Vou fazer só aqui o enquadramento… idade?
37.
Nacionalidade?
Portuguesa.
Residente? Zona?
Mira Sintra.
Escolaridade?
Licenciatura.
Profissão?
Animadora sociocultural.
Número de irmãos?
Cinco.
Idades?
risos as mais novas têm 31, fizeram 31 agora, são gémeas. Depois os do meio têm 33.
São gémeos também?
São gémeos também, um rapaz e uma rapariga. Desculpa lá não têm 33, têm 35, são dois anos de diferença. Depois o mais velho tem 38 e eu tenho 37.
Estado civil?
Solteira.
Número de filhos?
Zero.
Nacionalidade do pai?
Caboverdiano.
Escolaridade?
Do pai?
Sim?
O meu pai tem a 4.ºclasse.
Profissão?
Pedreiro, só que agora teve um AVC, está em casa.
Nacionalidade da mãe?
Caboverdiana.
Escolaridade?
4-º classe.
Profissão?
Doméstica. Aliás não sei se dona de casa é considerado… existe uma definição de doméstica e dona de cas, a minha mãe é dona de casa, não é doméstica de profissão.
Contexto de emigração?
Contexto…
Porque é que os teus pais vieram para cá?
À procura de melhores condições de vida.
Então podemos começar com o seu percurso escolar?
Sim, sim, podemos.
Falas-me um bocadinho como é que foi a tua primária, secundária?
A primária foi em Portugal, na minha primeira zona de residência, aquela que eu vivi até aos 31/32, posso dizer 32, porque eu estou nesta zona vai fazer 5 anos, onde eu estou agora. A minha zona de residência era Portas de Benfica, Venda Nova, cresci muito ali naquela zona de Benfica, Portas de Benfica, Venda Nova. Foi tranquila, primeiro até à 4.º classe, com… choque cultural, muita gente fala nisso, mas foi muito tranquilo em termos de aprendizagem. Da 1.º à 4.º classe foi lá, depois a preparatória e os restantes foi ali à volta daquela zona. Até ao 6.º ano foi muito tranquilo. Depois mais tarde quando cheguei ao secundário tive assim algumas dúvidas de continuação ou não continuação, para ajudar também a nível familiar. No 10.º a minha mãe teve um problema de saúde, e pronto estava mesmo… a minha disponibilidade e o meu estado não era assim uma coisa natural. Sentia-me muito perturbada a nível físico e emocional, e quando estava no 10.º, já no secundário, que foi já na zona da Falagueira. Aí tive que fazer algumas pausas para poder ajudar. Mas sinto que a nível escolar nunca tive assim grandes problemas, ao nível de aprendizagem, a nível de acesso, sinto mesmo que sempre tive ótimos resultados, sinto mesmo isso.
Reprovaste?
Reprovei uma vez. Aliás foi nesse ano que eu estava na dúvida se ia deixar ou não ia deixar. Era na transição para o 10.º ano. Depois, depois mesmo de seguir e fazer as provas até ao 11.º aí estive dúvidas, depois de uma experiência que eu tive no brasil como voluntária, estava cheia de vontade de fazer um trabalho social e aí pensei se calhar vou tirar animação social, técnico-profissional. mas nunca por aquilo que hoje acontece aos nossos miúdos de incutição da forma como estão estruturadas, que querem meter os nossos miúdos todos nesses cursos, que muitas vezes não é por incompetência é por falta de aprendizagem ou capacidades. Eu queria estar ligada a algo mais prático, eu mesma, e queria rapidamente fazer algo, mas porque vinha com esse bichinho da tal experiência. Acabei por voltar para trás para a cruz vermelha portuguesa e fiz três anos de animação sociocultural, com uma base já de 11.º ano, mas tinha que se voltar atrás para entrar, tinhas de ter o 9.º ano. Fiz o 10.º, 11.º e 12.º do curso técnico profissional de animação sociocultural. Exerci muito na área, trabalhei durante algum tempo. Eu acabei a minha formação em 2002/2003, em simultâneo com a minhas experiências de missões em moçambique. Depois fui trabalhando sempre na área, em vários centros sociais e instituições. Depois mais tarde deu-me o click de avançar mais nos estudos, depois mais tarde em 2006/2007 resolvi inserir-me no curso de estudos africanos a partir também das experiências que eu fui tendo em moçambique. Eu por acaso tive essa sorte na vida, experienciar primeiro e depois tirar as formações. Tive esta facilidade e esta sorte. Depois, resolvi tirar a licenciatura de estudos africanos e aí trabalhando em simultâneo com a santa casa da misericórdia de Lisboa, já na área do acolhimento. Não foi fácil porque trabalhar 8 horas, full time, mesmo tendo o estatuto de trabalhadora, trabalhador estudante, por turnos, foi duro conciliar os timings, não é. A minha sorte é que eu por estar tão apaixonada pelo curso, de gostar tanto do curso que eu estava a tirar que me sentia altamente envolvida. E foi muito fácil ao nível da matéria, de perceção, de entendimento, é muito fácil. Porque era tudo aquilo que eu queria também, perceber as minhas raízes, não só Cabo Verde, mas toda a África que está em mim e em todo o meu meio de socialização. Foi muito fácil. A paixão levou-me a que fosse muito fácil tirar o curso. Eu acho que foi na altura certa, porque os temas abordados são duros, como o imperialismo, o colonialismo, o massacre feito à própria comunidade é muito dura, e é preciso ter uma certa maturidade para assimilar algumas informações. Acho que foi na altura certa. Este foi o meu percurso escolar e a minha vida escolar. sinceramente assim no geral acho que sempre fui boa aluna. Sempre tive este gosto, que ainda tenho. Ainda sonho em poder estudar mais, mas estou sempre a estudar, também é uma verdade. Tenho sempre coisas para ir estudando. Gosto de aprender, gosto muito de aprender. Acho que o percurso escolar não fica estagnado. Na minha visão sem querendo clichés, na minha visão vamos sempre adquirindo informação, temos é que saber usá-la.
Como é que eram os teus hábitos de estudo?
Muitas vezes…a minha sorte em termos de estudo, não pelo meu pai… tenho uma mãe que veio de uma realidade… acho que quase todo o caboverdiano quando aprecia bem a formação e educação, está na base do caboverdiano, claro que depois as circunstancias da vida, nomeadamente dentro de uma sociedade europeia, uma vida muito laboral, as coisas acabam por se perder. Na minha ótica isso acaba por acontecer. A minha mãe era dona de casa e estava muito disponível para nós enquanto filhos. Apesar da dureza de cuidar das nossas coisas, da casa, acontecia uma coisa muito interessante, primeiro eu tenho uma memória muito forte de quando entrei para a escola, da minha mãe adquiri os livros e da forma como ela mostrou os livros, até me emociona. O cuidado de ela dizer, agora vais entrar para a escola, lembro-me de me sentar ali com ela e ainda tenho a imagem do livro e tudo, de mostrar um novo percurso que na tua vida vai acontecer. Ela sempre esteve muito ligada à educação, à educação e neste caso à formação. Sempre foi muito atenta a isso. Eu lembro-me que na primária quando chagávamos para fazer os trabalhos, nós não tínhamos ATL nem nada disso, na altura, a minha mãe sentava connosco para fazer os trabalhos de casa. Ás vezes por exemplo na matemática eu tinha muitas dificuldades nas contas de dividir que a professora me estava a ensinar e só consegui perceber com a explicação que a minha mãe dava e a paciência, e como ela explicava- eu lembro-me de chegar ao quadro e ficar espantada como é que eu conseguia. Tenho um hábito de estudar, mas que não adquiri sozinha, mais tarde… mais tarde foi assim um bocadinho mais complexo, fomos crescendo e a minha mãe começou a ficar com muitas tarefas internas dentro de casa e começou a ser um hábito muito autónomo. Por querer mais… o que acontece é que muitas vezes estamos numa realidade à volta nos puxa a outras coisas, a outros estímulos. Mas a nível de estudos acho que depois de passar esta fase mais primária não era uma coisa matemática de todos os dias a faze-lo, mas sempre tive… eramos muitos irmãos, mas só eu e um dos irmãos gémeos é que tínhamos mais ligação com os estudos, mais tarde. Até à adolescência estudávamos um bocadinho, mas muito por imposição paternal. O meu pai não acompanhava, mas exigia que assim o fosse. Mas a minha mãe acompanhava, não é. Mas depois começou a ser uma coisa muito autónoma, aquelas coisas que os miúdos fazem hoje e que nós fazíamos quando eramos mais novos, que é estudar nas vésperas dos testes, dois dias antes. Aconteceu-me muito assim, já mais tarde, não de uma forma tão regular de como era pequena. No entanto, acho que a base foi muito bem introduzida. Depois a nível, quando chega aquele nível mais faculdade eu como estava a trabalhar 8 horas por dia, eu tinha uma grande paixão por presenciar as aulas, para perceber o que o professor dá, sou uma pessoa de gostar de beber o que o professor dá. Aquela coisa de sentar e estudar já era muito cansativo para mim. Trabalhar 8 horas, sentar e estudar, era complexo. Por isso sempre gostei de puder presenciar as aulas, entender a matéria, participar na aula, a minha maior base de estudo era essa. Claro que tinha que ter apontamentos, e quando tinha de estudar e não entendia muito bem matemática, era com grande esforço que o fazia, mas o meu trunfo mesmo foi a paixão pela matéria em si, que me ajudou muito a nível de perceção. Depois à volta o ambiente que se cria dos colegas que estão nesta área dos Africanos, é uma coisa que… as pessoas que estão à nossa volta não percebem, não tiveram acesso a estas informações e ficam indignadas que essas temáticas são estudadas. Pessoas que estão à nossa volta… é uma coisa muito interessante, mesmo os nossos pais, tios, padrinhos e vizinhos, são uma base a nível de matéria que a faculdade se calhar não nos dá. A gente começa a abordar esses temas e as pessoas ficam, aí não… eles lembram-se daquela temática, lembram-se… e isso é uma coisa muito interessante. Os mais velhos a darem a mim e aos meus colegas essas informações. Falar por exemplo a morte em Cabo Verde, os choros, coisas que são descritas, as pessoas têm esta base cultural tão forte que o que está escrito não é tão verdadeiro, tão real como a experiência daquele adulto. Dai ser muito fácil para mim a aquisição a nível estrutural de aprendizagem por paixão e por ter uma rede de pessoas que me foram dando essas informações e os hábitos foi muito elevados com esta gana, com esta vontade. A faculdade não tem assim nada de extraordinário a nível da perceção porque foi uma coisa muito apaixonada mesmo. Depois enquanto estudante de animação aí também estava a fazer part-time. Eu sempre estudei e trabalhei, porque a minha base económica não era degradante, mas não era nada que me pudesse dar ao luxo de estar tão à vontade para ficar só a estudar, não é. Infelizmente eu acho que quem estuda, deve só estudar, sinceramente, porque tem que haver uma entrega, uma disponibilidade. O que acontece é que a nossa realidade de muita da nossa comunidade é que toda a estrutura é tão fraca que os miúdos não conseguem agarrar-se só ao estudo porque têm de ajudar o pai, ajudar a mãe. Tem que haver uma análise na nossa sociedade o porquê que há essa fragilidade. Não é falta de capacidade, é porque ele não é burro, é porque há toda uma estrutura que é frágil e sinceramente… se bem que fazer um part-time de 3 horas, acabam por te dar estaleca para a vida, criar uma certa rigidez. Mas, acho que quem estuda deve só estudar, sinceramente.
Era o ideal?
Era o ideal, sim.
Quais eram as disciplinas que normalmente as que tinhas melhores notas e as que tinhas piores?
As disciplinas em que sempre tinha melhores notas eram história e português, porque mesmo dentro dos estudos africanos sempre fui muito apaixonada pela literatura, fiquei muito na dúvida entre escolher o tronco história, desenvolvimento e cooperação, e literaturas e culturas, porque eu gosto muito destas duas áreas, são áreas que eu sou muito apaixonada, até porque a literatura, na minha ótica, tem de ter uma base histórica, tem de ter um fundamento histórico muito forte. É o que acontece com a nossa literatura das lusófonas, moçambique e angola tem uma base na literatura, porque tem uma base histórica, tem uma história muito agitada, muito forte. Não é o mesmo que acontece com Cabo Verde podemos falar da saudade a nível poético, mas não é igual a uma guerra civil, não é igual a essa influencia histórica o que acaba por dar uma foça na escrita ao nível da criatividade. Não quer dizer que não tenha… mas é diferente nesse sentido. Eu sempre gostei muito dessas duas disciplinas, historia e português foram assim duas disciplinas que eu gostei muito, tanto que eu sou de letras, sou apaixonada por letras. Gosto também de geografia, mas as melhores notas eram a português e história. Aliás eu já cheguei a dar comunicação e dei sempre história e português, sinto-me à vontade e gosto. Sou apaixonada mesmo por história e português.
E as que não gostavas muito eram?
Era matemática. risos Matemática e físico-química não gostava. Também gostava de ciências, mas a matemática e físico-química, não quer dizer que eu tivesse piores notas, mas eram daquelas disciplinas que não me deixavam voar. Eu sempre fui muito de criar, sou muito criativa e parece que me tiram ali o chão. Matemática e físico-química… é assim, ao nível de demonstração haviam coisas engraçadas, mas não… é muito estático na minha forma de visualizar e daquilo que eu procuro.
Como é que vês o ambiente pelas escolas onde passaste?
Eu acho que a minha primária foi muito tranquila, até porque todos os meus irmãos estudaram na minha primária, o que acontece é que ao nível de diferenças, dentro da minha sala por exemplo era a única de origem caboverdiana, mas a nível geral da escola, havia sempre miúdos da mesma origem cultural do que eu. Um ou outro, não sei dizer no geral, mas acho que a nossa zona já estava a habituar-se a ambientar-se às diferenças. Tenho 38 anos, estamos a falar da primeira leva que começam a nascer cá também. Já começam a nascer cá e os que começam… não somos os primeiros, mas já somos dos primeiros a nascer cá. Até havia um paternalismo preventivo nesse sentido, tipo boneco de peluche, no sentido… é verdade eu tenho essa memória de acharem graça ao cabelo…aliás eu tinha uma professora muito encantadora, não sofria esta coisa… aliás o paternalismo positivo ou a descriminação positiva, havia isso. Não sei se posso considerar dessa maneira, ou… claro que também há coisas negativas, os miúdos, os próprios miúdos onde nós estamos inseridos começam a ver a diferença e começam a trazer de casa aquilo que é falado na mesa, os miúdos são tão verdadeiros e há abordagens que nós não estamos muito a par. Começamos a crescer e começamos a…a… somos chamados à diferença. Mas quando sou pequena não tenho noção, quando sou pequena não tenho essa noção, só quero é brincar. Mas quando sou grande, vou analisando estas diferenças. Mas eu sinceramente fui muito feliz, senti muita felicidade. Enquanto criança senti muita felicidade a brincar. A diferença começa a sentir-se quando se vai para a preparatória, para a preparatória que começas a ter conversas que cresceram contigo e que tens uma herança cultural. Começa a haver partilhas, não é, começa a haver confronto da diferença, da descriminação que se calhar já não é tão positiva e o paternalismo também não é tão positivo. Na preparatória já houve alguma coisa aqui a remoer e a chatear. Quando falo da preparatória digo 6.º e 7.º para aí, mais ou menos. No 5.º ano ainda estás a tentar absorver e ainda é tudo novo, não é. Mas as conversas começam mais tarde, muito mais tarde. Eu acho que aí nem temos tanta noção, nem temos tanta noção. Eu acho que estas conversas começam e tenho o click agora, começam mais no secundário. A própria confrontação com situações e a própria forma de ver as coisas, às vezes não da melhor forma porque a guerra é tanta, não só do que tu recebes, mas daquilo que tu dás, é muito forte. Mas eu sempre cresci. Não é comparável aos tempos que nós estamos a viver hoje. Nem sei… eu trabalhei na santa casa com trezentos e tal jovens dos cursos técnico-profissionais e sempre foi um ambiente duro, não foi aquela coisa… muitas vezes os ataques que vinham eram coisas que os miúdos bebiam em casa. Os miúdos ouviam em casa e depois tu confrontas. Mas não era nada violento, não era nada a nível de pátio. Não era nada assim comparável ao tempo de hoje. Nada, porque se não sinceramente eu sempre fui uma pessoa pronta para responder e agora analisando, as coisas fizeram moça, claro que fizeram, não vou mentir nessa parte, doeram, o que está mal aqui. Até que ponto… começas a confronta e quando começas a confrontar começas a mudar para o outro lado. E lembro-me mais ou menos para aí no secundário as mudanças foram acontecendo, daqui, mas também dali, não é, dos dois lados da conversação. Mesmo ao nível da faculdade foi muito suave, porque sem qualquer tipo de apocrisia, estás na faculdade estás com colegas de estudos africanos parece que estamos todos virados para o mesmo. Estamos todos embicados para o mesmo. Claramente que temos sempre pessoas a vestirem a pele, a verdade não está tão ao de cima. Depois há debates que aí já tens uma visão adulta, mais madura, já tens uma estaleca para a conversação, mas dá-te gozo, porque sentes que estás crescida, que cresceste, mas há coisas que fazem moça. Até nos tempos de hoje há coisas que estão mal estruturadas, estão mal definidas, quando estamos numa ebulição de crescimento e formação, o ideal é por as coisas na mesa. Eu por acaso considero que os ambientes escolares não foram assim tão violentos. Foram meios muitas vezes duros, meio duros, porque não é fácil assimilar certas informações, nem receberes algumas agressividades verbais, não é fácil, não é nada fácil. Mas sinceramente no meu sentir não considero… temos de tentar perceber de onde é que viemos, quem é que somos e como é que podemos ser colaborantes, é muito nessa ótica. Crescimento é igual ao sofrimento está mais que comprovado, e nós estamos a crescer, estamos nesta ebulição, como é que me posso dar melhor, como é que eu posso responder aquela situação e às varias situações, depois cresces com isso, cresces a saber como é que tu podes… as manobras, as estratégias também de confrontar e sentires esse conforto, porque ti vais à procura disso. Tu vais para ter espaço de conforto, qual é a melhor forma. Depois vais crescendo e a abordagem não é igual, não respondo igual a uma situação de alguém adulto e maduro. O adolescente é desculpado, ele está a crescer e está a formar-se enquanto pessoa, e foi isso que aconteceu, estávamos todos a crescer e a perceber o que é que se passa aqui neste meio onde eu nasci, porquê que eu estou no meu lugar, muitas vezes. Não é… eu cresci aqui, nasci aqui, porquê que este vem de outro lado e ocupa o meu espaço e o meu lugar. Porque às vezes o lugar não é só interno, muita gente às vezes é abordada, as pessoas dão-te uma abordagem… este não é o teu lugar. Era esta a ebulição. Mais um motivo psicológico… que é duro e é violento. Só que não está na primária nem está na preparatória e depois começas a adquirir essas informações de uma forma mais clara no secundária. Até porque essa coisa não vem de ti, vem da comunidade com quem tu te sentas. E pá, esta história não é só minha, esta história vem também daqui, dalém, dalém, e começas a ver a força da comunidade e nessa comunidade que depois vais sacando respostas para as situações menos positivas. Eu acho que os ambientes escolares foram bons, mas havia esta dureza de tu perceberes como é que ti podes te encaixar nesse espaço. Comparadas com as coisas de hoje que há essa agressividade, não tanta, mas as agressividades são outras, outras… a questão da imagem, não podes vestir o gordo, não podes vestir o feio, não podes… a agressividade de hoje é muito… é uma coisa louca, quer dizer…
E em relação aos professores existe algum que te tenha marcado, pela positiva ou pela negativa?
Sim, tenho. Aliás por incrível que pareça os meus professores de português sempre me marcaram pela positiva. Tive muita sorte nessa linha porque elas eram mesmo boas, pronto. As professoras eram muito boas, e ensinavam com vocação e dedicação. Eu sempre gostei, mas elas fizeram-me gostar mais da forma como as coisas foram abordadas e as coisas que nos foram ensinadas. Aliás, até hoje sou amiga delas, porque tivemos uma ligação tão boa e tão forte que hoje sou eu que vou lá às aulas delas falar um bocadinho da Africa ou do voluntariado. Elas convidam-me para isso e é uma coisa que eu gosto, dá-me gozo. A relação foi tão boa que ainda nos mantemos unidas e vou muitas vezes lá à escola e elas sabem do meu percurso, vamos falando. Agora com esta coisa da rede que é o Facebook, não é. Elas convidam-me muitas vezes a ir lá à escola e as professoras de português foram as professoras que me marcaram muito, muito nesse sentido. Português e história também. Lá está, se calhar as coisas não são por acaso. São professores que sempre me marcaram bastante e tenham… deixado na minha ótica uma semente de paixão, não só por aquilo que davam, mas da forma como ensinavam, porque uma das minhas maiores guerras quando estou a trabalhar com jovens adolescentes é a forma como o professor… a falta de vocação. A falta de vocação, disponibilidade, a forma como abordam o jovem adolescente. Os miúdos são terríveis é verdade, mas não há vontade de ensinar e tem sido uma discrepância terrível. Eu posso dizer que na primária, preparatória e secundária são essas as minhas áreas que eu mais gostei. Agora assim confrontos com professores de não ter gostado, talvez o meu professor de inglês me tenha marcado muito, não quer dizer que eu tenha dificuldades a inglês, mas pela abordagem, a forma rude a forma de conversação, não tinha graça nenhuma. Acho que essa professora marcou-me bastante nesse sentido. Porque aqui conta muito… o professor está ali para lecionar, é verdade, mas conta muito… na minha forma de estar, aquela forma de dedicação, estou vocacionado ou não, estou paciente ou não, não é relevar a malcriação, mas uma pequena graça. Marcou-me assim de forma negativa. Agora já no contexto da licenciatura, marcou-me pela negativa um professor também, porque era um professor que nos estava a dar espaços mundiais, África, neste caso África, estava a falar de contexto africano, contexto demográfico, estatístico, é uma área que eu não domino muito, porque tudo o que é estatística e é números estou fora, mas a questão não é essa, a forma de abordar foi um autentico cubo de gelo a falar de África. Ninguém fala de África assim risos, na minha ótica não estava para ali virado. O que me marcou muito pela positiva foi o meu professor de literatura que era um professor apaixonadíssimo. A forma como dava as aulas, vi nele um modelo de lecionar na universidade, aquela forma informal e fantástica de chamar os alunos à participação, de fazer-nos pensar e picar-nos mesmo para as discussões. É bom, fazer sair daqui, pensar. Vi ali um modelo de formação muito forte, gostei muito desse professor. Aliás fui muito atrás dele nas cadeiras onde ele ensinava, procurei muitas vezes porque gostava da mensagem dele. Marcou-me muito. Aliás ele e os professores de história também. Apanhei professores muito bons na faculdade, de história e ensinaram-me bastante. Gosto disto, gosto quando nos dizem, ao nível de história, gosto muito quando nos dizem isto é o que eu estou a dar, mas lança-te à descoberta, tipo procura mais do que isto. Havia professores que me diziam isso abertamente. A faculdade é também aquela coisa rígida e estática que dão aquilo que dão, e que podem dar também. A gente cresce a ouvir essas coisas todas. Essas corrupções.
Quem é que achas que te influenciou mais no teu percurso?
Eu acho que quem influenciou mais desde a primária foi sem dúvida a minha mãe e a minha madrinha. Até porque elas cresceram as duas juntas em Cabo Verde, têm uma base muito forte ao nível de formação, aliás elas têm uma relíquia, tiveram o privilégio não só de estudar, mas acesso a muitas fontes. Elas andavam lá em Cabo Verde na Igreja, estavam sempre metidas nestes grupos de jovens e nestas coisas todas. Elas tiveram muita… uma base muito forte de formação, porque isto tudo é formação, nem estou aqui a falar de religião, mas elas beberam muito desta fonte e elas próprias são umas pessoas que estão sempre naquela de lecionar, naquela postura tranquila de partilha, de falar das suas raízes, de falar das coisas. Foram as pessoas que me marcaram muito, muito a nível educacional. Tiveram muita, muita influencia naquilo que eu procurei e quis mais para mim. Porque a minha madrinha também é uma pessoa muito presente na minha vida, aliás é amiga da minha mãe desde sempre. Sempre vivemos perto umas das outras. Fim-de-semana estava sempre em casa da minha madrinha. Teve sempre muita influencia naquilo que eu procurei, o que eu procurei enquanto estudos académicos, não é, estudos e enquanto pessoa. Educação e formação. Tudo o que eu sou não tem a ver só com aquilo que eu adquiri socialmente, mas estas pessoas que me influenciaram e são a referencia muito forte para mim. Aliás são referencias muito fortes para mim, estas duas pessoas.
E como é que foi feita a escolha pela animação sociocultural?
A escolha partiu assim, eu sempre quis fazer algo social…
Quando é que te deste conta, que a tua veia estava aí?
Foi aliás, como eu disse há pouco, na altura eu deixei de estudar porque a minha mãe estava doente, ficou boa, no entanto, depois voltei, entrei no 10.º e voltei. Fiz o 10.º e eu tinha o grupo de jovens, influencias paternais e outras coisas mais. Estive sempre num grupo de jovens e dentro do grupo de jovens, eu e um grupo de jovens fomos selecionados para fazer voluntariado para o Brasil e no Brasil estive essa experiência de entrar em contacto com as pessoas, conversar com as pessoas, estar com as pessoas, poder com nada ou sem nada, dar o mínimo de conversação, poder estar com elas. Aquela coisa mínima que cada um de nós pode fazer, alertar, motivar… e quando cheguei disse quero uma coisa social. Quero fazer isto, quero fazer animação social. Eu gosto disso, planear, fazer atividades, de estar com as pessoas. E foi aí que eu resolvi tirar animação sociocultural. O intuito foi… aliás eu sempre estudei e trabalhei, foi duro conciliar as coisas, e estágio, e estágio, mas lá está, como eu dizia há pouco tive a sorte de experienciar para depois estudar. Foi fácil e não foi duro. Era uma coisa que eu gostava. Duro foi ao nível de logística e de organização dos timings, lá está. Foi aí que surgiu a animação sociocultural. Foi aí, mesmo aí. Lembro-me muito bem do Brasil.
Nessa altura tinhas mais ou menos que idade?
Tinha 21, para aí 21 anos.
E se não tivesses optado por essa área provavelmente tinhas ido para quê?
Não sei, eu estava em humanidades quando estava na escola oficial eu estava em humanidades. Mas eu por acaso desde pequena que eu quis ser professora, desde pequena sempre disse que ia dar aulas. Lembro-me de fazer com os meus irmãos mesas e eu era a professora, eu era a professora. De fazer mesas com os meus irmãos. A área de formação teve uma coisa muito forte em mim, tanto que mesmo estando na animação, sempre fiz sessões com os meus miúdos de formação. Sempre gostei de preparar a matemática e preparar isso com eles. Isso foi uma coisa que eu sempre fui muito treinada no grupo de jovens, nós tínhamos de apresentar temas e foi aquela coisa que fui ganhando estaleca, dentro de animação nós tínhamos muitos momentos de apresentação de temáticas e acabei por criar um à-vontade a nível de oralidade e de apresentação temática. É uma coisa que eu ainda sou apaixonada, tanto que depois da licenciatura tirei a formação de formadores parque é uma coisa que eu gosto de fazer. Se futuramente não arranjar na minha área de animação ou mesmo nas licenciaturas de estudos africanos, pode ser que a formação seja uma das coisas que eu possa direcionar porque é uma das coisas que eu gosto bastante. Adoro aprender e adoro ensinar. É uma coisa que está muito dentro de mim. Ensinar e ser professora é uma das coisas que também tenho muito dentro de mim, até porque gosto de história e gosto de português. São das coisas que me dá panos pelas mangas, ao nível de conversação, ao nível de partilha.
Com que idade começaste a trabalhar?
Eu comecei a trabalhar aos 19 anos, aos 19 anos, foi mais ou menos… lá está foi quando fiz aquele break que a minha mãe ficou doente e uma coisa muito interessante, que não tinha formação nenhuma, não tinha concluído… foi do9.º para o 10.º e fui… havia um concurso aberto para animadora de posto de informação no bairro do Zambujal. Incrível, que na verdade, ainda hoje estou a pensar nisto, eram muitas pessoas que foram para essa entrevista e eu fiquei. Fiquei no bairro do Zambujal que era um espaço multipartilhado, entre a AFID que é uma associação que trabalha com deficientes, entre a antiga morna que hoje já não existe, a antiga morna, que era uma associação luso africana e a entre a associação caboverdiana, e entre a associação unidos de Cabo Verde. Era assim um sitio partilhada e cada um tinha as suas valências e as suas áreas de intervenção dentro do bairro do Zambujal. Eu fiquei, foi o meu primeiro trabalho. Aí também comecei a ganhar esta paixão pela intervenção comunitária. O que é que acontece? Acontece que eu fiquei como animadora de informação, que basicamente o objetivo era aos jovens desempregados do bairro, não só desempregados, mas ao nível de instituições, quais carências e necessidades informativas que eles tivessem, ia busca-las lá no posto de informação. Criávamos panfletos, era um trabalho muito acessível e de crescimento pessoal. Eu própria comecei a adquirir informações institucionais, sociais, de várias áreas, desde emprego, univas, para dar ali… muito interessante a criação do projeto, era um projeto piloto e tínhamos vários parceiros. Foi o meu primeiro trabalho, numa área que eu nem sequer… depois fiz outros trabalhos… quando o projeto acabou, é o mal dos projetos, uma coisa tão boa como esta deixa de ter financiamento e tudo vai-se por agua abaixo. Este projeto acabou e depois da minha experiência do Brasil de animação, fiz um part-time já no KFC no colombo, na altura, que me deu muita estaleca ao nível de equipa, cresces, cresces muito. E este foi já o meu segundo trabalho que não tinha nada a haver. Depois a associação unidos de Cabo Verde em part-time e fui adquirindo…e mais tarde a santa casa. E antes da santa casa no centro social do bairro da Boba, tive lá três anos e também, foi uma experiência muito ao, também cresci muito. Depois na santa casa.
E como é que soubeste… normalmente inscrevias-te…
Este eu soube… as pessoas conheciam-me e achavam que eu devia gostar desses concursos. Normalmente eram as pessoas que me diziam e davam-me essas informações para eu me inscrever. Depois no KFC é aquela coisa básica do centro comercial e inscreves-te. O centro social do bairro da Boba tinha uma amiga que fazia parte da direção, e disse para concorrer também e acabei por concorrer e acabei por ficar. Foi uma experiência brutal ao nível de trabalho também. Depois na santa casa inscrevi-me… inscrevi-me e fui ficando também. Na santa casa não conhecia ninguém, inscrevi-me e tem aquela teia, são precisas tantas fases para a pessoa ficar na santa casa. Portanto é isso. No centro social foi alguém que me indicou para concorrer, eramos vários e eu acabei por ficar no centro.
E que tipo de trabalho desenvolvias na santa casa?
Na santa casa era um trabalho, na primeira fase dos 4 anos, 3 e 4 anos, no último ano e meio é que foram outras coisas, trabalhava no lar de acolhimento com crianças que eram negligenciadas pelos pais, trabalhava no lar de acolhimento por turnos, tínhamos três horários, ou das 7h às 15h, ou das 15h às 22h. Era um lar de acolhimento, normalmente com crianças dos 7 meses ou 8 até aos 15 anos, às vezes um bocadinho mais consoante se forem portadores de deficiência ficam connosco até mais tarde. Temos miúdos mais velhos, que não são autónomos para estarem sozinhos e sem apoio, com várias situações históricas e familiares. Muitos casos são negligência, maus tratos físicos e psicológicos, outros abandonados, outros morte de um dos pares, do pai ou da mãe. Inseri-me nestes trabalhos pelo curso de animadora sociocultural. Na área da licenciatura de estudos africanos nunca encontrei assim nada cá em Portugal que abrissem… já concorri a vários, mas nunca calhou o facto de me chamarem. Acredito que haja uma montagem interna muito grande, mas já concorri a vários trabalhos de cooperação, de desenvolvimento, mas a experiência da santa casa foi muito enriquecedora. Aquilo é um trabalho que me deu muita estaleca, muito a nível de área interventiva e de área social. Se calhar um dos melhores a nível de intervenção social e comunitária. Depois mais tarde trabalhei com uma população especifica, que era uns jovens que estavam a tirar cursos técnico-profissionais na aldeia de Santa Isabel, trezentos e tal jovens diariamente de zonas da periferia da grande lisboa, de muitas das nossas comunidades, não é, de tudo um pouco. De miúdos externos, a 10% de miúdos em regime institucional, mas muito pouco. Normalmente nesses casos não temos miúdos de instituições, mas é uma coisa que começou também a crescer agora. Talvez na altura que eu estava eram 10%, agora já temos vários, talvez 20% em regime de instituição. Mas… miúdos externos, entravam às 9h e saiam às 17h e fazia o trabalho todo de animadora, educadora, monitora desde o espaço não letivos, estar com eles, proporcionar atividades, criação de atividades. Sempre tive sorte dos sítios onde eu estive de por acaso desenvolver este trabalho de animação. Relacionar e criar temáticas, fazer isso com eles. É um trabalho muito interessante, gostei muito. Até a minha veia de formadora veio muito ao de cima com estes jovens. É uma relação que eu gostei bastante, até ao nível de dar e receber, de troca, de sentir no imediato que estás a construir algo e que podes, não é tão soberbo, e sem falta de humildade e vaidade, tu sentes mesmo que estás a contribuir para alguma coisa. É bom essa referência também, eles terem essa referência e os motivos de outra forma. Infelizmente saí porque não concordava com a coordenação interna e vi muitos desfalques na formação, naquilo que davam aos nossos jovens. Naquilo que davam, nas ideias que criavam, no complexo de inferioridade que criavam, nas ideias pré-concebidas, para mim é contranatura e é contranatura naquilo que eles sentem. Choquei-me muito com algumas situações, choquei essencialmente por causa disso, porque eu tinha um papel, e a minha missão é outra. Incrível, pessoas que lecionam, pessoas que coordenam, quadradas desta maneira. Foi um dos meus grandes fatores de saída. É um trabalho num espaço brutal, é um trabalho brutal, com uma má coordenação. Não se pode ter tudo.
Saíste, tiveste fora?
Sai e fui para Inglaterra. Um mês depois de ter saído… fui para o pé dos meus irmãos. Tenho lá dois irmãos a viver em Inglaterra, um dos gémeos e o meu irmão mais velho. Tive 14 meses com eles, lá não tive a trabalhar na área. Um dos meus grandes objetivos de estar em Inglaterra era perfeiçoar a língua, a língua inglesa e juntar algum dinheiro. Consegui as duas coisas. O inglês ainda tenho de aperfeiçoar mais, porque numa dinâmica de conversação enriquece a língua porque se não mata. Já dizia alguém e bem, a língua é um músculo, tem de ser trabalhado. Estive lá 14 meses, gostei da experiência de ter estado lá. No entanto tive muitos momentos duros, mesmo. Culturalmente choquei-me um bocadinho, choquei-me. Na forma das relações sociais, para mim relações sociais não passam só por relações laborais, preciso de calor, sou uma mulher quente nas relações afetivas. Apesar de ter estado com os meus irmãos, o que acontece é que cada um de nós tinham uma vida muito laboral. Eu trabalhava 12h por dia, não é. E o meu irmão mais novo, outras 12h por dia e muitas vezes fazia horas extra nos fins de semana e o meu irmão mais velho a mesma coisa. Quer dizer…. Aliás o mais velho já está lá há 13 anos, casado com a minha cunhada e a minha sobrinha e o meu irmão mais novo está lá há 7 anos. Mas a nível de integração, eu gosto muito de estar com as pessoas, sou muito ligada à família e… senti um bocadinho este calor… eu digo tenho muita sede, preciso muito… foi uma experiência forte mesmo ao nível de conhecimento, ao nível de tato do que eu posso ou não fazer ao nível laboral. Duas áreas que não tinham nada a haver com aquilo que eu estava habituada cá. Uma delas era com o meu irmão mais velho, o meu irmão mais velho trabalha com produção biológica e eu fazia part-time com ele, numa dessas áreas. Depois trabalhava, não era com a minha cunhada, mas perto da minha cunhada numa companhia inglesa com uns capacetes de rúgbi e críquete e o trabalho era muito duro para as mãos. Mesmo muito… muito duro. Uma pessoa que nunca trabalhou na vida num trabalho assim, muito duro para as mãos, não estou habituada àquela forma de contexto, de tendinite, oh meu deus… Eu não sou nada manhosa, mas ninguém merece. Aquilo foi mesmo muito duro ao nível laboral. Mas, abre horizontes. Por mais duro que seja, tu abres horizontes. Nunca pus em causa ser capaz de o fazer, mas começas a questionar a tua vida, começas a questionar, não é só o eu ter estudado, eu não fui talhada para isto, estás a fazer aqui o quê. Começou este bichinho, estes pensamentos a surgirem-me. No entanto, chego a Portugal confiante que…vamos lá ver se encontramos aqui qualquer coisa, isto também não pode estar tão mal assim. Cheguei em finais de junho, finais de junho, estive um mês a descansar porque foram 12horas diárias a trabalhar e muitas vezes sem fins de semana também, porque fazia biscates. Cheguei e eu mereço aqui um mês estar aqui a descansar. Muita família, mas sempre a enviar currículos, a falar e a enviar currículos. O que acontece é que tive a sorte de ter sido chamado três ou quatro vezes para trabalho, só que os ordenados são uma falta de respeito. Os ordenados tiram-nos qualquer dignidade enquanto ser humano. Fui chamada, gostaram por mim e normal, eu tenho um currículo muito bom para trabalhar na área social e foram todas em lares de acolhimento. Os ordenados são uma falta de respeito. Se vamos intervir socialmente a colaboradora não tem de estar bem socialmente. É isto que falta aqui ao nosso país. Se eles querem que nós… porque os outros países respeitam isto, e eu digo uma coisa, se eu voltar a trabalhar para Inglaterra, vou trabalhar com os idosos, porque é uma dignidade. Todo o ser que trabalha na área social está dignificado, economicamente e socialmente, para intervir. Só assim é que faz sentido. Só que depois eu não fiquei, eu tenho de estar bem para dar, para cuidar de mim e cuidar dos outros. Se eu tenho um momento de mal-estar, eu nunca posso dar aos outros. Não me venham com histórias. Portugal está a perder aqui qualquer coisa que eu não sei, não sei o que se passa. Eu disse não, eu se calhar vou esquecer a minha área vocacional, eu dizia isso. Eu se calhar vou esquecer a minha área vocacional a nível de intervenção, a nível social, vou esquecer. Cá em Portugal vou esquecer, porque não me apanham nesse ordenado de 569€, não me apanham. Não vão me apanhar. Aqui com uma base económica de Inglaterra ainda me dá esse espaço de manobra para poder reagir no confronto com isso. Eu não sou rica nem sou filha de ricos, não é. O que me está a dar assim um bocadinho de espaço de manobra e também de confiança, porque não posso admitir que me paguem uma coisa dessas. Eu em 4h em part-time lá em Inglaterra com os meus irmãos recebia quase o dobro, em part-time. Depois começas a pensar na vida, se calhar é muito duro estar lá, mas se calhar… crias nichos de relações, dá que pensar, é uma falta de respeito, é completamente…tira toda a dignidade. Eu não tenho vergonha. Como é que não se envergonham de oferecer esses ordenados às pessoas. Só uma pessoa que está muito, muito, muito necessitada é que aceita uma coisa dessas e aproveitam-se claramente.
E a tempo inteiro?
A tempo inteiro. A tempo inteiro por turnos.
Não dá para conciliar com outra coisa.
Com nada, com turnos e com um fim de semana por mês. Mas eu morri… que é mesmo assim, não tens vida. A sério que falta de respeito, a sério.
Mudando um bocadinho de assunto, homens?
Homens, ultimamente tive relações claramente, mas coisas não funcionaram. Tive a minha primeira relação de 6 anos, com uma pessoa. Lá está, esta coisa de querer um bocadinho mais e também não aceitar… interrupção A minha primeira relação foi de 6 anos e depois aconteceram várias situações, uma delas que também dei fim à relação, foi uma traição. E eu psicologicamente a nível emotivo não soube lidar com isso e pus fim à relação. Funcionaram bem até haver imensa vida e até as coisas… haver partilha e respeito acima de tudo, que é aquilo que eu procuro numa relação. A partir do momento que tu sentes que existe um lado que enfraquece ou que se deixa fragilizar num momento, sou muito, muito dura em relação às relações, especialmente relativamente às relações afetivas. Não quer dizer que não seja flexível, mas sou exigente, porque se eu não faço, se eu dou de mim… foi 6 anos. Depois tive ali uma fase de três anos na luta contra esse luto. Não lidei muito bem com a situação, lá está, porque sou muito frágil, sou muito sensível nesse ponto. Custou-me muito a engolir esse sapo. Custou-me muito a gerir isso. Depois tive uma outra relação em que as coisas foram acontecendo, mas criei um bocadinho mais… ainda não encontrei uma pessoa assim certa, porque fui encontrando sempre situações que não favoreceram uma relação, aquilo que eu acredito que seja a… não existe relações perfeitas, mas não nos podemos eliminar nem anular, depois existe muita coisa... isto aqui não quer dizer que seja direcionado só aos homens afro mas que tanto no homem europeu, ou afro, ou asiático, ou americano eu não tolero machismo exacerbado, não tolero e não sou feminista. Feminista, mas feminina, feminina, mas feminista, é a minha teoria. Mas, há que haver dignidade e respeito e daquilo que procuro não tive ainda a sorte de encontrar alguém que se encaixa, houvesse um encaixe perfeito, como diz uma amiga. Até porque por esse grau de exigência, começas a crescer a tua lista de ideal começas também a arriscar, não é, e começas a ver que existe coisas em ti que também tens de trabalhar, não é. Porque não é só o outro lado. Cada vez mais flexível, cada vez a lista mais redutora, mais flexível. Mas acho que ainda está aí para vir. Mas foi este o percurso, assim um bocadinho complicado.
E de que maneira é que achas que estas pessoas te influenciaram no teu percurso?
Eu acho que encontrei, mesmo nos timings que estava com essas pessoas, encontrei pessoas…aliás para escolher essas pessoas tinham que ter alguma coisa que me diz alguma coisa. Atenção, não fazendo de mim melhor nem mais que os outros. Existem coisas nessas pessoas que me fascinavam e que apaixonavam. Encontrei sempre pessoas com ideologias comum, fortes a nível de conversação e essas pessoas fizeram-me crescer enquanto pessoa. Por amor de deus, no percurso tanto pessoal e comunitário, porque são pessoas que traziam um bocadinho delas nesse sentido e fizeram-me crescer, tiveram imensas influencias. Até nos pontos mais negativos tu depois analisas e estás mais calejada, mais crescida nê e dão-te sempre coisas. Nos tempos que houve vivacidade e houve relação, essas pessoas tiveram mesmo muita influência, nem que seja ao nível ideológico, de partilha, de ver como a própria família da pessoa funcionava e tu abres o teu leque relacional. Acima de tudo acho que abres o teu leque relacional. Cresces e ficas um bocadinho maior nesse sentido. Isto é uma grande influencia e as coisas que descobres de ti, a ideia de espelho, a imagem do outro.
E o que é que tu gostas de fazer nos teus tempos livres?
Nos meus tempos livres eu descobri uma coisa recente que é os meus momentos de lazer, isso acho que acontece com o mundo inteiro, com todas as pessoas, crescemos e mudamos, o que mais gostamos de fazer? Eu tive uma fase do secundário até chegar à faculdade que sempre gostei muito de ler, sempre gostei muito e sempre procurei muito romances históricos, então meu deus era apaixonadíssima por romances históricos, muito. Sempre li muito. Sou uma pessoa muito ligada ao desporto, mas tive de parar, agora não tanto. Gostava muito de correr, correr, correr. Até porque fazia muito bem aqui à cabeça, porque eu tenho um vulcão cá dentro e que correr ajuda-me a acalmar, mesmo na abordagem com os outros. Percebi que correr diariamente ou pelo menos 4 vezes por semana consigo ter aquela calma para abordar os outros pelo menos um bocadinho mais diplomática, sem ser malcriada, não quer dizer que seja uma pessoa malcriada, mas às vezes nós ouvimos com cada barbaridade é preciso teres aqui um limite e fazeres um travão interno para poderes dar resposta. Percebi que a corrida dava-me isso, tranquilidade. Depois tive uma fase sem correr, em Inglaterra comecei, mas depois parei porque com o trabalho não dava. Até porque é uma questão muito física, porque tenho tendências para engordar e fazia-me bem, juntava o útil ao agradável. Fazia-me bem à cabeça, e fazia-me bem ao corpo. Eram as duas coisas… correr foi até há bem pouco tempo e ler foi desde o secundário até chegar à faculdade. Depois houve coisas que comecei a fazer que comecei a sentir cá dentro, mas tinha imensa vergonha. Por exemplo quando era mais pequena gostava de dançar, mas tinha vergonha, tinha vergonha de dançar. Sempre tive muita vergonha de dançar, porque primeiro como eu sou muito tímida em relação às relações…respeito-te e adoro ver-te, mas a dança é qualquer coisa, a dança é sensualidade, a forma como as pessoas te tocam. Admiro aquelas pessoas que não têm vergonha e saem para a pista e começam a dançar daquela maneira. Admiro alguns, admiro que não têm vergonha nenhuma. Há dois anos ou três para cá, comecei a sentir um bocadinho mais, mais, mais solta e comecei a querer dançar, a gostar de dançar. Há danças que ainda não consigo fazer, mas descobri que consigo e posso faze-lo sem vergonha. E gosto, gosto de dançar, é uma coisa nova. É uma coisa nova na minha vida que estou a tentar soltar-me um bocadinho mais e tem-me feito muito bem à cabeça e ao espirito. É uma coisa que sempre que posso vou à procura e é uma coisa que quem diria isto quando era um bocadinho mais nova. Ainda tenho as minhas limitações, ainda tenho vergonha, mas se estou num ambiente e sábado estava com essas duas amigas, a Ângela e a Cristina, e foi muito fixe, até porque estou num habitat que me sinto à vontade estava com elas, mas sempre com as minhas reticencias, é verdade. É uma coisa que eu gosto muito, se eu puder procurar de fazer. Não deixei de ler, não deixei… tanto que eu quando sair daqui vou ao ginásio para praticar exercício, mas a dança é aquela coisa assim mais prazerosa, porque ela não me trás só aquela coisa de libertação traz-me também a cultura, que é aquilo que… danço outros tipos de dança, mas se eu poder procurar as das minhas raízes vou à procura disso. Para mim junta isto, junta este prazer, até porque às vezes oiço músicas que trazem-me um contexto histórico muito forte e que fazem-me aqui… eu sou muito sensível a isto, aquilo que ele está a dizer ou que ela está a dizer, traz-me isto. Até porque eu converso muito isso com a minha mãe, eu oiço muito a Elly de Almeida e eu gosto de ouvi-la ao pé da minha mãe porquê? Porque ela traduz-me muitas vezes aquelas entrelinhas que… a gente percebe tudo o que eles dizem, mas há coisas muito fortes ao nível de contexto linguístico. Acho engraçado até porque ela é muito nova e ela nasceu lá, mas traz toda uma tradição linguística que eu pelo menos não tenho acesso. Ela no outro dia, uma música que é joana da Elly, é altamente poética, altamente literária, uma forma linguística que não estava para aí virada sequer para perceber as entrelinhas daquela música que é muito forte. Está a cantar, mas eu não estou a perceber o que ela está… percebo tudo o que diz na linguagem, mas não percebo o que ela quer dizer, a mensagem. E gosto disso, porque a música e a dança traz-me isto, traz-me a aquisição daquilo que eu procuro. Eu procuro entender muito as nossas raízes. A minha paixão por tirar a licenciatura em estudos africanos não é pela experiência que eu tive em Moçambique, é porque dentro da minha área de animação sociocultural posso levar os nossos miúdos a amarem aquilo que é seu, as suas raízes. Querer juntar as duas coisas, esta minha missão de fazer eles aceitarem aquilo que é seu e apaixonarem-se por aquilo que é deles. Foi muito nesta ótica que da animação, do trabalho, para mim e para os outros. Levar as crianças a amarem aquilo que é deles, amarem as suas raízes. Até muitas vezes acontece dentro desta linha da dança e da música, fazer sessões com eles e falar de pessoas nossa, não é. Porque às vezes é dado todo um grupo de pessoas, que também faz parte do meio deles, porque o meio deles é bi cultural, mas trazer as nossas raízes. Gosto de ver isso, eu sou apaixonada por fazer esta ligação, esta ponte. É isso.
E viagens?
Viagens….
Tiveste no Brasil, Moçambique…
Tive no brasil…
Já estiveste em Cabo Verde?
Já. Estive em Cabo Verde em 2012 pela primeira vez. Fui às origens da minha mãe que é Fogo e fui às do meu pai que é São Tiago. Já conheci, não é bem o mundo, mas a minha ultima viagem foi a Cuba, gosto muito de viajar, adoro viajar, tenho uma paixão muito grande pelo continente africano e asiático. Agora estou a tentar descobrir a nossa América… risos mas eu sou apaixonada por estes dois continentes, Ásia e África, principalmente África. África adoro, adoro, não é só por ser licenciada em estudos africanos, até porque fui a Cabo Verde, gostei muito de Cabo Verde, mas não fui onde eu me senti… não foi a mãe, não foi o umbigo. Onde eu senti mesmo uma coisa visceral, umbilical foi em Moçambique, não no Sul, não na cidade, no moçambique mesmo ali, mais para cima, no interior, porque da forma… Aliás para além de ir muitas vezes a Moçambique estive um ano, uma experiência de uno em moçambique e quando me sentava ali com as pessoas, de uma humanidade, aliás se as pessoas querem falar de evolução, porquê que África está como um país desenvolvido ou em vias de desenvolvimento. Se a nível de comunidade e ao nível de humanização está top, não é só para mim, há pessoas que vão e têm experiências no continente e percebem que nas relações existe uma humanidade. Não estamos a falar do governo, não estamos a falar daquelas pessoas que têm cargos políticos, estruturais, não é estruturais, mas pronto, que se acabam por corromper numa dinâmica internacional. Não estamos a falar disso. Estamos a falar de uma dinâmica comunitária relacional que para mim é exemplo comunitário. O papa esteve agora no Quénia, Uganda e República Centro-Africana o que ele disse foi que estamos a falar de pessoas católicas e cristão e que não encontras aquele espirito e relacionamento. É este espirito que se vive em Moçambique, diferentes religiões, culturas, mas relacionam-se são pessoas não interessa. Funerais que eu fui de diferentes comunidades religiosas estão lá numa ligação humana. Isto não é nada de romântico, estou a dizer que é real e que aconteceu. É isto que me fascinou estar nos países africanos. Claro que uma mágoa muito grande pelo pouco acesso que a nossa gente tem aos bem essenciais. Dói. Mas mesmo assim, nesse grande desfalque, encontras grande disponibilidade de relação entre as pessoas. Depois naquilo que te faz em ti, faz-te pensar na vida, quando tu pensas na questão da água, se nós temos um dos maiores rios dentro do continente, o continente sofre. Como é que isto não acontece, há que puxar pela cabeça. Temos que pensar nós que somos filhos de africanos e estamos ligados a África e temos que começar a questionar estas coisa. Temos que começar a trazer estes pensamentos. E coisas muito básicas ao nível estrutural. Se temos um dos maiores três rios cá dentro porquê que o nosso continente não tem água, quer dizer. Nós é que temos de fazer esse trabalho não é mais ninguém. Não é os outros que vão fazer, é nosso trabalho, não nos podemos iludir que os outros é que têm de fazer, nós é que temos de fazer. Nessas viagens levo sempre este pensamento, tenho sempre este questionar, porque existe sempre um crescimento pessoal e comunitário. Acima de tudo, existe uma coisa que eu nunca pensei, nunca foi racionalizada, uma coisa que trazes muito das viagens, que é um crescimento académico muito grande sem querer. Tu trazes, mesmo que tu não racionalizes, da tua experiência, daquilo que as pessoas vão-te contando, tu trazes essa experiência. Trazes essas informações que não são datadas, não são tidas como académicas, mas para mim supera qualquer alguém que foi escrito. Trazemos a experiência daquela pessoa. Aquela coisa verdadeira, alguém que vivenciou, foi filho de um senhor que vivenciou é uma outra dinâmica. Estamos a falar da guerra que já me aconteceu. Essas experiências culturais tão densas e tão fortes, estás a falar com a própria não é, o alvo é muito maior do que o erro, história horal. Eu costumo dizer que viajar é mais o que uma licenciatura, é a minha dica, é a minha deixa. Cresces muito, não é. Vens de uma viagem e fazes uma viagem quando chegas. Uma viagem daquilo que trouxeste. Cresces muito. Não sei se futuramente irei viajar muito como viajei até agora, porque mesmo ao nível económico já não vou ter tanto espaço de manobra, mas lá está Inglaterra dá-me esta flexibilidade. Quer dizer eu em duas semanas tenho dinheiro para viajar, isso é incrível. Como diz o meu irmão mais novo não gosto de estar aqui, mas o problema neste país… ele diz isto que é altamente brutal, o problema deste país é que ele dá-me dinheiro para fazer isto, e isto. Ele agarre-me com isto. Ele tem razão. Eu já fiz coisas que o meu país não me daria oportunidade de o fazer. Ele diz, dá-me a mim e deixa-me dar aos meus. E é verdade. E é disso que eu tenho que começar aqui a repensar a estrutura, por mais que doa, mais tarde existe uma conversação que eu ainda não sei se estou bem preparada ou não para fazer, mas se calhar há que pensar nisto. Sempre viajei de forma prazerosa, por opção. Ir para Inglaterra já foi uma coisa que me custou um bocadinho mais, porque sempre disse que viajaria para viver, escolheria um país lusófono, África lusófona ou Portugal, e acabei por contraria esses meus ditos. Foi uma experiência que mereceu a sua atenção e teve influencia até hoje na minha pessoa.
Voltando à viagem a Cabo Verde, foste convidada?
Não, foi em 2012, nós estamos em 2015, foi uma experiência muito gira, foi muito a correr, porque só fui com 16 ou 17 dias, ir entre uma ilha e outra conhecer as origens. Tanto que a ilha do Fogo tinha mesmo de ser, porque tinha lá tios e a minha avó nem está na ilha do Fogo está na cidade Velha agora, porque tem toda uma história familiar em que ela depois ficou viúva do meu avô que é pai da minha mãe e 8 anos depois casou-se com outro senhor e foi para a cidade Velha. Fui lá mais para conhecer as raízes da minha mãe e tenho também lá tios a viver. Mas estive mais entre cidade Velha e também na zona do meu pai que é o interior de São Tiago que é Porto Madeira, que é uma zona mesmo mais interior, não é na cidade, que eu gostei muito. É uma zona muito montanhosa e gostei muito. É uma coisa que nos marca. Sou desafogada e desapegada de qualquer pertence e a forma como as pessoas, não te conhecem de lado nenhum e dão o que têm e o que não têm. Essa experiência acabei por ter em Moçambique. Tu chegavas e não tem que haver integração, parece quase que não tem de haver integração. Apesar de ter que haver em algumas situações. risos Mas foi uma experiência a nível familiar, ao nível do contacto familiar que eu urgia já, que eu tinha uma urgência e foi muito bom tê-la. Não é para fechar o ciclo porque tu nunca fechas o ciclo, mas precisavas de encontra o lugar, o lugar… se bem que eu posso dizer que aqui em Portugal já não tenho aquela sensação há muito tempo de aceitação, verificação e entendimento digamos assim, há muitos anos que já não existe o meu lugar. Quando começas a estudar, quando começas a ter uma posição tu demarcas as tuas raízes e não tens de fugir delas, eu nunca fugi, mas o entendimento dá-te força, o conhecimento dá-te isso, dá-te a tua identidade. Não estou a dizer que os portugueses aceitaram mais ou menos, são as minhas relações bi culturais e mais nada. A minha realidade. Mas foi muito bom ir buscar mais este ponto para o lugar, foi muito importante, muito importante. Gostei muito. Não viveria em Cabo Verde… não viveria em Cabo Verde. Quero ir mais vezes, se bem que neste momento a minha avó materna está nos Estados Unidos, porque tenho uma tia irmã da minha mãe que está lá a viver e a minha avó foi passar uma temporada lá, estas são as relações caboverdianas. Cabo Verde, Estados Unidos, Portugal, quer dizer, é esta coisa a diáspora e gostei da experiência, das relações familiares e uma coisa muito interessante que tu chegas, nunca foste, mas parece que és de lá. As pessoas tratam-te dessa maneira. É filha de não sei quem, é nossa, não há maneira de estranharem a tua presença. Isso é uma coisa muito forte. Não sei se é uma coisa muito caboverdiana, não percebi, mas se calhar são os laços de sangue que faz isso, são as ligações sanguíneas que fazem isso. É muito interessante que tu não te sentes perdida, aliás senti-me numa desenvoltura tão bem a nível familiar que parecia que eles sempre fizeram parte de mim. A nível de conversação e de ligação. Foi muito interessante, aliás a única coisa em termos de espaço físico que eu tive assim de receio foi mais a cidade da Praia, mas não foi só por causa da confusão toda, porque os meus próprios primos são de zonas mais pequenas eles criaram uma coisa aqui na minha cabeça, eles próprios têm medo, eles próprios têm medo. Depende da conversação que se faz à volta daquele reboliço do centro, das coisas próprias que nós ouvimos cá e depois levamos uma ideia pré-concebida. Mas eles próprios estavam numa superproteção que foi a única coisa que eu não achei assim muita piada, queria estar assim mais à vontade. Detesto esse sentimento de medo, parece que deixas de absorver ali a coisa. Mas foi assim o único ponto negativo que eu tenho a apontar. De resto foi assim muito delicioso, o encontro com a cultura e a raiz muito forte. Nada, nada novo. Aliás só veio a complementar. Tudo aquilo que eu recebi de uma forma muito mais densa. Por exemplo a minha avó, eu fui a primeira neta a ir e os meus irmãos foram logo a seguir a mim que foi uma coisa impressionante. Só falta minha irmã ir, mas os dois rapazes foram logo a seguir. A minha avó ficou muito contente por exemplo de eu gostar das coisas da terra, sim avó, lá em casa comemos muita coisa da terra. Ficou contente de eu gostar. Dizia essas coisas é que são boas avó, essas coisas é que são boas. Estava com uma ideia errada e isso hoje ajuda na relação. Gostei muito disso, quer dizer não foi novo esta coisa de comes e bebes e isso tudo acaba por aproximar as pessoas. Ela ficou muito contente com isso. Gostei muito. Cresci muito nos 16 dias. A nível cultural não temos noção… fiquei impressionada com a questão da água, marcou-me muito. Porque apanhei chuva nos últimos três dias e a forma como as pessoas acolhiam e recebiam a água, uma coisa. Se um dia escrever sobre a água, vou fazer referência à minha experiência a Cabo Verde. Foi extraordinário, porque desde ser o mais pequeno até ser o mais velho, vai para a terra e depois existe esta coisa de perceber que é dali que nasce o alimento. É uma coisa muito emocionante, muito forte, todo o ritual. Desde o mais pequeno recipiente até ao maior, para receber a água e recolher a água. Eu fiquei impressionada com isso. É uma coisa que a gente houve que a gente lê, mas não percebemos até chegar à raiz. Aliás eu quando fui conhecer a minha avó paterna cheguei lá era tudo seco, choveu tanto nessa noite, na noite que estava a dormir, no dia seguinte estava tão sequiosa por aquela água e isto também já conversei isto com a cristina e com outras pessoas, e elas partilham do mesmo. A terra está tão sequiosa que no dia que tu acordas vês rebentos verdes. Isso é real, parece uma coisa imaginária, parece uma coisa que é mentira, mas vês rebentos… parece tipo… bolinhas de perlim pimpim. É uma coisa que me emocionou muito. Eu queria muito um dia escrever sobre isso porque… parece que não é só comunidade, depois crias ali uma aura, toda a terra e toda a comunidade está sequiosa daquela água, que é uma coisa poética. É muito bonito. Marcou-me muito este contexto caboverdiano, da água, esta sede, o acolhimento. Eu estava muito cansada porque depois tu tens de comer em todo o lado, tens de criar um esquema e uma estratégia para comer só um bocadinho para não dizer não em nenhum lado, e tens de criar aqui uma estratégia psicológica, é verdade, para poderes comer um bocadinho. Comer sempre, mas não muito, porque já sabes que quando vais aquela casa vais comer. Fiquei apaixonadíssima por essas estruturas todas. Fiquei impressionada mesmo em relação aos laços familiares, não quer dizer que fosse ou não com esta ideia pré-concebida, mas estão bem inseridos no mundo académico já com licenciaturas feitas ou a estudar, foi muito bom ter encontrado isso. Fiquei muito contente com isso. Saber que eles estão enturmados. A gente às vezes vai com uma ideia completamente exasurpada. Fiquei contente. Encontrei muita pobreza também e algumas coisas a serem estruturadas e a precisarem de reestruturação, mas fiquei muito contente, abriu-me assim o leque e quero ir lá. Quero ir mais vezes. Gostei muito, gostei imenso.
Quais é que achas que são as características principais do povo caboverdiano?
Pegando na mulher caboverdiana, toda a África, a mulher é mulher. É de uma força imensa. Mas a mulher caboverdiana é de uma força impressionante. Até a Lura fez uma música agora sore a mulher caboverdiana a dizer como é que era a mulher caboverdiana e é exatamente isso que eu penso de uma mulher caboverdiana. A música chama-se Maria Deleida e ela explica a história, que é uma coisa muito interessante, que é aquela mulher que se levanta às 4h da manha está a preparar os cuscuzes para vender na cidade para o filho poder estudar. Esta pequena logística naquela fase diariamente com aquele cuidado de levantar aquela hora e ela fala sobre isto que é uma coisa superinteressante, pelo menos da mulher, mesmo que ela não tenha tido acesso a essa educação e formação, a força que ela vê na educação, e o caboverdiano tem muito isto. Foi muito incutido esta coisa de perceber que formação e educação é uma base muito, muito forte. E esta mulher demonstra isso. Está muito na mulher. Acho que é de uma capacidade extraordinária e conta que aquelas senhoras todas que estão ali a vender na cidade da Praia que não é para si, é tudo para uma rede familiar, uma capacidade de logística e organização. Não há contabilista que supere. É uma das grandes competências. Dentro da sociedade caboverdiana a mulher tem uma força imensa. Para além de outras superações que ela tem internamente. Ela muitas vezes faz parte de uma família monoparental, não é, que está ali a estruturar e a alimentar uma rede de crianças sozinha. Isto é uma coisa… uma das grandes capacidades da mulher em si. Não quer dizer que o homem não tenha, mas vejo isso mais não mulher. Depois no seu todo, acho que o ser humano em si é muito adaptável, mas está confinado. Mas acho que o povo caboverdiano em si, acho que é um povo… um autentico camaleão. A gente vê ao nível histórico, geográfico, acho que até se nos mandarem para outro sitio nós nos adaptamos bem. Acho que o povo caboverdiano é adaptável não só a nível geográfico, mas a nível linguística. Esta é o segundo a terceira é manter as suas raízes e tradição. Acho lindo e delicioso. Eu posso chegar a Inglaterra, encontrar o povo caboverdiano, mas ele vai estar sempre a ouvir a nossa música, vai ter sempre necessidade de fazer a nossa cachupa. Vai ter sempre necessidade de buscar as suas raízes. É incrível que o meu irmão mais velho não tinha assim muito contacto com as nossas raízes, não tinha, e foi lá no contacto com outras comunidades que ele ficou muito mais apaixonado. Mesmo a falar crioulo que ele não falava muito, fiquei impressionada e fiquei contente porque vai sempre buscar das suas tradições e raízes e damos sempre às nossas crianças. O que me deixa um bocadinho segura, não tanto, também não podemos estar assim tão confiantes, que há coisas que vão manter-se porque é uma força muito grande, a ligação às raízes, à conversação, à forma de estar e falar daquela avó, daquela tia, daquela conversa é uma coisa. Nós gostamos, nós gostamos disso. Eu lembro que no contexto da aldeia com os meus miúdos, os miúdos que mais criticavam a comida do refeitório no seu geral eram miúdos caboverdianos. Eu depois comecei a fazer uma análise, porque estão tão habituados a uma comida caseira, tão boa, tão forte… os nossos miúdos adoram a nossa comida. Adoram… a minha sobrinha a Inês tem 12 anos, a Beatriz… eles adoram a comida. Oh mamã o que é a comida hoje? É congo. Tão bom. Os nossos miúdos adoram as nossas comidas, quer dizer, não é só porque foram incutidos, é porque gostam das nossas coisas. Isso é muito bom. Eu acho é que é não esquecer… a gente vê nos Estados Unidos, vê na Suíça, acho que é uma coisa muito boa, e cada vez mais, e aí a parte de ser caboverdiano, crescemos muito nos últimos 20 anos, teve aquele palco histórico que ao nível académico falava-se que a gente estava ali numa crise, mas eu acho que dos 20 anos para cá, cada vez mais adoramos ser caboverdianos. Cada vez mais sabemos apresentar o que é ser caboverdiano, não é, e com muita força. Vejo isso, a malta nova passa a ir e a trazer o que é de Cabo Verde e de várias ilhas, eu sinto isso. Eu sinto que cada vez mais amamos ser caboverdianos, e aliás os meus colegas sul africanos da Guiné e de São Tomé, diziam muitas vezes isso, mas vocês têm uma coisa boa, podem nascer cá… dizem sempre, português, mas de origem caboverdiana, adoram fazer isso, adoram dizer isso, muitos de nós não, vocês trazem as vossas raízes e é isso que eu gosto de manter a tradição, a raiz, o orgulho de ser caboverdiano. Cada vez está mais forte e a gente vê a música que fizeram para a seleção nacional. Vejo que cada vez mais há um crescente até porque o crescente não tem a haver só com os antigos, porque os antigos vão indo, connosco, com todos aqueles que vêm e que se vão alimentando. Nós temos gerações que já são filhos dos que nasceram cá e têm Cabo Verde dentro de si. É uma coisa impressionante, não é. Eu vejo pelos meus primos que já são todos filhos que nasceram cá, mas Cabo Verde está dentro de si. Às vezes ainda brinco com a minha sobrinha e digo, Inês tu és o quê? Portuguesa com origem caboverdiana eu não me esqueci. Eu gosto porque eu quero que ela diga isso, quero que ela assuma Cabo Verde dentro de si também.
E porque é que não vivias em Cabo Verde? 1h33m40s)
Não vivia em Cabo Verde não tem só a ver com as estruturas espaciais, nem geográficas, vi muita coisa por exemplo, tem a haver com a organização. Acho que… não quer dizer que eu não goste de zonas rurais, porque eu gosto muito de zonas rurais, e gosto muito do contacto que as pessoas têm umas com as outras, gosto bastante, mas gosto muito mais de uma dinâmica que Cabo Verde não me apresenta muito essa dinâmica. Por exemplo, primeiro porque acho que há uma vida muito pacata, pacata no sentido de é bom e eu gosto, mas não há muita empregabilidade e as pessoas têm uma vida muito de off. De estar ali, de cumprimentar, que é bom e alimenta, mas parece que ia perder um bocadinho esta minha coisa de estar mais ativa, mais interventiva e parece que não encontrei muito isso. Fui para ter férias e consegui ter férias. Tens aquela vida de… vais ao encontro de morabeza, de noite, encontras, mas eu quero muito mais do que isso para mim, não quero só isso para mim. Quero ter uma vida de intervenção muito forte e se calhar estou enganada, mas parece que não oferece isso. Parece que é uma vida muito de ocia, até se fosse para fazer um negócio como muitas senhoras fazem eu não estou virada, nunca fui uma pessoa virada para negociar. É nesse sentido. Mas por exemplo, se for para uma pesquisa de investigação e tiver lá um ano, dois, não quer dizer que não seja uma coisa que não estivesse indicada, até porque tenho muita curiosidade de saber coisas sobre os rabelados. Gostava muito de perceber a dinâmica cultural, tenho esta rebeldia risos de saber coisas dos rabelados, gostava. Não só por aquilo que a minha mãe me fala, daquilo que estudei um pouco, mas parece que ainda há ali muito tabu em falar dessa gente. Eu gosto disso, gosto de espicaçar um bocadinho isso. É só nesse sentido. Moçambique fui com missões especificas, gostei muito de estar lá, como fui com missões especificas para trabalhar e fazer coisas. Não encontrei assim… se calhar a diferença está nesse sentido. Caso vá para Moçambique um dia, tenho de ir com trabalho. As pessoas que me conhecem já sabem que se me convidarem para trabalhar. Se calhar a trabalhar em Cabo Verde viveria, se fizessem uma oferta para trabalhar, viveria.
Culturalmente o que é que te foi passado em casa, que achas que é tradicionalmente caboverdiano?
Eu acho que há muita coisa que é tradicional e muita coisa que é carater, não é. O cultural e o carater não podem ser confundidos. Culturalmente, acho que uma das coisas… não sei se podemos chamar isso culturalmente, mas acho que é cultural esta coisa da educação e formação, acho que é muito do povo caboverdiano. As pessoas estão muito enganadas a respeito da comunidade caboverdiana. A comunidade caboverdiana tem muito esta paixão pela educação e formação. As nossas crianças de respeitar os mais velhos, uma coisa que é muito trabalhada. Claro que nesta dinâmica portuguesa e aliás europeia as coisas são diferentes e é claro tem a haver com as próprias estruturas. É muita cultura do infantário, da escolinha, coisas que as nossas comunidades é muito a relação de vizinhança, não é. Eu tive essa sorte de crescer ainda nessa coisa da vizinhança, já os meus sobrinhos não cresceram nessa dinâmica e isso tudo muda o que é o cultural e o que é uma necessidade social, que acaba por dar outras diferenças também na nossa forma de estar, a adaptação, lá está a adaptação não perdendo as raízes e a própria tradição. Acho que culturalmente foram-nos passando esta forma de dinâmicas familiares. Acho que isto é passado. Acho que a própria língua, apesar da minha mãe ser do Fogo, mas a minha própria língua foi muito engolida com a nossa ligação mais da parte do meu pai. Apesar de ter muita ligação por parte da minha mãe. Muita ligação, muita ligação mesmo. Mas também são coisas muito similares, da ilha do Fogo, de São Tiago, há muita particularidade e acho que culturalmente a linguística, as dinâmicas familiares e a própria alimentação, a gastronomia. Essas são as coisas que acho que são a fonte de uma cultura ou que reside e subsiste de uma cultura, são estas três particularidades. Acho isto muito passado. Aliás, se em que a nível gastronómico nós recebemos uma mensagem muito forte dentro de casa, não é. E mesmo a nível de linguagem, mesmo ao nível da linguagem. Eu falo com os meus irmãos em português e falo com os meus pais em crioulo, não é. Falo com os meus sobrinhos em português, mas falo com os meus tios em crioulo. Quer dizer…a gente vive aqui uma passagem tão forte que não nos podem tirar nem de um lado nem de outro, isto foi uma das discussões muito grandes onde comecei a participar na plataforma Gueto que tive com eles, que eu discordava com o que ele diz, com todo o respeito, quando eles diziam temos que ir todos para o mesmo, porque é que me querem tirar isto. Amo tanto um lado como o outro. Uma luta a fazer cá é que eu quero lutar por África, esta é a minha missão. Mas não me tirem aqui o Portugal que faz parte de mim, não é. E é isso. É uma mista mestiçagem linguística, gastronómica, a própria mestiçagem dentro do próprio Cabo Verde, que veio de raiz, mas já recebes uma mestiçagem automática na linguagem. 85% da lexical caboverdiana é portuguesa, quer dizer… acaba por haver uma mestiçagem de tudo, de pele, de tudo, das gentes. A comida é uma mestiçagem, ser crioulo é ser mestiço. Quer dizer… e querem-nos tirar o lugar, não pode ser. Tens de estar ciente disso. Não estás a ligar nada a nenhum lado. Essa consciência é que te dá esta força identitária. Quando estás livre e sabes de onde vens não tens de ter guerra, tens várias batalhas ao nível de conversação, ser um bocadinho mais diplomática, menos malcriada, mas… acho que descobri muito isso. Eu estou muito tranquila e muito segura com isso. Sempre me choquei com esta teoria dos choques culturais e desta falta de referencia. Crise identitária nunca percebi essa treta. Nunca percebi essa treta. Porque isso é uma grande treta. Nunca percebi essa conversa. Eu acho que dava jeito a quem estava a estudar vir com esta conversa. Sinceramente eu li muitos livros de várias pessoas, e hoje então tenho uma grande resposta para dar a essa gente. Acho que dava jeito a essa gente vir com estas crises identitárias. Se nós enquanto crianças estamos aptas a aprender cinco línguas de forma fluente, não é, eu acho que dava jeito. Se fosse hoje acho que estava mesmo pronta para ter grandes debates com essa gente. Então os termos bilingues, os termos multiculturais não existem por acaso. Isso é uma grande treta. O que eu acho é que muitas vezes as nossas estruturas são mais frágeis porque a mãe trabalha desde as 5h da manha até as 21h. tem a ver com as estruturas sociais que não permitem uma atenção tão orientada, tem a ver com isso. São mais frágeis. As próprias estruturas nacionais estão embicadas e direcionadas para perpetuar a pobreza nesta comunidade. Está tudo feito para isso. Agora não existe burrice, não existe crises de identidade, não existe nada disso. Isso é mentira. Se vaio um inglês já não tem dificuldades de aprendizagem. Se vai alguém da europa já não tem. O africano já tem dificuldades de aprendizagem. Tribalismo que eles fazem, eles é que fazem o tribalismo.
Aproveitando a dica de há bocado, em que é que te identificas com a cultura portuguesa?
Identifico-me ao nível de oportunidades, quando falo de oportunidades falo de género, apesar de que dentro da comunidade portuguesa, ela tem muito que aprender com a europa, não é. Mas eu choco-me muito com as estruturas do género das do continente africano. Choco-me muito. Aliás eu quando estive em Moçambique eles diziam muitas vezes, eh Paula você não parece africana, por não aceitar aquelas estruturas de género, aquelas diferenças que se fazem de género. Identifico-me muito, de eu poder enquanto mulher, enquanto pessoa poder ter essa liberdade de me expressar, de me direcionar, identifico-me muito com isso. Gosto muito de ter esta liberdade de poder fazer as minhas coisas. Identifico-me muito com isso. Idenfico-me muito também com a gastronomia, bastante. Mas uma das maiores coisas é esta questão do género. De poder de forma tranquila ter acesso aquilo que eu quero aprender, aquilo que eu quero estar atenta, esta minha liberdade espacial, identifico-me bastante. Eu agora choco-me muito com estruturas africanas em relação a isso. É terrível. É terrível como eu já te disse eu não sou nada feminista, mas tem a haver com o meu caracter, com a minha forma livre de estar no mundo. E choca-me bastante. Vi tanta coisa que eu não concordava que se fazia por ser mulher. As próprias mulheres lá assumiam e assumem como dado adquirido. E tu quando tens essa postura, és do género bicho do mato ou estás aqui a desestruturar aqui um contexto. Identifico-me bastante com isso. Não é uma coisa só portuguesa, mas cá dentro da europa é uma das coisas que mais me fascina, essa coisa de eu poder ter esta facilidade de ser eu de poder, dentro do meu ver o meu género não está a ser posto em causa culturalmente. Em África isso é quase impossível porque a submissão desorienta-me. E eu não me identifico com esta forma de poder. Gosto dentro da europa, Portugal gosto muito da comida. Identifico-me bastante com a estrutura gastronómica.
E quais é que são as características do povo português?
Eu acho que pudemos dizer… existe uma coisa que nós consideramos que é preventivo, por falta de… não sei se vou chocar um bocadinho, mas dentro do contexto europeu o povo português também assimilou muita coisa africana, assimilou muita coisa… há também uma herança africana dentro do povo português. Esta mania e a professora Isabel Castro Henriques fala muito sobre isso, num livro que não foi editado cá, mas no Brasil. Porque eles não aceitam. Qual dignidade de vir cá dizer que Portugal também tem uma herança africana. Basta pensar na Madragoa dentro do contexto lisboeta e vejo isso muito. Acho que não é mentira a hospitalidade e a forma de relações mais estreitas, não é mentira esta forma estreita do povo português. A própria experiência de fazer caminhadas de 10 dias no Alentejo com uma pessoa amiga, essa coisa fácil de tu caminhares e as pessoas… não é mentira, é verdade, as pessoas são mais quentes ao nível do tato, da conversação e das relações afetivas. no entanto o que eu queria dizer para não chocar é isto, que acontece muitas vezes é um povo mais pequeno, de mente, de abertura. E muitas vezes esta forma mais pequena pode ser confundido com… essa forma quente e pequena com algumas atitudes de falta de conhecimento, de formação e de ignorância. Percebes o que eu quero dizer. Existe esta coisa boa, mas depois também existe esta discrepância de algumas atitudes mais ignorantes, mais pequenas e mais caquenhas, que muitas vezes é dito de livre e espontânea vontade, sem haver um raciocínio mental intelectual que nem pensam se estão a ferir ou não. Acredito que em muitas situações, há situações que sabemos que sim, não são intencionais. Basta falar por exemplo do contexto linguístico de termos situações, “trabalha para o preto”, coisas que estão dentro de uma linguística que é redutora, “um olho no burro outro no cigano”, “sou preto ou quê”, todo um contexto redutor que hoje é utilizado sem racionalizar, sem razão presente, porque tem a ver com um contexto, acredito que muitas pessoas digam e não tenham malicia no que estão a dizer. Claro que as pessoas que estudaram estes contextos e estão por dentro disto têm esta sensibilidade. Mais a maioria não o tem, não estudaram e dizem por ignorância. O povo português tem isto, esta mestiçagem de ser pequenino, mas depois tem aquele lado que não é por mal. Não é por mal, é ignorância. Depois encontras o lado mais, a comparar com as outras europas, encontro um lado mais intelectual, mais cuidado nessas verbalizações, mas não encontras o calor porque as pessoas estão mais preparadas nesse sentido para o não fazerem. Acho que ao nível de comunicação, de… a abertura é maior, mas isso tem a haver com as relações interculturais, bi culturais, as heranças que cada um de nós comporta da nossa sociedade. Apesar de haver uma negação dos intelectuais nacionais, alguns defendem ao contrário, graças a deus, as coisas não ficam estagnadas só num lado, há uma herança africana. Basta a gente pensar e fala-se muito sobre isso nas cores que foram apresentadas pós 25 e um bocadinho antes das relações africanas em Portugal, desde o chapéu cinzento, a roupa cinzenta. O que é que nós trazemos, trazemos cores a esta gente e muda a dinâmica no vestir. Basta pensarmos nisso. São trocas culturais. Isto é uma das características que muda bastante. Há coisas que nós estamos todos a trabalhar para mudar e para crescermos juntos. Eu em Inglaterra sofria e ressacava lusofonia. Esta coisa que não é só Portugal, mas que é a África lusófona que Portugal tem muito disto também. Isto… existe muita coisa que estamos a perder ao nível cultural, que por vezes esta coisa pequena, pouca informação. Muita ignorância, que agora também estamos todos a crescer de forma repentina, muito forte, porque temos as redes sociais, que têm essa capacidade de fazer às vezes de forma exagerada, muito à frente, muito na mesa, muito às claras que estamos a ver o rescaldo do que é que será. Estas informações tão fortes, coisas que a minha geração com miúdos desta idade não tínhamos essa informação. Os miúdos são curiosos, já estão a falar sobre estas coisas todas, as coisas estão a acontecer. Trabalhamos muito, estamos a estudar e a trabalhar, mas temos de ser humildes de saber que não é para o nosso tempo, mas vêm aí, as coisas estão a vir.
E como é que vez o racismo em Portugal?
Portugal é um país racista. Existe, não vamos dizer que não existe. Para mim é claro. Existe por estes contextos históricos, por estas ignorâncias, falta informativa, porque o não conhecimento o que é que dá? Não é… o não conhecimento dá isso, ignorância, dá medos, dá inseguranças internas de cada pessoa. Por isso acho que Portugal é um país altamente racista. A própria não aceitação do racismo, a própria não aceitação do racismo faz com que muitas coisas não sejam trabalhadas. Então se nós achamos que o problema não existe como é que vamos trabalhar com o problema. Existe de uma forma acentuada e cada vez de forma mais acentuada. Camuflada não, camuflada em alguns pontos, o racismo institucional é uma coisa… que eu costumo dizer crónico e alguns chamam institucional, que é uma coisa que é altamente doentio, crónico, doentio. Tem de ser reconhecido para ser trabalhado. Enquanto não aceitarem racismo, essencialmente institucional, não se consegue trabalhar. Racismo em Portugal existe, isso é claro como a água. O que eu acho é que há-de vir aí um boom, um boom que eu se calhar já não vou estar cá para ver. Sinto que cada vez é mias trabalhado, cada vez mais os nossos miúdos percebem o ciclo da história, percebem as suas raízes e cada vez vão saber se defender mais. O racismo em Portugal existe cada vez mais, o homem negro e o homem branco, o povo português é altamente racista, xenófobo nas outras valências também, religiosas… no outro dia uma reportagem na televisão publica na hora dos nossos idosos já sofrem um problema… não é um problema, mas por terem aquela idade, já vêm com todas as informações ultramarinas, coloniais daquele tempo, ainda o senhor está a falar para aquela população alvo que estava em casa, estava a falar da população de leste, dos assaltos profissionais que essa gente vão com bagagem e não sei quê… esses então é que são mesmo perigosos, assim a falar. Isto é incrível que a nossa comunicação social deixa isso acontecer. Já vêm com aquela bagagem, aquela população que não tem culpa, idosa, com a experiência já daquele tempo, e ainda houve isto. Eu fiquei em choque. Quer dizer claramente homem branco, homem negro. Outras comunidades consideram na cabeça deles comunidades menores, neste caso comunidades de leste, o povo brasileiro, neste caso a questão económica do povo asiático, o poder que eles têm… vê lá o racismo que é tão alargado do povo português. O povo asiático tem um poder de negócio, vê la como eles são racistas. Vê lá o quanto eles são pequenos, nesse sentido. Nunca aceita nem assume, é aquela coisa dos brandos costumes. Não gosto de pretos, mas gosto de ti. É tanto assim, é tanto assim. Então eu tenho esse poder de comunicação, de verbalização sem ser comunicar, já sou uma preta diferente. É uma coisa horrível. É altamente racista a comunidade portuguesa. Muito racista mesmo. Existe muita coisa a ser trabalhada e nós temos de aceitar e dizer que existe, porque existe. O que acontece é que estamos mais fortes, já conseguimos muito trabalhar isso e confrontar a situação. Estamos aí a chegar. A derrubar muros. Estamos aí num processo, primeira parte pela aceitação da população da comunidade portuguesa, aceitar que é racista.
E no teu próprio percurso sentiste que te influenciou de alguma forma?
Sim, claro que sim. O que eu senti, por exemplo, eu tive situações muito fortes na primária, tem uma situação que eu nunca mais me esqueço, e vai ser uma coisa tramada porque fica-nos tudo aqui na cabeça. Eu lembro-me uma vez, na 3.º classe e depois a minha mãe tinha aquele ritual de todos os dias dar-nos banho de manhã, estava a cheirar mal na sala, cheirava a cocó… verdade, isto são coisas tão pequenas, mas que nos marcam, eu era a única preta da sala e o meu colega Henrique e a Margarida que estava ao meu lado, o Henrique dizia que era eu e eu disse, não, não sou eu. A professora teve o descaramento de me vir despir a achar que era eu, não é a Paula. Mas este episódio marcou-me. Eu por acaso, foi uma coisa que na altura não liguei, mas depois comecei a… mais tarde começas a pensar e ela foi o Bruno… ainda no outro dia fiquei amiga dele porque temos uma rede da primária e era ele. A ele marcou-lhe também. Mesmo que seja… uma professora nunca faz isso, ele foi exposto ali e eu fui exposta. Eu fiquei aliviada por não ser eu, mas ele foi exposto porque estava todo cagado, coitado. Apesar de gostar muito da minha professora primária, foi uma situação que me marcou. E dois colegas dali com ideias pré-concebidas disseram logo que era eu. São situações… isso marcou-me, marcou-se e não acreditas, é impressionante e foi na primária. Depois comecei a pensar naquilo mais tarde… na altura não dei importância, mas… quando começas a questionar a vida, foi uma coisa que me marcou. Depois em conversações com colegas, já mais no secundário, quando eu comecei com capacidade de argumentar e questionar as coisas, coisas que os meus colegas partilhavam da nossa rede de crescimento que diziam e que faziam e eu também comecei a questionar as minhas coisas que me aconteciam dentro da sala. Apesar de ter tido sempre bons professores, havia professoras que faziam questão de perceber as nossas raízes e de falar daquilo que é belo, também apanhei professores assim. Mas também apanhei professores ao contrário que sempre deram a tendência de achar a incapacidade do outro lado. era aí que eu marcava pela diferença, sempre tive boas notas, inclusive, lembro-me que no 7.º e 8.º isso aconteceu-me e foi uma coisa que me marcou, no teste de história ter tido noventas e tais por cento, foi a nota mais alta da turma, eramos três boas alunas, era a Marta, era a Liliana e era eu. Eu tive a nota mais alta, a Marta ficou contente que era similar e a Liliana também ficou contente, só que teve três percentagens a menos que eu, nunca mais me esqueço de ela chorar de baba e ranho a dizer que a mãe lhe ia bater em casa porque uma preta tinha tido uma nota mais alta do que ela. Isto no 7.º, 8.º ano, lembro-me muito bem. A professora muito querida disse assim, a mãe não tem que saber. risos marcou-me, mas porquê? Pequenas coisas que me marcaram, é incrível. Incrível que toda a educação tem uma influencia naquilo que ti és. Todos os jovens e crianças dizem aquilo que vivem em casa e bebem em casa. Por isso a nossa cultura portuguesa é racista. Estas a perceber. Depois mais tarde situações quando estava a tirar animação, eu sempre morei ali entre portas de Benfica/ vendas novas, cresci ali num nicho muito grande de comunidades africanas à minha volta, os meus pais e então estava eu uma vez a decidir numa aula de animação cultural, o professor a perguntar qual era a comunidade com quem íamos começar a trabalhar, escolher e eu a dizer, professor quero trabalhar com os jovens ao nível de risco. O professor vira-se e diz-me assim, professor de animação, ah Paula, mas tem noção que a maioria dos jovens de risco na sua maioria são africanos… eu não sei, nessa altura já tinha uma desenvoltura maior e disse, professor eu não quero cair na sua ignorância e dar cor também à pedofilia, foi mesmo assim, saiu mesmo assim. Ele ficou muito espantado com a minha resposta e ficou até sem… sem chão. Até fez-me uma advertência ao conselho pedagógico. Mas cheguei ao conselho pedagógico o professor percebeu o que é que tinha acontecido… depois também encontramos pessoas que nos salvam nestas situações. Percebeu e mandou-me logo para a sala e nem fez nada. Mas é incrível, sempre a puxar para baixo. Sempre a tentar limitar e bloquear. Tens de ser muito maior. Como dizia uma amiga minha, para tu chegares onde chegaste tens de ter atos de muita extravagancia, porquê? Tens tipo lutares duas vezes. E a verdade é que ela tem razão. A verdade é que senti que sempre fui apaixonada pelo meu percurso de estudos académicos, mas sempre tive de ter atos de extravagancia na forma de comunicar. Porquê? É incrível. Porquê? Tem de ser natural. Isso devia ser uma atitude natural. Daí Portugal ser altamente racista. Desde pessoas que formam e o que é mais incrível, daí a minha conversa com a plataforma Gueto, aqui o problema não é só comunicação social, nós temos um grande desfalque na formação e educação. Aquilo que estão a dar aos nossos jovens. Quem é que forma, é uma pessoa formada e informada, vocacionada, está apta à diferença, sabe o que são contextos sociais diversos. Um desfalque muito grande quem está a dar esta formação, quem está a informar, muito grande.
Em termos de identidade como é que te vês?
Olha eu digo sempre, lá está, eu digo sempre isto, tenho uma raiz bi cultural, digo sempre isto, mas não quero ser mentirosa, eu tenho uma paixão muito maior pelas minhas raízes caboverdianas. Gosto muito de pertencer a estes dois mundos. É uma coisa que me fascina muito. Até porque dá-me um espaço de manobra, dá-me aqui um privilégio muito grande. Gosto muito deste jogo de cintura. Gosto muito de poder ter as minhas raízes e de poder estar num contexto altamente português. Mas não minto, não minto, tenho uma paixão muito grande… se calhar porque eu sou uma pessoa muito afetiva não quer dizer que Portugal não tenha, mas os calores caboverdianos. No entanto, não me revejo nalguns comportamentos que eu considero bruscos… isto não quer dizer que o povo seja agressivo ou violento, algumas situações como dados adquiridos, existe um contexto familiar forte, mas há algumas situações por exemplo e eu vivenciei isso, enquanto família, as pessoas vêm, são doentes, nós temos que acolher e temos de dar o nosso melhor, mas… parece que quase que é uma obrigação que tens de fazer… isto é uma coisa muito caboverdiana, muito africana também. Parece que é porque sim, não há flexibilidade para teres uma dinâmica tua também, eu própria. Choco com isso, eu tenho um amigo meu que está a passar por isso agora com a mãe que é caboverdiana, os familiares vieram de Cabo Verde, estão cá a fazer tratamentos e… nós estamos cá para isso, mas é um dado adquirido que tens de fazer aquilo… não… eu choco-me muito com isso. Choco-me muito com isso. Aliás, aí muitas vezes já há uma falta de entendimento do outo lado, e isso é visto como apreensão quase, mas é também uma falta de respeito as pessoas não… é um estar tão abusivo, que… eu salto bastante com isso… salto bastante e falo muito e aí não sei se tu sentes isso, eu sinto que principalmente os jovens caboverdianos que vêm de Cabo Verde, eles chocam-se muito connosco. Eu senti isso recentemente, três, quatro, cinco anos para aqui. Eu não sentia isso, aliás eu fingia… não queria aceitar isso… eu converso muito com a Cris e com a Li sobre isso, e com outros amigos também. Há um complexo, eu sinto isso, e eu não faço isso, eu nunca faço isso. Eu adoro acolher, eu gosto de saber que aquela gente é minha, e adoro estar com caboverdianos, gente caboverdiana, para ouvir aquela forma de comunicar, gosto muito de ouvir aqueles termos, mas há um complexo em relação aos caboverdianos que nasceram cá, eles fazem diferença connosco, nós não fazemos diferença com eles. Eu acho que não estou enganada, mas eu sinto isso. Sinto muito isso, que há aqui um complexo de inferioridade da parte da… e eu sinto muito isso, algumas questões comportamentais da família, de sugar a família de tal maneira sem pensar se há ou não meios para o fazer é uma coisa que eu me choco bastante. Aliás… a sorte é que está em locomoção, muito tranquilo, mas alguém tem de pôr travão nisto. A minha madrinha passou por isso, agora tenho um grande amigo a passar, a gente está a conversar e se é uma coisa só nossa, que estamos dentro desta estrutura, perceber mais ou menos onde é que isto vai. Mas é muito duro, porque é um dado adquirido, que tem de ser assim e mais nada.
Agora fala-me um bocadinho do bairro, do sitio onde cresceste?
Olha, eu cresci nas portas de Benfica numa zona muito tranquila, estávamos ali perto do bairro das fontainhas, perto do bairro 6 de maio que fica um bocadinho mais acima, e nós morávamos numa zona privilegiada até, porque eram aquelas casinhas baixas, mas … não sei se sabes, quer eram umas casas brancas que chamam casas melhoradas, não eram degradadas, que estávamos ali ao pé da estrada… aliás ali era considerada uma zona boa, muito bem mesmo. Depois houve a questão da CRIL que apanhava aquela zona toda e também teve que sair toda. Aí é que foi depois a saída e tivemos também alguns privilégios de realojamento porque não… nós tínhamos que comprar e nós tínhamos que dar dinheiro para comprar mesmo a totalidade, porque não fazíamos parte do programa de realojamento, os outros bairros faziam, e foi um choque muito grande ter mudado, porque gostava muito de viver ali. Gostava muito de viver ali. Mas pronto pelo menos os meus pais conseguiram ter uma estrutura económica… socioeconómica boa no sentido de ter esse espaço, a camara teve de dar, não só aos meus pais, mas aquelas pessoas que moravam ali naquele lado, dinheiro para comprar a sua casa, e era uma politica de realojamento completamente diferente das pessoas que iam ser inseridas dentro daquele esquema que é o esquema PER, acho que é PER dentro da camara municipal. Eu gostava muito porque tinha muita gente da ilha da minha mãe, da ilha do Fogo e também de São Tomé, daquelas relações das pessoas que iam para São Tomé. Não há nenhum caboverdiano que não tenha São Tomé na sua família e na sua rede. Tínhamos muito. E foi muito fácil também perceber ali diariamente de forma dinâmica de ter a tua raiz muito presente. Tinha também nas minhas relações sociais e de infância tinha uma comunidade luso muito, muito grande, muito forte, grupo de jovens, primária, missa, catequese. Foi muito à volta disso, muito forte mesmo. Aliás eu posso dizer que bebi muito fortemente de uma bi culturalidade muito forte alentejana, que a gente sabe, falamos daqui das portas de Benfica temos aqui uma rede muito alentejana. Tem uma comunidade muito forte, au estou-me a lembrar um ou outro de trás dos montes, um ou outro de trás os montes, as a rede maior era alentejana. Daí as minhas duas grandes paixões por estes dois pontos de Portugal, Trás-os-Montes, porque acho que o povo do Norte tem muita africa dentro de si na forma de estar e o povo alentejano do Alentejo também acho que é… acabamos por ter uma relação muito forte ao nível de respeito e de relação. Muito forte. Isto são pessoas que entre casas de amigos estávamos muito ligados, não é. Dos dois lados, da cultura de casa de pais e de amigos de Cabo Verde, e de pais e amigos do Alentejo, que eram a maioria deles. Agora é que eu estou a ver a raiz era tipo Portalegre, era do Sul e depois do Norte. Agora estou aqui a lembrar-me que muitos deles têm crescido muito dentro desta rede. Era uma zona bastante tranquila, muito boa e gostei muito. Custou-me muito até aos 31 ou 32 anos sempre ali. E custou-me muito depois.
E como era a relação com os vizinhos?
Muito boa, muito boa. A relação era muito tranquila. Tivemos uma coisa que marcou muito a mim e que marcou muito os meus irmãos enquanto pessoas, o meu irmão mais novo e também foi nessa altura que ele foi para Inglaterra, o meu irmão mais novo teve assim uma situação de atrito assim numa zona mais no monte, na Reboleira, já não me lembro bem com um rapaz e isso marcou-me muito. Marcou-me muito. Assaltaram-no, tiraram-lhe o fio, tiraram-lhe a roupa que ele tinha e ele fez queixa à policia. A policia…fez queixa à policia e acho que a policia foi ao bairro, não sei se foi na reboleira, não quero estar aqui a dizer sem saber bem, à procura desses rapazes e no dia seguinte esses rapazes apareceram à porta da nossa casa com uma caçadeira e minha mãe estava sozinha em casa, eu não estava. A minha mãe a contar-me isto até emociono-me. Bateram na porta a minha mãe abriu inocentemente e tinha uma caçadeira apontada à cabeça. Há onde é que está o Hélder? O Hélder não sei quê? A minha mãe estava completamente quadrado, fechado, a minha mãe só disse, meu deus por favor, quando disse aquilo ele deixou-a. A minha mãe hoje está viva por obra do espirito santo. Foi uma coisa que nos marcou muito na estrutura familiar e enquanto irmãos. Foi uma experiência muito forte, muito forte mesmo. Isto aonde eu quero chegar, aí ficamos muito fechados, nas relações… não é de vizinhança, mas nas relações sociais do dia a dia, do tipo de pessoas que queremos para nós. Não é… não é associar esse comportamento a um tipo de grupos de pessoas, mas começamos a ficar muito fechados enquanto irmãos e família. Marcou-me a mim e os meus irmãos. Eu estava na casa de uma outra amiga, mais à frente fui hamada eu e os meus irmãos, fui chamada e a minha mãe de baba e ranho. Fechamo-nos a nível relacional e fez-se um muro ali até ao nível de relações e foi muito duro. Muito duro. Aliás o meu irmão depois passados três meses foi para Inglaterra, que foi uma coisa que me marcou e nós ficamos devastados. Foi uma coisa que nos marcou porque nunca na vida na minha casa pensássemos que isso fosse acontecer. Ficamos muito revoltados. Mas a relação de vizinhança sempre foi muito boa, até porque não foram pessoas de lá, mas foi uma coisa que nos marcou ao nível emotivo e psicológico, que teve grande influencia na nossa vida.
Projetos para o futuro?
Olha posso dizer que não está assim tão alargado. Cada vez… depois de chegar de Inglaterra, de perceber a forma como Portugal está ao nível de oferta, de procura, a nível de emprego, desanima um bocadinho, perceber que as coisas estão muito bloqueadas, há ofertas, mas com aqueles ordenados, que é uma falta de respeito não posso dizer outra coisa. Não sei se pretendo ficar por cá, sinceramente. Não sei. Estou agora a ter uma experiência temporária a fazer das 24H às 8h com bebés, mas é temporário e isto provavelmente será até 31 de janeiro, mas não sei como serão as ofertas futuras. Se continuarem a ser essas faltas de respeito não sei se quero ficar e por acaso vejo os bloqueios, vejo a loucura e que tira completamente a dignidade ao ser humano, mas não estou zangada com isso. Não estou zangada porque sei que tenho uma porta aberta do outro lado, com a entidade patronal onde eu estive, sei que posso adquirir esta bagagem mais do inglês, sei que posso ter outras experiências mais a nível social, do outro lado, mas não sei definir uma linha, não te sei dar nada assim exato. Tenho muita pena que Portugal esteja completamente alucinado. Tenho mesmo pena. Acho que quando Portugal acordar vai ser tarde, vai ser mesmo tarde e tenho pena que ele esteja completamente dopado. risos Completamente dopado. Tudo, tudo, tudo a sair… eu costumo dizer que esta governação é completamente uma anarquia, não me venha cá falar, é uma anarquia total. Tachos e mais tachos. E agora, quem trabalha e faz algo. Por isso é que as coisas não funcionam porque é tachos, por tachos, está salvaguardado não vou exigir mais de mim… é tão obvio, mas é tão obvio, acordem para a vida. Estruturação urgente. Urgente mesmo. Em relação à minha postura consigo dar-te assim estas orientações. Mas também consigo dizer-te que não estou nem um bocadinho chateada até porque já sei que não vou aceitar estas faltas de respeito. Como diz o outro e bem, nem só de pão vive o homem. Nem vamos por aí. Se não me sinto dignificada, não vou dar o melhor de mim.
E expetativas de longa data?
De longa data, gostava muito de ser mãe. Adorava ser mãe porque acho que tenho uma veia educacional muito forte. Sou uma pessoa muito sensível. Gostava de não só ao nível profissional de poder lecionar um dia, e apresentar as nossas raízes, apresentar a história, poder ver que os nossos miúdos estão a assimilar isto de forma positiva, positivista, todo o seu contexto e o seu histórico. Mas também viver isso dentro de algo mais intimo e pessoal, poder passar isto. O sonho passa um bocado por isto, por esta parte mais intima, mas maternal de poder passar aos meus, mas também a nível profissional passar a uma malta mais nova, mais jovem, isto. Acho que… tenho um bocado este sonho dentro do familiar, da construção familiar e ao nível profissional, tenho um bocado este sonho.
Valores? Valores que tenham sido passados pelos teus pais e que vais continuar a passar?
São muito verdadeiras, muito sincera. Não sei se a sinceridade pode ser considerado um valor, mas sou muito fiel. Acho que a fidelidade é um valor que no fundo foi passado. Acima de tudo fidelidade de carater, o correto e… a moralidade do que é certo e não certo. Acho que… não sei o dia de amanhã, mas dificilmente trairei um amigo. Trairei os meus valores e identidade. Acho que isto foi-me passado. Percebo tão bem isto que dificilmente deixarei de ser fiel, sou muito fiel. Daí também não suportar uma traição, não saber lidar, nem de um amigo, nem de uma relação mais intima. Penso tanto nisso, se eu não faço não quero que também me façam. Somos os dois de carno e osso, não tem a ver com o ser homem ou mulher, caracter acima de tudo. Acho que me passaram estes valores e passaram-me também o valor da luta, da perseverança, de lutar por aquilo que nós queremos. Acho que fizemos coisas diferentes na vida, eu e os meus irmãos, somos diferentes, mas na área em que cada um de nós quis para ele, ou quis para si, foi sempre assim na procura, na luta. Acho que eles próprios são exemplo disso, de luta. O meu pai teve agora um AVC infelizmente, mas a forma de ele estar a recuperar tão bem, porque quer tanto recuperar que o doutor diz assim ao meu pai: senhor Adriano tem que ter calma. Mas ele quer tanto isto, mas pode fazer mal a marcha. Ele diz: ainda bem que você quer, que tem essa motivação, mas tem que tomar cuidado para não fazer mal a marcha. Vamos lá tentar… ele quer tanto que… já recuperou, a senhora disso mesmo… quando vi o meu pai no hospital, lado esquerdo imóvel, pensei o meu pai não vai voltar a andar, vai ficar um homem acamado. O meu pai a três semanas de estar em casa, recusou fralda, já se sentava para fazer chichi nem que seja no balde, já anda, vai à casa de banho sozinho, faz tudo sozinho. Já tem a perna esquerda quase boa. Eu acho que é isso agente recebe dos nossos. Eu pensava que o meu pai não ia andar mais, que ia ficar altamente dependente. Para a semana vai começar a fazer fisioterapia externa. Acho que recebi muito isso, de uma realidade cultural familiar, não tem a ver com uma parte cultural só caboverdiana tem a ver com a forma como as pessoas estarem também. Ser caboverdiano também não pode ter tudo no mesmo saco, tem a ver com carater, com a forma de estar das pessoas.
Se tivesses que te descrever, como é que te descrevias?
Eu posso dizer que sou um vulcão, para o bom e para o mau também, porque acho que com o tempo vou cada vez mais acalmando e acho que já disse isso na entrevista, na forma de dar resposta, não é. Cada vez mais estou a encontrar linhas orientadoras de responder de forma mais diplomática. Mas eu não fico indiferente a uma agressividade externa, tenho uma necessidade muito grande de responder. Então como tenho uma sede muito forte de justiça, justiça é uma coisa que está muito cá dentro, então de forma quase automática é responder àquela forma injusta que não tem só a ver comigo, mas com quem está à minha volta. Acho que tenho uma forte sede de justiça, e tenho sempre a necessidade de intervir. Na comunicação tenho tentado adquirir novas formas de intervenção. Conseguindo dizer acalmando, de forma diplomática. Acho que sou justiceira pela comunicação, adoro comunicar. Cada vez gosto mais que não seja uma comunicação fácil gosto de uma comunicação criativa. Sou muito apaixonada pela criatividade, e quando comunico gosto que ela não seja chata. Gosto que ela não seja código morse, gosto que ela seja criativa. Gosto muito destes componentes, da justiça, comunicação e criatividade. Pego um bocadinho para essas três linhas. Tenho defeitos claramente e nos meus defeitos a nível externo, não estou a dizer que internamente sou organizada, mas a nível externo sou muito desorganizada. Sou altamente desorganizada e é uma das componentes que estou a trabalhar, ainda com algumas limitações. Sou muito organizada. Normalmente na minha desorganização consigo apresentar uma coisa superorganizada, mas fiz um trabalho mental para que isso acontecesse. Mas sou altamente desorganizada, a nível externo, a nível de papeladas. Sou muito desorganizada. Esta parte sensível da justiça muitas vezes traz-me a abordagem também muitas vezes brusca, brusca… acho que… também já foi mais defeito hoje, está a ser limado, mas é um defeito. Tem que haver esse crescimento para que ela não seja tão brusca. Mas às vezes também não sei se é defeito ou não, mas às vezes já não consigo fazer de forma mais tranquila, mas um bocado de forma prazerosa, porque há pessoas que merecem, há pessoas que merecem. Pode ter presunção ou não.
E consideras-te uma pessoa que faz planos?
Olha que eu sempre vivi sem fazer planos, e sempre tive sorte por causa disso. Aquela história do universo, de eu ser uma mulher quente… na altura em que eu fui mais feliz na minha vida foi quando não fiz planos. As coisas foram sempre acontecendo. Claro que tinha vontades… tinha vontades, mas não foram nada caminhos feitos com grandes planos. Gostava e acabava por fazer. Mas não sou uma pessoa de planear muito, não sou uma pessoa de planear muito. Daí a desorganização também. Acabo por gostar… por acaso tive sorte nesse sentido, gostar, querer fazer e conseguir realiza-los, concretiza-los. Acho que sou uma pessoa que arrisco, tenho alguma coragem, gosto de arriscar. Acho que sou um bocado aventureira e atrevida nesse sentido. Gosto de arriscar, tenho imensa sede de vida, de viver. Gosto imenso. Acabo por gostar tanto de experimentar, gosto de experimentar. Agora planificar e planear não é uma coisa assim tão minha. Não é uma coisa que faça muito parte de mim. Não sei se pode ser considerado planear esta coisa de forma momentânea apetece-me e escrevo, acabo por ser levada numa forma de gozo, de paixão, vivo muito nessa onda de viver apaixonada, de viver a coisa por gostar, mais isso do que planear. Aliás dói-me, para mim até é um sofrimento viver assim de forma planeada, tão regrada, para mim é sofrimento. Como eu gosto de viver assim de forma livre, sentir as coisas. Eu tenho de estar apaixonada. Sentir paixão naquilo que faço. Agora sim de forma tão regrada… para mim é sofrimento. Para mim já é uma linha de sofrimento. Mas em algumas situações senti ter um bocadinho mais de regras, na forma de viver a vida. Não quer dizer que não seja sensível com a pessoa e regrada na forma de relacionar e dar com os outros, mas uma coisa sistemática planeada, não é uma coisa que faça muito parte de mim. Aliás para mim é mastigar vidros. É uma forma exagerada… nós saímos que é uma linha orientadora o planear, só que parece que me tira ali a essência da coisa. Sinceramente para mim não funciona bem, e eu fui conseguindo fazer muito nesta onda de estar apaixonada por aquela temática, de fazer, de ter conseguido concluir, acabar, mas muito nesta onda, porque gostei, analisei, tem a ver comigo e estou numa onda de estar apaixonada. Nunca planeei assim… tanto que eu experienciei a nível laboral e depois estudei. Tem muito a ver com a minha forma de estar na vida. Tive essa sorte. Eu gostaria agora de tirar intervenção comunitária, mestrado, porque experienciei muito esta relação de intervenção comunitária, gosto, também quero ter a parte teórica para juntar aqui. Não faz sentido fazer por fazer, na minha cabeça. Funciono muito assim.