… às vezes sou um bocado teimosa e como diz um amigo meu, tenho mentalidade de pobre. E portanto acho que esses são os meus maiores defeitos. Não… às vezes sou um bocado bruta, mas não sou capaz de ser uma pessoa muito meiguinha, muito… não! Sou mais ríspida, às vezes, mas… não sei! É sempre estranho falarmos de nós. De nós nesta medida! Quando temos que nos rotular é mais difícil. Mas acho que sim, acho que sou isso.
E se não fosse advogada, seria…
Oh! Se não fosse advogada, eventualmente seria professora de filosofia ou assim, se tivesse acabado o curso. Mas não, mas não me vejo a fazer isso! Eu gostava de… se não fosse advogada, uma das hipóteses que eu coloquei sempre foi ter um infantário… uma escola, não era bem infantário, era uma escola porque acho que é importante a educação e passar bons valores e prestar assistência à família. Porque eu se abrisse uma escola, não seria uma escola comum. Não seria uma escola em que o miúdo tem uma pontada de febre e tem que ir a correr para casa, não! Seria uma escola em que os miúdos pudessem ficar se os pais precisam de trabalhar não vão faltar ao trabalho porque não sei o quê… Seria uma escola em que ira tentar focar nos miúdos, nas necessidades, mas sobretudo educar para os valores mais do que para aquilo que as pessoas são. Isso era uma coisa que eu gostava de ter. Se eu pudesse ter um negócio seria uma coisa no âmbito da educação, por aí… O que é que eu gostava de ser? Gostava de trabalhar só em propriedade intelectual e em termos, se não fosse advogada poderia ser agente oficial, mas eu sou advogada e agente oficial só que exerço mais advocacia do que a propriedade intelectual, portanto… mas não seria pintora, nem escultora, nem nada dessas coisas que Artes não é o meu forte. Seria… provavelmente, seria, seria focada para aquilo. Se não tivesse que trabalhar para ganhar dinheiro, aquilo que eu faria era trabalhar com miúdos, com miúdos de bairro, no sentido de encaminhá-los, no sentido de lhes… de os acompanhar porque às vezes esses processos estúpidos que eles às vezes têm por causa desse tipo de situações… e isso era uma coisa que eu gostava de fazer. Gostava de trabalhar com miúdos, gostava! Gosto de edificar pessoas… de tentar que as pessoas sejam melhores e aí sim, isso era uma coisa que eu gostava de fazer.
Menti, não eram duas, eram três.
Diga?
Menti, não eram duas era três! risos
Ah! Sim…
E agora a última pergunta é: o que é queria transmitir aos seus filhos? O que é que é realmente importante que eles aprendam?
Os valores! Acho que eles têm que aprender que devem… têm que ser honestos! Que isso pode não lhes dar dinheiro, mas que vai lhes dar paz, vai lhes dar amigos, vai-lhes dar constância na vida deles, vai-lhes dar família. Se eles forem verdadeiros, se eles forem gente de bem, forem preocupados com os outros, se forem… se tiverem capacidade para amar o próximo acho que vai correr bem. E isso é o que eu gostava que eles aprendessem. Foi isso que eu aprendi da minha mãe e é isso que eu gostava de lhes transmitir. Que eles têm que ser gente do bem, independentemente do resto. Podem não ter dinheiro, podem não ser importantes ou podem não ser reconhecidos ou podem não ser não sei o quê, mas… acima de tudo têm que ser gente do bem. Isso era o que eu gostava!
Obrigada!