Então vou pedir que te apresentes, mas não precisas de dizer o nome. Idade, escolaridade, a profissão e que faças o mesmo para os teus pais.
A idade, tenho 26 anos. Sou licenciado em direito e atualmente trabalho num cartório. Estou a fazer o mestrado. Os meus pais… o meu pai é licenciado em direito. Atualmente não está a exercer e também está a fazer um mestrado. A minha mãe é assistente social, acabou o curso e esta a acabar o mestrado também.
São ambos de Cabo Verde?
São ambos de Cabo Verde, sim. Nasceram em Cabo Verde, eu nasci em Cabo Verde. Vim para Portugal com 7 anos de idade. Que mais?
Irmãos?
Há… tenho quatro irmãos, duas meninas. Uma fez licenciatura em… uma tem 26 é a que fez a licenciatura em análises clinicas, mais ou menos como… só que ela fez em Inglaterra e não estou a conseguir pensar bem na tradução. Fez um mestrado também nessa área. Depois a Zuleica fez… é assistente social que é a tradução que se faz para português, fez assistente social, está a fazer mestrado também. Depois os rapazes que é o…
Esta tem que idade?
A Zuleica tem 25, não tem 24. 24, 25, 26, sim, eu tenho 26, a outra tem 25 e a Zuleica tem 24. Fica mais fácil dizer os nomes, depois tu eliminas, fazes como quiseres. O Yuri tem 18 anos, feitos há pouco tempo e entrou para informática também em Inglaterra. Mas fizeram a secundária toda aqui e agora estão lá.
Então vamos começar pelo teu percurso escolar. Quero saber se fizeste tudo seguido ou alguma vez chumbaste?
Eu sou de janeiro e a minha mãe conseguiu que eu entrasse para a escola com 5 anos. Estudei até à 4.º classe… quando tinha 7 anos eu estava na 4.º classe em Cabo Verde. Tinha passado para a 4.º classe. Quando vim para Portugal… eu acho que hoje em dia já não fazem isso, mas na altura, meteram-me a voltar para trás, fui para o 1.º ano. Fui para o 2.º ano, aliás. Fui fazer a 2.º classe de novo. A minha irmã já quando veio, veio no ano a seguir, a Carina, que tem 25 entrou já para a 3.º classe, a ela já não reduziram tanto. Já aí perdi os anos. Mas a nível legal não perdi anos. Acho que estava na idade…não, perdi um ano. A nível legal, perdi um ano. Então comecei na 4.º classe. Viemos morar na antiga quinta do mocho, que eram prédios… não sei se te lembras. Viemos morar para a antiga quinta do mocho. Eu vim no 1.º ano, depois veio a Carina, depois a Zuleica veio também no ano a seguir. A Zuleica não foi atrasada, quer dizer com os anos as coisas mudaram, pela experiência tanto de mim como da Carina viram que nós acompanhávamos… acompanhávamos, sempre fomos dos melhores. Nós vivíamos no bairro social, era quase tudo africano e pronto os alunos africanos…os caboverdianos são aqueles que chegam a um nível elevado. Em Angola estava em guerra civil, então os alunos angolanos, mesmo os miúdos que tinham vindo não eram assim coiso. São Tomé só há bem pouco tempo que teve 12.º ano e o ensino é assim um bocadinho… Guiné também o mesmo problema. Então os caboverdianos acabavam por ser…então eu e a minha irmã, acho que não tivemos problema de adaptar à escola e tudo mais. Portanto, eu fui o único que fui muito prejudicado, nesse aspeto. Então do 1.º ano ao 5.º ano foi ali na quinta do mocho, primeiro numa escola, depois fomos para outra escola. Nunca chumbei até então. No 6.º ano fomos morar para Vila Franca de Xira. Numa altura de realojamento da quinta do mocho, os meus pais não quiseram que nós ficássemos naquele bairro. Esse foi um dos grandes sacrifícios dos meus pais, porque nós tínhamos um grande negócio… eles tinham um grande negócio ali naquele bairro, então tiveram que mudar praticamente tudo. Mesmo ao nível de negócios, dos clientes que vinham lá ter, deixaram de encontrar os meus pais lá, pronto. Fomos para Vila Franca de Xira, onde nós eramos os únicos africanos lá, eu e a minha irmã. Depois a Zuleica ainda andava na primária e o Yuri na pré-primária. Então eu e a minha irmã começamos a andar no mesmo ano sempre, desde o 3.º ano até ao 9.º ano. Só no 10.º ano é que nos separamos. Ficamos em Vila Franca de Xira até chegar a altura de entrar para o 12.º ano. Andamos juntos na mesma escola secundária. Nunca chumbei até ao 12.º ano. Depois apliquei-me para entrar para direito, na faculdade de direito de Lisboa. Não entrei… isso é uma história engraçada. É assim, eu gostava muito de história, fiz o exame de história tive 9,4. O curso de especialização para entrar em direito era história. A minha 4.º opção para aí era história. Eu entrei em história não entrei em direito, porque não tinha tido nota no exame, mas por ironia acabei por entrar em história na faculdade de letras. Tive 1 ano de letras. No ano seguinte era para fazer o exame, para tentar outra vez a faculdade de direito, só que os meus pais acharam que não, que ia demorar muito tempo para ficar à espera e preferiram, na altura era o processo pré Bolonha, em que a licenciatura era 4 anos, então na autónoma que foi onde eu acabei por estudar era 3 anos, então ia fazer o curso muito mais rápido. Então pesou-se a balança e eu fui para a autónoma. Fiz 3 anos na autónoma. Passei sempre. Fiz a licenciatura. Depois naquele ano em que tu não sabes, acabas a licenciatura e cais de paraquedas e não sabes para onde é que hás de ir, os meus pais... eu quis ir para França. Fui para Inglaterra para assistir à formatura da minha irmã Carina, eu estava licenciado, como eu e a minha irmã Carina sempre estudamos juntos formamo-nos no mesmo ano, fui para assistir à formatura dela em Inglaterra para depois dar o salto e ir para França que era o meu destino final. No entanto, eu gostei muito de Inglaterra e decidi ficar para fazer o mestrado. Mas para fazer o mestrado era preciso trabalhar. Na altura não estava casado, estava a namorar. Fiquei lá, trabalhei e no primeiro ano fiz aquilo que eles chamam o ano zero na faculdade de “Glamogan” no país de Gales, isto em “Triforest” perto de “Cardiff”. A Cardiff é a capital do país de Gales. Então tive um ano a fazer o ano zero. Depois candidatei-me para entrar para o curso de direito. Eles não aceitaram à primeira, aceitaram à segunda. Mas quando eles aceitaram à segunda eu já me tinha aplicado para Portugal e fui aceite aqui. Então, a minha esposa estava cá, e foi um ano longe um do outro, então achamos que não… vou voltar para Portugal. Voltei para Portugal, casamos nesse mesmo ano. Casamos e depois comecei o curso de mestrado do 1.º ano, agora estou no ano de escrever e defender a tese. Pronto.
Diz-me só uma coisa, acabaste a licenciatura com que idade?
Então deixa ver… eu tenho 26… tiro este ano, o ano passado tive em mestrado, depois estive em Inglaterra… ou seja, acabei com 23…22. 22…23 fiz depois. Acabei com 22 anos.
Voltando um bocadinho atrás, na primária não sentes muita dificuldade, mas na preparatória e secundária, quais eram as disciplinas que tinhas mais dificuldade? Se é que tinhas em alguma.
Curiosamente é inglês. Inglês… Inglaterra foi muito bom porque nunca pensei… agora já domino o inglês, mas nunca pensei que pudesse dominar. A única disciplina que eu tive realmente dificuldade foi o inglês. Português… aliás, português não, todas as disciplinas eu tinha um problema, que é, eu sou disléxico. Mas eu nunca soube. Nunca soube. Eu só descobri… tanto que eu escrevo poemas, leio, faço cópias, quer dizer, dava erros. Os professores pensavam… quer dizer os professores achavam estranho, porquê? A construção frásica e o discurso era de alto nível, mas os erros, eram erros básicos, que é os erros que um disléxico geralmente comete. Não sei se sabes, um disléxico, depende dos níveis, o meu nível não é muito alto. Qual é o problema da dislexia, nós ouvimos… porque tu quando lês uma frase tu não lês a frase, não lês palavra por palavra, são palavras que já estão na tua mente e tu basta leres a figura, a imagem e a palavra reflete-se na tua mente e tu consegues coiso…então o que acontece? Tu quando escreves, escreves o som, é o som que te sai da mente, e o disléxico funde sons. Isso é uma descrição muito básica. Confundo se é um s com dois s, se é com z, ou com ç, se é com i ou com e. Então esse é os meus erros. Há disléxicos que cometem outros erros mais graves. Nota-se na fala, na forma de pensar, na forma de se comportar. O meu era mesmo os erros. Ou seja, eu não tinha dificuldades a português no aspeto de entender e compreender e fazer, mas dava muitos erros ortográficos. Isso foi descoberto no 9.º ano. Eu fiz os testes, de 10.º ano e depois comecei a ser acompanhado por uma profissional e depois pronto aprendi as regras. Eu já sabia, mas tive de decorar as regras. Algumas palavras tive que decorar para não dar os erros. Hoje em dia fiz a licenciatura, nenhum professor até hoje sabe que eu sou disléxico, aliás, ninguém sabe, poucas pessoas sabem. Só a minha esposa, a minha mãe e os meus irmãos nem se lembram disso. Porque pronto… O meu pai curiosamente tem dislexia, mas ele nunca soube. Ele agora não dá erros, mas na altura em Cabo Verde “tu és burro” até ele entrar na linha, que é mesmo do típico caboverdiano. Então pronto ele entrou na linha, mas ele é disléxico. Tirando isto o que eu tive dificuldade era só o inglês, de resto sempre fui o aluno que competia. Por exemplo, eu lembro-me que quendo mudei para Vila Franca de Xira não havia muitos africanos. Era eu e a minha irmã, e mais duas pessoas. Olha, essa a Olivia era uma boa pessoa que podes entrevistar, eu vou falar com ela. A Olivia, estudamos na mesma escola, ela só veio um ano depois. Porque no ano que fomos para lá, eu e a minha irmã eramos os únicos africanos. Os meus colegas portugueses, diziam olá bom dia, mas tinham medo. Medo do desconhecido, não sabiam, não conheciam. Então era difícil aproximar-me deles. Uma das formas que eu arranjei foi ser o melhor da turma em notas. Competia, tentava ter melhores notas e tinha. Então isso fez com que eles percebessem que não está ali um africano conflituoso, daquilo que se ouve dos media, está ali uma pessoa inteligente, que é capaz de ter uma conversa e é capaz de ser amigo de qualquer pessoa. Pronto, hoje tenho amizades para o resto da minha vida, que gerou-se com base nisso. Eu era um dos melhores da turma. Eles viam-me como um dos melhores da turma em quase todas as disciplinas. Mesmo a português eu não conseguia ter muito bom, mas tinha bom. Por causa dos erros. Alguns erros eram tao crassos que eu não percebia porquê que dava aqueles erros. Então eu achava… chega a um ponto que há disléxicos que tem um bocado a haver com os nervos, estás muito nervoso aquilo vem ao de cima. Outra coisa… eu fiz imenso esforço para corrigir o R se estou muito nervoso carrego nos R. eu não sabia, mas as pessoas dizem que sim. Não dou conta, mas sim. Eu carrego…agora estou a carregar. Só foi o português na altura, agora já não tenho português. Mas na secundária tive muitos problemas com o português… com o inglês, desculpa. Português foi só a questão da dislexia, da dislexia. Inglês é que… eu acho que se calhar tem a haver um bocado com a dislexia e eu não conseguia aprender uma língua. Se calhar esse também é um problema dos disléxicos. Eu oiço, percebo… por exemplo francês, percebo francês, percebo tudo o que falam, tudo, tudo, mas não consigo falar. Tenho que estudar, tenho que ir para França uns tempos.
E quais das disciplinas te sentias mais à vontade na universidade?
História. risos Era bom aluno a história. A História acaba no 12.º ano, e depois do 12.º ano, filosofia, matemática aplicada às ciências sociais. Era bom aluno nessas disciplinas. TIC que era uma coisa muito fácil. Tanto que curiosamente as pessoas pensaram que eu ia para informática que eu tinha muito jeito, até hoje gosto muito. A minha tese é muito virada para isso apesar de ser legal é um bocado virada para as tecnologias. Era história, matemática aplicada às ciências sociais foi as disciplinas que nós tivemos. Historia, continuamos a ter história. Eu era bom aluno a história. Tanto que o exame de história foi uma depressão. Aquilo correu mal, aquilo correu mal, tive aquela nota não percebo porquê. Quer dizer, eu acho que tive aquela nota muito a haver por causa da dislexia. Eu não quis, mas eu podia entrar num processo de ser considerado um aluno disléxico e a correção levava em conta esse aspeto, mas eu não quis. quis mostrar que conseguia. Se calhar com o nervosismo ou a pressão que nos sentimos nos exames nacionais eu não consigo ter aquilo tudo que eu aprendi, que a psicóloga e tudo mais, então deve ter sido isso que me prejudicou imenso. Eu acho que tenha sido. Eu acho que tenha sido. Tanto que eu fiz os testes psicotécnicos para ver o teu coeficiente intelectual, é normal, só que a dislexia tens que treinar. Eu, o meu português eu tenho que treinar. A minha escrita tenho que treinar. Atualmente uso o computador, deteto os erros. Se eu estiver a escrever muito rápido eu deteto os erros. Mesmo que o computador não corrija eu consigo detetar os erros. Mas eu dou os erros, mas eu vou e corrijo. É assim que a minha cabeça funciona. Não deixas de disléxico, corriges porque sabes que aquilo está errado. Porque o cérebro é muito automático, o cérebro dá aquele erro, sabes que é errado vais lá e corriges.
Mas nunca foi preciso tomar nenhuma medicação para isso?
Não, não. É o que eu digo, o meu nível de dislexia é muito baixo. Eu conheço pessoas que têm níveis muito altos, são também pessoas muito inteligentes, muito mesmo, alguns até mais inteligentes que eu, mas têm um nível de dislexia tao alto que se reflete não só nos erros, na forma de pensar, no estado de humor. A dislexia é um problema complexo. Olha, Einstein teve dislexia, tanto que ele era o pior aluno de sempre. Ele não conseguiu fazer licenciatura nenhuma. Steve jobs e outros mais, muitos mais. Há muitas pessoas que conseguiram atingir o sucesso e têm um nível de dislexia muito superior ao meu. Porque o meu é aquela questão, são erros, são erros… o meu era num nível tao medio que podíamos pensar que era mesmo burrice percebes. Podias pensar que era burrice. Dependia às vezes do meu estado. Eu podia estar bem e não dar erro nenhum. Podia fazer um texto e não dar erro nenhum. Mas a seguir dar erros, percebes. Um disléxico puro não, funciona sempre daquela forma. Então foi mesmo preciso uma técnica para… a professora desconfiava, mas não tinha a certeza… e o técnico de dislexia para detetar essas coisas… a minha técnica por acaso era disléxica, ela agora domina aquilo a 100%, ela corrigiu e ela cobra imenso. Cobra imenso. A minha mãe teve de pagar e ela acho que deu uma consulta de graça porque são valores… para um africano aquilo… Nós ermos quatro a minha mãe tirar aquilo tudo era um balúrdio mesmo exorbitante, mas foi muito importante. Eu tive para aí 3 sessões e aquilo ajudou-me para o resto da minha vida. Porque a partir daquele momento eu sabia que tinha dislexia, não aceitei ser discriminado na escola positivamente. Os meus professores saberiam qual era o meu estado, mas não aceitei ser discriminado positivamente. Esforcei-me foi para alterar essa coisa na minha cabeça. Hoje em dia tento dizer que não sou disléxico para não meter a desculpa na dislexia e tentar-me corrigir, mas também não digo que sou burro, porque sei que não sou burro.
E como é que vês as instituições por onde andaste? Ou seja, as escolas…
As escolas… olha, a bartolomeu dias… A escola da primária não me lembro o nome. Foi das melhores experiencias, era muito fixe. Havia muitos problemas… as minhas turmas foram sempre as piores turmas sempre, nos anos em que eu andei. Ali na secundária o pessoal era o pior, eram os que se portavam pior. Era pessoal que se portava mesmo mal. Tive uma professora que quase entrou em esgotamento. Quase… depressão nervosa. Ela chorava nas aulas… risos foi quando ela entrou em esgotamento que o pessoal tipo ficou com pena e começaram-se a portar melhor, mas era mesmo pior. Na altura, na altura eu não notava muito o racismo que era uma coisa que eu comecei a notar no 5.º ano. No 5.º ano notava-se mesmo, notava-se. Havia professores que estavam curiosos, perceber… eu era um aluno de diferente do típico tipo que vem do bairro. Eu conseguia ter boas notas, conseguia fazer uma boa intervenção. Conseguia sem estar a se convencido. Eu era.. fui delegado de turma sempre. Os colegas escolhiam-me como delegado de turma. Conseguia, mas notava-se que os professores tinham sempre aquela cena. E quando mudei para Vila Franca de Xira, aí é que eu sento mesmo isso. Eu lembro-me por exemplo que eu tive uma professora de matemática, eu nunca passava do 3 com aquela professora e quase que chumbava. Graças a deus ela engravidou, teve que ir para casa e eu tive… veio uma nova professora que diziam que era muito dura, mas eu com essa professora tive 5 a matemática, fui… ia às maratonas de matemática, qualquer coisa assim, aqueles concursos de matemática que se faziam, já não me lembro bem o nome… olimpíadas de matemática. Eu ia às olimpíadas de matemática. Então eu passei a adorar matemática com aquela professora. Aquela professora não me discriminava, não me discriminava nesse aspeto. Eu na sala de aula, isso foi sempre, na sala de aula era muito quietinho. Quando era delegado de turma… no 5.º ano apanhei uma das piores turmas de sempre e nessa turma por exemplo eu era delegado de turma, então os colegas tinham de se portar bem se não lá fora iam-se ver comigo. Tipo lá dentro… tu vês no bairro, eu lá dentro na sala de aula portava-me bem, lá fora tinha que impor aquele respeito, então lá fora era assim um bocadinho terrível. Mas, sempre… aquelas coisas normais, porrada, coisas da juventude. Quando vim para Vila Franca de Xira a mesma coisa, com as continuas eu era supersimpático, sempre fui, supre educado. Se tu fores a Vila Franca de Xira elas lembram-se de mim, na Bartolomeu Dias onde estudei. Fui delegado de turma lá também até decidir não ser mais, era muito chato, dava muito trabalho. Era reuniões, era muita chatice. Depois… aí senti racismo mesmo, de quase todos os professores. Só algumas é que escapavam. Notava-se, não era só comigo era com as minhas irmãs. Notava-se que nos eramos os únicos africanos. Nós notávamos que tínhamos que nos esforçar muito mais. Eles não eram tao compreensivos com o facto de nos somos jovens e às vezes falarmos, não é. Se calhar se falássemos duas, três vezes eramos capazes de ir para a rua. Olha eu nunca fui para a rua, nunca faltei a aulas nenhuma até ao 9.º ano. No 12.º ano tive uma desilusão amorosa e faltei às aulas. Comecei a faltar às aulas. Do 10.º ano para cima é que pronto…senti que alguns professores… a nível de instituições, não sei agora como está, eu acho que se calhar mudou um bocado, não tanto assim, mas eu acho que nota-se bem que há professores que não conhecem o aluno africano, não estão preparados para lidar com um aluno africano, não estão preparados para ensinar ao aluno africano. Porque há uma grande discrepância entre a nossa língua crioula caboverdiana de Santiago… tu és daqui?
Sim.
E os teus pais?
O meu pai é de Cabo Verde e a minha mãe é angolana.
Ok. Sentes-te mais próxima de Angola ou de Cabo Verde? Nem um nem outro. Nunca saíste daqui?
Fui a Cabo Verde.
Foste a Cabo Verde, ok. Os professores não estão preparados, por exemplo para os caboverdianos não estão preparados. A diferença de línguas, na língua, a maneira como escreves, a forma como vão ensinar, eles não sabem. A culpa não é deles, eles não têm formação para aquilo, não sabem. Ensinam como se fossem ensinar todos os outros. Nem falo da questão da dislexia, porque isso para mim nunca foi um problema. Mas a discriminação, o não estarem preparados institucionalmente para ensinar isso sim, nota-se. Tanto para mim e a minha irmã é capaz de dizer a mesma coisa. Eu digo a mesma coisa, era evidente. Nós sabíamos que havia essa questão. A paciência era menos. Se for preciso há um colega branco que passa o tempo todo a falar na aula, mas o africano só pode falar umas quantas vezes. Se for preciso leva logo um recado para casa que porta-se mal. Eles têm medo que aumente… hoje estas a fazer isto e amanha já estás a fazer pior. Então eles tipo tentam cortar. Eu acho que é essa a leitura que eles fazem. Pronto, basicamente foi isso. Olha, outra coisa, eu quando fui para o 10.º ano, do 10.º ano até ao 12.º ano na minha escola, foi na Vasco Dinis, a minha turma era uma turma complicada, mas foi deixando de ser. O pessoal foi chumbando, alguns foram desistindo, do 10.º ao 12.º eu lutei naquela escola… porque naquela escola depois do 25 de abril houve uma associação de estudantes e depois deixou de haver associação de estudantes. os professores não queriam porque a associação de estudantes interferia muito no funcionamento da escola. O presidente ada associações de estudantes podia interferir muito no sistema escolar. então o que aconteceu? Eles barravam, não diziam que não, mas barravam com burocracias. Então eu andei desde o 10.º ano, tentei fazer uma associação de estudantes e não consegui. No 11.º ano consegui que eles me elegessem como representante dos alunos. Eu ia às reuniões, mas não foram os alunos que me elegeram foram os professores… eu estava disponível a isso e propuseram que eu votava em algumas reuniões. No 12.º ano foram para lá alguns professores estagiários novos que me ajudaram e a escola já não teve como dizer não. Eu preenchi todos… todos os anos eles inventavam. Durante o ano todo inventavam coisas que tinha de fazer. Era coisas que eu tinha de assinar, formulários... eu fiz tudo o que eles pediam até que chegou o ponto de pegar na legislação e ver que não era necessário tudo aquilo e pronto já não podem pedir mais, já fiz tudo. Então com ajuda desses professores estagiários conseguimos fazer eleições. Houve eleições na escola, eu ganhei. Fui presidente da associação de estudantes no 12.º ano e depois aquilo continuou na escola. Os miúdos que vieram atrás continuaram com aquela ideia. Atualmente eu acho que pararam, mas eu acho que não é problema da escola, é um problema do pessoal que já não se estruturou. Agora os miúdos estão mais interessados em ganzas e noutras coisas do que propriamente com a escola. Mas, daquilo que eu soube há dois anos deixou de haver. Mas pronto, aquilo continuou. Foi uma das coisas que eu fiz. Uma coisa que eu falei com a Ana e que ela me disse, na escola dela acho que a professora era caboverdiana e forçou todos os professores a terem uma formação de crioulo para perceberem e para estarem preparados para ensinar a um aluno vindo de Cabo Verde. O aluno vindo de Cabo Verde apesar de estar num nível avançado, acho que onde o aluno tem mais dificuldades é na língua portuguesa e os que vêm da Guiné Bissau. Porquê? Em Cabo Verde sofrem de esquizofrenia na linguagem. A nossa língua oficial é o português, mas ninguém fala português. Em Cabo Verde só se fala crioulo. Os tipos tentam falar português, mas é assim um português assim um bocadinho… Apesar de já existir pessoas que falam assim um português muito bem, que vieram cá para fora. Mas o caboverdiano, falando de um caboverdiano nascido em Cabo Verde a falar português tem sotaque, como tu sabes. Eu acho que o aluno caboverdiano… A Lívia nasceu em Cabo Verde, mas também… quem vive naquela zona geralmente… porque nós já somos pretos, nós somos diferentes… temos que eliminar as diferenças ao máximo. A língua é uma diferença. Se nós tivermos aquele sotaque eles acabam sempre… eu quando vim de Vila Franca ainda era pior… eu depois de ter a minha namorada, ela é santomense, ela tem sotaque carregado é que o meu sotaque mudou, dou por mim a falar assim um bocadinho com sotaque santomense. Ás vezes, eu não dou conta, mas às vezes. Não sei, o que é que eu posso dizer mais.
Diz-me porquê direito?
Porquê direito? O meu pai… o meu pai fez direito… o meu pai lutou com direito já eu andava no 12.º ano…
Quando o teu pai começou a fazer a licenciatura andavas em que fase escolar?
Acho que ainda estava no 9.º, o meu pai teve anos a fazer direito. Ele trabalhava e estudava. Ele estudava à noite, então ele andou a engonhar muitos anos. Mas acho que devia estar no 9.º ano ou 10.º ano, para aí. A minha mãe começou comigo. Quando eu comecei a faculdade a minha mãe começou. Não… a minha mãe quando começou eu estava no 12.º ano. A minha mãe começou quando eu estava no 12.º ano. O meu pai esteve mais tempo a fazer. No inicio fazia uma cadeira, e uma cadeira e estudava à noite. Sim… podia dizer que o meu pai influenciou-me? Não sei até que ponto. O meu pai, é o típico pai que não tinha muito tempo para estar em casa, mas quando estava era uma ramboia. Era luta para aqui, luta para ali. Uma coisa que ele implementava sempre, os jantares são muito barulhentos porque é toda a gente a discutir assuntos do dia a dia, assuntos que têm a haver connosco. Então essa atitude nele, que é permanente e no jantar é sempre assim até hoje, a minha esposa nem está habituada, nós ao jantar… é para falar. Estamos a comer e sempre a falar. Então isso gerou um espirito argumentativo quer dizer, tem sempre que se argumentar qualquer situação. Eu lembro-me por exemplo o meu pai quando começou a estudar direito teve que analisar um excerto do livro de Platão que é a “República”, já ouviste falar, não é, e eu peguei nesse livro e comecei a ler. A minha mãe que é caboverdiana e a mulher caboverdiana como se diz em crioulo “tem moles”, tipo bater é uma coisa fácil. Então eu argumentava muito, porquê? Para já eu desde pequeno tive… a minha mãe dizia que eu era um chato. Porquê? Perguntava porquê por tudo. O que é que é isto? Ela depois de o meu implementar isso em nós, porque só para tu perceberes o meu pai veio para Portugal, nós ficamos lá até… eu fiquei lá até aos 7 anos. Eu até aos 6 anos, as minhas irmãs, 6, 5 e 4, ficamos com a minha mãe em Cabo Verde. O meu pai estava em Portugal. A minha mãe depois é que veio e depois é que nós viemos. Até aos seis anos… depois de vir para Portugal é que comecei a conviver mais com o meu pai. O meu pai…eu já era um jovem, uma criança curiosa, com isso que o meu pai começou a fazer, gerou mais isso de querer saber o porquê das coisas. Então o que é que acontecia? A minha mãe às vezes dizia coisas e eu queria saber porquê? Ela mesmo dizendo isto não se faz, eu tinha de saber porquê? Tens de me explicar. E ela às vezes achava que aquilo era um desacato à autoridade dela, então aquilo muitas vezes acabava em chapadas. Chapadas e tal, estás a falar assim para a tua mãe… Eu lembro-me então que quando o meu pai apareceu com aquele livro, eu comecei a ler filosofia, comecei a ler filosofia porque aquilo era filosofia pura, eu ainda estava no 7.º não… aquilo é um livro do 12.º ano, o meu pai ainda esta no 10.º ou 11.º, então eu devia estar para aí no 9.º ano ou assim. Não te quero mentir, mas é por aí. Eu comecei a ler aquilo, era filosofia pura. Então eu comecei a argumentar. Então os argumentos começaram a ser mais complexos e aquilo irritava a minha mãe. Então ela foi falar com o meu pai e disse que a culpa era do meu pai porque ele está sempre a criar discussões entre nós. Discussões positivas. Ainda por cima deu-me aquele livro e eu estou a argumentar com tudo e mais alguma coisa. O meu pai tirou-me aquele livro e escondeu. A minha mãe já não o deixava em pás. Eu não pude ler aquele livro mais. Agora tenho Platão, o texto completo em casa e ainda gozo com a minha mãe. Mas lembro-me que eu argumentava muito… mas eu disse isto tudo porquê? Perdi o fio à meada…
Se foste influenciado para ires para direito?
Sim…então, ou seja… não digo…o meu pai influenciou dessa forma. Não pediu que eu fosse para direito… aliás eu acho que tudo o que o meu pai fez eu imitei. Eu sou do PAICV, sabes que é o partido que está no poder em Cabo Verde. Eu sou do PAICV o meu pai é do PAICV. O PAICV é um partido de origem de esquerda, eu familiarizo-me com a filosofia de direita. Aqui em Portugal por exemplo eu acho que nunca tivemos um primeiro ministro de esquerda forte. É a minha opinião. Eu acho que os nossos primeiros ministros, que tivemos… os ministros de esquerda em Cabo Verde é muito bom, porque ajudam muito Cabo Verde… Sócrates ajudou muito Cabo Verde, mas eu não posso com o Sócrates. Mas eu gosto muito dos primeiros ministros de direita. Mas em Cabo Verde por exemplo, se tu… agora uma questão politica, em Cabo Verde tu não consegues fazer distinção entre direita e esquerda, está tudo muito misturado. Cabo Verde o que precisa é de politicas que deem resposta ao povo e não uma politica completamente social, nem uma politica completamente económica. Estás a ver… precisa do mix, de uma esquerda de centro, então… apesar de nós sermos da esquerda comunista, o PAICV foi Emídio Cabral. Emídio Cabral fundou o partido comunista aqui em Portugal, fundou o MPLA em angola. Então tipo… o meu pai nesse aspeto influenciou-me. Em direito também. Se calhar foi o meu pai que me influenciou, mas eu sempre tive essa questão de querer defender os outros, de querer… nunca tolerei injustiças, nunca tolerei racismos. Os professores… eles podiam fazer um racismo discreto, um racismo pouco direto, mas se fizessem um racismo direto, isso eu não queria saber das notas, não queria saber de nada, eu confrontava. Sempre foi… não posso ver um racismo. Hoje sou muito mais tolerante, percebo que é da cabeça das pessoas, há coisas que não vale a pena. Mas naquela altura…tanto que eu li Luther King, li e ainda leio Malcolm X. na altura familiarizava-me mais com Malcolm X. quer dizer, supremacia black… mas hoje muito mais Luther King. Luther King é muito mais pacifico. É mais a minha visão agora. Gandhi também… são os patronos da Academia Ubunto. Antes da Academia Ubunto já tinha mudado o meu pensamento em relação ao ser português e o africano. Eu consigo perceber o lado deles. Nós somos desconhecidos. Então aquilo que eles vêm na media não favorece nada. Aquilo que eles vêm na vida real também não favorece. Nós sabemos que a nosso pessoal jovem devido ao sistema acabam por entrar num caminho… a culpa não é só do sistema, a culpa é deles também, mas pronto o sistema propicia esse caminho e os jovens acabam por entrar naquele caminho e depois cometem erros. Depois isso faz com que as pessoas generalizem. Consideram todos a mesma coisa, então eu percebo o lado deles. Então é essa a visão que mudou em mim. O Malcolm X não percebia. O Malcolm X ficou chateado com o que aconteceu no passado e pronto. Eu encarnava Malcolm X., mas comecei a ter amigos brancos em que os pais eram racistas no inicio, mas depois hoje adoram-me, não é. Conheceram-me de frente. Ei tive namoradas portuguesas. Esses eu não consegui mudar… esses não eram racistas… um genro negro eles não queriam. risos ya… portanto é assim, o meu pai influenciou-me. Posso dizer que quem me influenciou é o meu pai, mas pronto eu acho que sempre tive essa coisa dentro de mim. Sempre tive essa questão. O mau pai ajudou a que isso ficasse mais forte. Eu nunca tive dúvidas. Antes de o meu pai entrar em direito, eu já queria ser advogado. Eu estou a pensar quem é que me influenciou nisso, assim uma pessoa, uma figura… à Gandhi… Gandhi também fez direito, Gandhi fez direito… fez direito em Inglaterra. Antes do meu pai… o meu pai sempre soube que ele… sempre argumentava muito e tal. Sempre ajudou muito em questões legais, então sempre soube que ele podia… antes de ele começar a licenciatura, ele podia ir para essa área. Mas Gandhi… é um conjunto de fatores que não é só o meu pai, mas também é as figuras que eu escolhi para crescer, o meu pai é uma delas. Mas Gandhi, o meu pai e o dia a dia. Sempre tive essa coisa de querer ser politico. Politico antes eu pensava que era uma profissão, atualmente… não é uma profissão… é discutível isso, não é. Mas pronto, quero ser politico, então normalmente os políticos são todos de direito, fazem todos direito. Queria ser como o Gandhi defender os oprimidos. Depois eu conheci Gandhi através de Luther King. Mas depois comecei a gostar mais de Gandhi. Eu adoro os dois, mas pronto… Luther King não fez direito, Luther King fez teologia. Mas acho que ele depois fez direito. Não me lembro em.
E quem é que te incentivou mais em termos práticos?
A ir para direito, a estudar?
Sim.
A estudar eram os dois. Podes ver, nós somos todos licenciados. O meu irmão ainda não acabou, entrou agora, o meu irmão tem 17 anos… entrou para… ele também é de janeiro, entrou para a licenciatura com 17 anos. Não queriam aceitá-lo por ter 17 anos em Inglaterra, mas ele conseguiu e entrou. Então é assim, os meus pais, nisso eles fazem pressão. Vocês têm que estudar. Eles estudaram depois, são um exemplo. Se eles estudaram porquê que nós não estudamos. Eu e a minha irmã Carina fizemos a licenciatura. O que obriga… os outros dois os meus pais nem precisam exercer muita pressão. Eu e a Carina tivemos mais pressão. A Zuleica mais e o Yuri muito menos. A Zuleica teve mais e o Yuri não teve nada. Mas, no entanto, o facto de nós… o Yuri já não são os meus pais, mas somos nós os três. A Zuleica era os meus pais, mais nós os dois. Eu e a Carina fizemos o mesmo percurso, então os meus pais faziam muita pressão em nos. Eu lembro-me por exemplo, eu não tinha negas, não podia ter negas. Eu lembro-me a primeira vez que tive negas, a história, história é a disciplina… a disciplina que tinha 5 era a história, mas eu tive nega a história uma vez. Lembro-me que a primeira nega… chorei imenso. Cheguei a casa e levei porrada. Eu não podia ter negas. Eu não podia ter negas. Se tivesse negas, chegava a casa e levava porrada. A Zuleica já não teve isso, e o Yuri então… o Yuri… eu a minha mãe a professora escrevia algo na caderneta, de chegar atrasado, porque eu gostava muito de futebol então chegava atrasado, um minuto, dois, tocava o segundo toque, a professora quando era muitas vezes escrevia. Eu chegava em casa chorava de baba e ranho, mas a minha mãe mesmo assim não perdoava nenhuma. A minha mãe, aminha mãe realmente tinha a mão muito leve risos. Agora esta com a neta e não é a mesma coisa. O Yuri já não foi a mesma coisa. O Yuri não levou porrada nenhuma. Eu levei imensa e a Carina levou… o meu pai nunca me bateu, o meu pai bateu a todos os meus irmãos, mas a mim nuca me bateu. O meu pai discutimos muito até hoje. Eu e o meu pai discutimos muito, mas é discussão saudável. Se estou aqui com o meu pai vais pensar que ele é meu amigo. Discutimos como amigos, discutimos questões politicas de todo o tipo. Eu sou do PAICV, mas sou aquele PAICV mais à direita possível. Mas eu não sou apologista da politica de direita. Familiarizo-me a nível ideológico mais com a esquerda, mas acho que as duas coisas podem complementar-se. O exemplo que eu conheço de Portugal, nós nunca tivemos um bom líder de esquerda. Eu podia dizer por exemplo, sei lá… o atual comissario dos… dos refugiados… não te lembras… como é que ele se chama… o António Guterres. António Guterres foi um bom líder, bom, um bom primeiro ministro. No entanto abandonou, ele demitiu-se, isso torna ele… na academia tivemos um encontro com ele onde ele explica essa situação e depois de ele explicar denota-se que foi preciso imensa coragem para ele demitir-se, porque ele queria implementar coisas, mas o sistema partidário… o sistema democrático e partidário não permitiu. Então como não conseguiu implementar as coisas, ele sentiu-se frustrado… ele nunca explicou isso à comunidade, a Portugal, mas naquele… aquilo foi uma coisa muito fechada… ele sentiu-se tao pressionado… tão frustrado que ele decidiu eu vou-me demitir. Mas houve pessoas que tiveram na mesma situação e não se demitiram, estás a ver. O Sócrates por exemplo… acho que isto não tem nada a haver com a entrevista, mas assim a conversa vai fluindo… O Sócrates por exemplo é muito mentiroso, o Paços Coelho também é, mas o Paços Coelho tem coragem e o Sócrates não teve coragem. O Sócrates se tivesse implementado as politicas de austeridade não precisavam de ser tao fortes. Eu penso isso, estás a ver. Portugal precisava, mas ele não teve essa coragem, porquê? Porque o eleitorado não ia gostar. É um bocado à esquerda, porque a esquerda preocupa-se com o povo, com o que o povo vai sentir na prática, enquanto que a direita é mais tem que ser tem que ser, não quero saber, vamos aos números. Ainda ontem houve uma entrevista do primeiro ministro, não se viste…
Não.
Não sei se acompanhas politica e eu estou aqui a falar de politica.
Nem por isso.
A direita… a direita fala muito mais de números. O Passos Coelho ontem só falava de números. As pessoas estão a entrar na pobreza, mas pronto, tem que ser. O discurso é mais ou menos isso. Enquanto se calhar o Sócrates não, o Sócrates é mais socialista, preocupa-se mais com o humano, estás a ver. Mas eu acho que as coisas… eu apesar de ser de esquerda, pode-se dizer que sim, mas… as coisas têm consequências. Se tu fazes…se tu fazes dividas e as dividas não é o Estado que faz… quem faz somos nós, o Estado está a aguentar o sistema que nós temos, teve que fazer dividas e quem usufruiu do sistema fomos nós, quem tem que pagar somos nós. Os ricos usufruíram da mesma forma, mas não usufruíram mais que nós. Então porque as pessoas dizem os ricos têm de pagar mais, porquê? Os ricos usufruíram da mesma forma. Então, pronto é essa a minha opinião. Quem me influenciou mais, os dois. A minha mãe sempre ficava em casa, ela é que acompanhava a nossa vida escolar. ela é que ia às reuniões. Ela é que nos batia quando tínhamos negativa. Ela é que acompanhou a nossa vida escolar. mas o meu pai também fazia a sua pressão. Porque havia momentos… eu comecei a ter a voz grossa, comecei a crescer, comecei a ficar um homem. A mãe já pensa… ela tem imenso poder sobre nós, ela começa a pensar que já não tem. Começa a bater imenso, para se impor. Mas já não é suficiente porque tu já pensas pela tua própria cabeça e aí tem de vir o pai, que é mais autoritário. Então não precisa bater, basta falar que tu entras logo na linha. Então… o meu pai quando teve que ser o pai que faz aquela pressão… na faculdade é o meu pai que faz mais a pressão. Na faculdade é o meu pai, até ao 12.º é a minha mãe, pode-se dizer assim.
E como é que eram os hábitos de estudo em casa?
Eu estudava muito pouco. Sempre estudei muito pouco. Mesmo na faculdade. Quando é que estudei muito, na licenciatura, no último ano. Já estava mais maduro. Consegui uma bolsa. Sempre trabalhei durante a licenciatura, comecei a trabalhar desde o 12.º ano. Então trabalhei no 12.º ano. Na licenciatura trabalhei até ao 2.º ano. No 3.º ano consegui uma bolsa então parei de trabalhar. Foi o melhor ano que eu consegui estudar, foi o ano que eu estudei. Nos outros anos eu não tinha tempo para estudar. Apesar de no meu ano, eu fui dos melhores alunos, do meu ano, tive as melhores notas, mas nunca estudei muito, nunca estudei muito. Então em casa estudava como estudo ainda hoje que é à noite, quando toda a gente está a dormir. Numa casa de muitas famílias, de muitas pessoas, o estudo diurno é complicado. A minha irmã conseguia, a minha irmã conseguiu estudar, a Carina conseguia estudar, estudava muito. Até hoje a minha irmã, sou suspeito de falar, mas eu acho que ela é muito inteligente. Mas mesmo assim estudava. Eu acho que o rapaz e a rapariga é um bocado assim, o rapaz é mais preguiçoso a estudar. Eu era, eu era preguiçoso para estudar e estudava só nas vésperas. Sempre... portanto não tinha muito hábito de estudo. Há noite jogava muito computador e ainda jogo, via muitos desenhos animados, ainda vejo. A minha esposa diz, como é que é possível, tu tens 26 anos. Mas eu gosto muito de desenhos animados. Porquê? Porque eu sou muito calmo, mas o meu pavio é muito curto. Como é que eu explico isso? Eu não posso levar as coisas muito a sério porque se não extravaso-me emocional. Então para não levar as coisas muito a sério levo as coisas mais relax. Isto faz com que eu seja um bocadinho relaxado com as coisas. Por exemplo, eu cheguei atrasado. Porquê que eu cheguei atrasado? Porque estava a trabalhar. Estava a trabalhar e devia sair às 18h, mas tinha trabalho a fazer e eu relaxo e perco-me naquilo, estás a ver. Distraiu-me no tempo. Então quando estou a ver desenhos animados é mais ou menos isso, deixo de pensar. Deixo de pensar e entro no mundo dos desenhos animados. Eu desde novo que sempre gostei muito de desenhos animados e até hoje continuo a ver. Prefiro mil vezes ver desenhos animados do que novelas. Porque as novelas acho que é bué deprimente. Já os desenhos animados suscita-me o imaginário. Então eu perco-me. No outro dia na academia perguntaram-me quando é que me sinto livre? Eu sinto-me livre quando estou a ver desenhos animados. Estou na boa, não estou a pensar em nada. Parece que eu estou numa nuvem. Já não é o meu sofá é uma nuvem. Os desenhos animados é tipo não penso, está a ver. Isso ajuda-me muito. Eu faço ioga… já não faço há um bom tempo, então o desenho animado ajuda-me a meditar. Todos nós… eu acredito nisso, todos nós meditamos, só que não sabemos. Nós temos uma fase durante o sono que é… nós temos duas fases durante o sono, é uma fase que é leve, e uma fase que é pesada. Quando tu meditas, meditas a sério, consegues entrar nessa fase pesada, mas conscientemente, é quando tu tens noção que estás lá e estás naquela fase. Então nós meditamos durante o sono, Carl Sagan é um cientista que fez um dos maiores comentários a nível cientifico, em que faz uma viagem pelo universo, em que descreve o universo, faz uma passagem completa pelo planeta terra. Foi a primeira pessoa a falar de algo a que chamam de cosmo. Cosmo é a energia negra do universo. Isso está provado cientificamente. Nós… se tu não dormires, a questão de tu dormires não é só a questão física. Porquê que o teu corpo recupera? Não é só porque ele descansa. Ele realmente descansa, mas existe uma energia que… nós a nível de componentes, temos as mesmas componentes que as estrelas. A mesma coisa que alimenta as estrelas, que é uma bola de fogo que está muito longe… a mesma coisa que alimenta a estrela, aquela bola de fogo é a mesma coisa que nos alimenta. E esse combustível é o cosmo. É uma energia negra que vem do universo e tu no estado de meditação, a energia que tu emanas… a energia cerebral… eu agora estou a transmitir energia para ti. Existem equipamentos que conseguem medir isso, estás a ver. Por isso é que existe a energia boa, a positiva e a negativa. Portanto eu transmito energia, tu transmites energia, portanto estamos numa troca constante de energia. E estamos numa troca constante de energia com o universo também. E nós quando dormimos, entramos nessa fase profunda de sono. Tanto que é assim, tu podes dormir, mas se acordares, se não entrares nessa fase profunda, que há pessoas que têm essa doença, essa patologia, não consegues descansar- essa fase profunda é essencial. Essa fase profunda que é o momento em que o teu cérebro… isso é cientificamente discutível, porque o ioga, o mestre de ioga diz que para tu meditares verdadeiramente tens de parar de pensar. Os cientistas dizem que isso é impossível. Mas tu quando dormes, quando entras nessa fase profunda entras no estado em que a energia que tu recebes que é o cosmo, recebes de uma forma muito superior. Muito superior na tua mente. Por isso uma pessoa que f az ioga é muito calma, muito espiritual. Carrega muito essa energia. Eu já não faço ioga há muito tempo. Bebo café que tem a ver com o trabalho, tens de ficar acordado. Quem faz ioga deixa de beber café, deixa de precisar de dormir tanto. Se eu estiver a treinar mesmo a sério, deixo de precisar de dormir tanto. Eu não preciso de dormir 8 horas eu preciso de dormir 4h, isso também é um bocado de hábito. Há pessoas que conseguem dormir 4h e conseguem absorver a energia. Porquê? Porque quando tu meditas recebes essa energia do universo e parece um bocado merabólico, mas isso é cientificamente… é discutível, existem cientistas que dizem que é verdade, há cientistas que dizem que é mentira. Depende de como cada um acredita. Eu acredito nas energias, portanto acredito que a meditação ajuda. Eu acredito que quando eu estou sentado desenhos animados, eu relaxo, eu relaxo. Eu não entro num estado de meditação, mas entro numa coisa parecida. O Einstein quando descobriu a teoria da relatividade ele estava no banho, o… como é que ele se chama… uma das maiores leis da física é… nos somos atraídos ao centro da terra… gravidade, o senhor que descobriu a teoria da gravidade, que ele estava sentado, caiu-lhe uma maça em cima da cabeça não me lembro bem… ele naquele momento, ele viu a maça a cair… quer dizer nos momentos em que tu tens a maior inspiração é no momento em que tu estás mais relaxado, mais na boa. Não pensas nos problemas, que é fundamental não pensar nos problemas. Eu levo a vida assim, fazer as coisas, não levar a vida muito a sério. Não posso pensar nos problemas muito seriamente. Então preciso ver desenhos animados.
Aproveitando a conversa, como é que tu passas os teus tempos livres, hoje me dia?
Hoje em dia passo os tempos livres com a minha filha…olha é melhor que desenhos animados, é a melhor coisa do mundo estar com a minha filha, estar com ela, falar com ela, é muito fixe. Mas… eu tenho uma família, então para alem de trabalhar no cartório, faço… dou apoio ao pessoal da faculdade de direito. Dou apoio de direito. Portanto o meu tempo livre é muito curto. O tempo livre mesmo que eu tenho é muito curto. Dou apoio em direito. Faço solicitadoria e, trabalhos de mestrados e licenciatura. Pós-graduação também. Então não tenho muito tempo livre. O tempo livre que eu tenho… por exemplo se eu saísse daqui eu ia para casa, eu ia fazer um trabalho, está a ver. Eu ia fazer um trabalho, eu não tenho tempo livre. O tempo livre que eu tenho é tomo banho, sento a comer, e esse é basicamente o tempo livre que tenho e aproveito para ver desenhos animados. Atualmente tempo livre não tenho. Mas é assim quando eu tenho tempo livre o que eu gosto de fazer e faço muito é exercício físico. Eu ia caminhar, a minha arte marcial favorita é a capoeira, fazia capoeira, tenho o meu grupo, quer dizer, faço capoeira. Atualmente não faço porque não tenho tempo para. Fazia capoeira, kikoxing. Portanto para estar num estado mesmo brutal… estes trabalhos eu faço para poder ter dinheiro para poder aguentar a minha casa, porque a minha esposa atualmente só estuda não trabalha, então quem sustenta a casa atualmente sou eu. Então tenho de fazer estes trabalhos, não tenho tempo para estudar. Não tenho tempo para relaxar, não tenho tempo para treinar, nem para fazer ioga. Mas nos tempos livres o que gosto de fazer e sinto-me bem a fazer é ver desenhos animados, documentários, vejo muitos documentários, leio muitos jornais e muitos livros. Gosto muito de ler livros. Prefiro ler jornal, odeio ver televisão. Televisão tipo programas programadas em português, só aquilo que eles querem e está tudo programado. O jornal, que eu acho que é tudo muito fabricado. Então não gosto de ver telejornal, a minha esposa vê e gosta, mas eu não gosto. Eu não gosto de ver novelas. Vejo muitos documentários, gosto muito de ver documentários. Tenho lá milhares gravados para eu ver. Estou sempre a sacar para ver. Tenho milhares de livros. Tenho uma biblioteca em casa e todos os dias faço uma biblioteca. Tenho uma biblioteca digital. Não tenho tempo para ler, não tenho tempo para ler. Estou há não sei quanto tempo com este livro para ler, mas vou lendo. Os meus tempos livres é isso. Gosto de ler, gosto de fazer exercício físico, muito. Gosto de ioga, muito, muito, muito. Gosto de artes marciais, muito, muito, muito. E gosto muito de ver desenhos animados. Os meus tempos livres, se eu tivesse mesmo tempos livres é isso que eu gosto de fazer.
E viagens?
Adoro viajar. Estas a perguntar onde é que eu já fui?
Sim.
Já fui a França, já fui a Inglaterra, já fui ao Senegal.
Com que propósito?
Senegal foi assim. Eu quando vim de Cabo Verde eu vim com uma senhora, portanto não vim com os meus pais, vim acompanhado com uma senhora, vim a Sal, isto é algo confidencial. A senhora fazia não é bem tráfico de menores… a senhora tinha documentos portugueses, os filhos também tinham, então ela aproveitava-se disso… eu vim como se fosse filho dela, percebes, a viagem. Isso praticava-se muito, essa senhora foi presa em Senegal há uns tempos atrás, acho que cumpriu pena e agora está em Cabo Verde. Eu vim, eu e a minha irmã, viajamos juntos via Sal, para o aeroporto de Sal, mas não conseguimos passar. Ela para puder passar de certeza que tinha algum contato…devia ter algum controlo… eu vim a descobrir depois, porque nunca me esqueci da senhora, e depois os meus pais explicaram-me porquê que as coisas aconteceram daquela forma. Vim via Sal, com 6 anos, mas não conseguimos passar, voltamos para trás. Depois vim via Senegal e já não vim com a minha irmã, vim sozinho e foi aí que eu passei no Senegal. Fiquei uma semana em Senegal e vim para Portugal depois. Para França fui para aí 15 dias para um batizado que os meus pais eram padrinhos, então nós acabamos por ficar lá durante uns tempos. Para Inglaterra fui fazer o ano zero. Mas eu gosto muito de viajar. Se eu fosse milionário eu viajava imenso. Isso é uma das coisas que eu vou fazendo. Eu tenho a convicção que vou ser milionário. Eu não sou convencido, não sou, não sou, eu estou aqui a falar de mim, parece que eu sou convencido, mas não sou. Não sou convencido, sou até bastante humilde. Tento… se lidares comigo no dia a dia vais ver que eu sou bem humilde, não sou gabarola também, sou uma pessoa normal, tento… só que é assim, eu não paro para pensar nas coisas que conquistei, mas quando paro para pensar eu mesmo fico admirado, está a ver… porque conquistei, estás a ver. Alguns colegas meus passaram por lá e não conseguiram, estás a ver. Então pronto. Eu acho que tudo é uma escolha, e nós temos várias, não digo, várias provações, porque acredito que Deus não nos mete à prova, mas temos vários testes. Não é bem prova, mas é... é... é barreiras para poderes saltar e quando saltas cresces. Eu acho que eu soube ultrapassar as minhas barreiras. As minhas barreiras… Eu por exemplo… olha as coisas que mais me custaram na vida, nem tem nada a haver com a escola, as coisas que mais custaram na vida foram as desilusões amorosas. Eu era muito romântico, muito romântico, muito, muito. Era meloso. Descobri isso depois, não sabia. Eu via muito… romântica FM, a rádio que eu ouvia quando era pequenino, porquê? Porque quando a minha mãe ficou em Cabo Verde, eu era o bichinho dela, andava sempre com ela, sempre, sempre. Sempre, sempre. Eu e as minhas irmãs tínhamos diferença de um ano, eu estava sempre com a minha mãe. A minha mãe eu via muito… então o meu poi mandou dois CD de musica romântica. Quer dizer, eu desde miúdo pequenino ouvia musica romântica. Até hoje eu sei as musicas de cor dos dois CDs de cor. Os dois CDS românticos, então eu sempre fui muito romântico. Então isso sempre continuou comigo. Ao vir para Portugal ouvia muito musica romântica. Eu não sei dançar quizomba, sei dançar funaná. Aprendi funaná que é mais fácil. Quizomba, eu sei porquê, porque eu não saio muito para discotecas. Aprendi os toques, depois não vou, não pratico e não sei. A minha esposa dança muito… eu vou um dia aprender quizomba. Um dia vou aprender. Mas é um bocadinho vergonhoso não saber dançar quizomba. Mas eu não vou muito a discotecas, não vou mesmo. Prefiro ficar em casa ficar com os amigos. Mas quando vou divirto-me muito. Não bebo… se estou a fazer yoga não bebo. Em Inglaterra quando estive lá pensei em ser vegetariano durante um ano, gosto muito da filosofia… aliás se eu pudesse eu era vegetariano. Eu era vegetariano. Mas pronto… eu gosto muito de comer, quando treino como que nem um leão. Portanto ser vegetariano é um bocado complicado. Por isso é que eu não consigo. Por isso é que eu não consegui em Inglaterra. Decidi ser vegetariano em Inglaterra, mas tive que mudar porque estava a emagrecer imenso. Porquê? Porque eu em Inglaterra trabalhava muito, e eu trabalhava… acordava… fazia muito yoga na altura, muito yoga, muito yoga, muito. Fazia sessões que eu vim a descobrir que eram de instrutores de yoga. Que eu descobri na internet e fazia aquelas sessões. O método de rose, que é um método que não é considerado yoga tradicional… é um yoga baseado no yoga antigo… o yoga presente atualmente na europa, é um yoga muito, muito do… do fitness, do fitness e vamos ficar zen. Isto não tem nada a ver com o yoga que eu faço. O yoga que eu faço a meditação é a última fase de todas. É dividido por 8 fases. Tu para chegares à meditação tens de passar pelas fases todas. Eu já fazia as fases todas sem nunca ter passado por instrutor. Comecei a praticar com um instrutor cá em Portugal. Em Inglaterra fazia muito yoga. O yoga faz com que tu emagreças. Se tu não te alimentas bem, pior ainda. Então eu comia, mas não fazia um vegetariano como deve ser. Um vegetariano bem alimentado é muito forte e fica forte, pode até ser gordo. Bem feito… mas eu não sabia. Aquilo foi uma experiencia, eu tentei, tentei ser vegetariano, mas estava a ficar muito magro. Quando eu casei, casei muito magrinho, muito magrinho mesmo. Mais magro do que estou agora. Agora estou muito magro porque já não treino há muito tempo por causa da gravidez da minha esposa, de ela não poder mais trabalhar e de só eu é que tenho de trabalhar, não tenho tempo de treinar nem nada. Portanto, estou muito magro atualmente. Mas em Inglaterra trabalhava… acordava à 5h da manhã, ia para a faculdade até às 8h, depois limpava tipo o Hostels o que eles chamam de hotel para os estudantes, limpava o hotel para os estudantes, das 8h/8h30m, das 8h30m até às 16h ia para as aulas. Nos dias que eu tinha aulas, trabalhava até ao meio dia, ou então não ia para os hostels. Porque as aulas começaram a decrescer. Então eu ia para as aulas… num percurso normal até o meio dia. Depois tinha aulas das 14h até às 16h e depois ia para uma fábrica de chocolate das 17h até as 22h. aquilo era uma distancia longa. Tinha de correr uma distancia mais ou menos daqui ao Cais do Sodré, para apanhar o comboio. Apanhava o comboio até “Triforest” que era onde eu vivia, que era para lá 45m de viagem. Acabava por chegar a casa sempre à meia noite e tal, no ultimo comboio que eu apanhava. Lá os transportes naquela zona, era uma coisinha lá a um canto, eram complicados. Tinha que dar atenção à minha esposa pelo skipe, depois tinha que fazer yoga. Então acabava por dormir às duas. Mas como fazia yoga eu aguentava esse ritmo. Dormia às duas e acordava às 4h. Fiz isso durante um mês, quase dois meses. Mas isso, como eu me alimentava mal, fiquei muito magro, fiquei muito magro. Parei de praticar o vegetarianismo. Aqui em Portugal é que eu comecei a treinar com profissionais que corrigiram… eu saia muita coisa do método, que eu aprendi sozinho. Fazia as praticas todas sozinho, baseado num livro do mestre de Rose que ainda está vivo. E pronto… ainda hoje fiz alguns exercícios. Mas hoje em dia não tenho tempo para treinar yoga. Eu já não sei porquê que comecei esta conversa?
Também não sei… mas de qualquer das formas, tinha-te perguntado sobre as viagens…
Eu divago muito, não é?
Um bocadinho, mas não faz mal que até é bom.
Ok, pronto.
Agora queria saber um bocadinho o que é que tu sabes sobre Cabo Verde? O que é que te foi transmitido pelos teus pais e se já lá voltaste?
Eu vou tentar não divagar, se eu estiver a divagar diz-me. O advogado fala demais e o politico também. Eu acho que tenho essas veias, então podes meter um Stop, não há problema. Então é assim. Eu acho que faz parte da cultura caboverdiana para onde nós vamos levamos a nossa cultura, levamos a nossa cachupa, levamos o nosso funaná, levamos o nosso crioulo, levamos o nosso grog, levamos a nossa torresma, levamos o nosso milho, estás a ver. Isso, então eu não perdi. Mesmo a pessoa que sou aqui em Portugal… mesmo a maior parte dos bairros conhece a cultura caboverdiana, nem que seja no mínimo. Eu não sei se no teu caso, era a tua mãe que era caboverdiana?
Não, o meu pai. De que ilha?
De Santo Antão. Ah… os da ilha de Santo Antão até gostam muito de carregar na tradição. O teu pai não te passou isso?
Nem por isso.
Nem por isso, ok. Então eu e os meus pais passaram. Eu cresci no bairro, no meu bairro lá na quinta do Mocho a maior parte das pessoas eram angolanas, pessoas que fugiram à guerra… eu vou devagar outra vez, mas tu assim sabes a história toda da Quinta do Mocho. A Quinta do Mocho eram prédios que foram inacabados, mas a razão não interessa, eu sei, mas para não… são prédios inacabados que as pessoas que vieram de Cabo Verde na altura para trabalhar no prédio, trabalharam no prédio, aquilo entrou em falência, deixou de haver dinheiro para pagar aos trabalhadores, os trabalhadores viviam em casernas e deixaram de viver em cavernas… o caboverdiano construiu casitas à volta daqueles prédios. Mas na altura começou a vir pessoas de Cabo Verde para fugir à guerra civil e foram viver para os prédios inacabados, que não tinham elevador, que não tinham luz elétrica, que não tinha saneamento básico. as pessoas atiravam tudo pela janela, lixo, as fezes, tudo. Os prédios eram coisas assim, eram torres enormes, era o prédio dos guineenses, o prédio dos santomenses e o prédio dos angolanos. Os caboverdianos não tinham prédios, os caboverdianos moravam à volta e alguns santomenses. Nesses prédios, aqui era um repositório dos prédios, a parte de trás dos prédios era lixo por todo o lado. Só não havia lixo pela parte onde as pessoas tinham que entrar no prédio. Muitas pessoas morreram na quinta do mocho, porque os prédios… os elevadores não tinham caixa, quer dizer tinham caixas, mas não eram tapadas, tinham só o buraco e não tinha o elevador. Então muitas pessoas caiam para baixo. Os prédios não tinham luz elétrica então as pessoas para subir as escadas não havia corrimão, então corrias o risco de cair pelo corrimão. As pessoas foram… foram… o africano trabalhou muito na construção civil, dentro dos prédios algumas casas eram autênticos palácios, mas não havia saneamento básico, eles tinham de atirar o lixo. Aqueles que não eram porcos vinham cá em baixo e metiam, não atiravam as coisas pela janela. Mas a maior parte das pessoas… aquilo era uma pratica comum, acho que nem era uma questão de porcaria. O ser humano funciona muito com o exemplo, não é. Tu tens o exemplo do outro, fazes aquilo que às vezes fases e nem pensas porque estás a fazer, se está certo ou errado. Acabavam por atirar as coisas pela janela fora. A Quinta do Mocho era um bocado isso. Ok, tu perguntaste o quê?
Tinha-te perguntado sobre Cabo Verde.
Ok, Cabo Verde.
Começaste a falar como é que te foi transmitida a cultura?
Na Quinta do Mocho havia muitos angolanos, então eu aprendi muito com a cultura angolana. Falo o calão deles, gosto muito de falar, tenho muitos amigos angolanos. Falo muito o calão angolano, gosto muito de imitar. Não sou… nota-se bem que não sou um angolano genuíno quando estou a falar, mas chego lá perto. Os meus amigos dizem que sim. Mesmo assim eu não perdi na cultura caboverdiana sempre meio Cabo Verde, via Cabo Verde na televisão sentia saudades, apesar de ter vindo de lá com 7 anos. Os melhores momentos da minha vida foi quando a minha mãe veio para Portugal e eu fiquei na casa dos meus avós, porque a minha mãe era muito protetora, é muito protetora. Nós quando vivíamos com ela, só para tu teres noção, nós até a minha mãe vir para Portugal, não íamos para a cama sem beber um copo de leite, não comíamos com as nossas próprias mãos, tínhamos uma empregada que nos metia comida à boca, os três irmãos, um de cada vez. Não tomávamos banho sozinhos tínhamos alguém que nos dava banho. Quando a minha mãe veio isso tudo mudou, tivemos que fazer isso tudo sozinhos, mas aventurávamo-nos, fomos viver para o campo. Viver no campo é um espetáculo. Corres para aqui, jogas à bola, fazes um conjunto de coisas que… a minha mãe não nos dava essa liberdade. Então eu vim para cá com 7 anos. Aqui sempre tive saudades de Cabo Verde, os meus pais sempre falaram de Cabo Verde. Eu sempre tive Cabo Verde em mim. Eu mudei para Vila Franca de Xira e isso não mudou. Sempre tive aquela coisa de como Malcolm X, sempre me quis aproximar mais das minhas origens. Então, não me quis perder das minhas origens. Aproximei-me muito das minhas origens.
Para além do que já me disseste do milho e essas coisas, o que é que os teus pais te transmitiram de Cabo Verde? Por exemplo, falavam crioulo em casa?
Sim, nós só falamos crioulo com o meu irmão mais novo. O meu irmão até hoje…se tiver aqui a minha irmã eu falo com ela em crioulo, mas o meu irmão está aqui falo português. Ele percebe crioulo, mas não fala crioulo porque fala com um sotaque muito esquisito e tem vergonha, mas sabe falar. Mas sim, nós falamos crioulo em casa, falamos sempre crioulo. A maior parte dos caboverdianos são assim. Se eu estou com um amigo caboverdiano e os meus amigos angolanos reclamam muito isso, é inconsciente, eu falo crioulo, não falo português. Aquilo sai naturalmente. Então… os meus pais, os meus pais passaram muito de Cabo Verde, mas a cultura mesmo, a cultura mesmo, mesmo não, a cultura mesmo a fundo não. Fui eu que fui à procura. As minhas irmãs já não têm isso. As minhas irmãs já não têm isso. Elas louvem-me a falar sentem falta, eu não sei nada disso, mas são coisas que eu… eu fui à procura, eu quis saber. Aquela coisa de africanismo, estás a ver, eu quis saber. Eu fui à procura de coisas da cultura de Cabo Verde. Assim, o batuque, o batuque é uma dança. Apesar de nós dançamos batuque mas não sabemos qual é, a origem do batuque. As minhas irmãs provavelmente até hoje não sabem. Dançam um funaná, mas não sabem qual é a origem do funaná estás a ver. A morna, a morna em coladeira, isso é em casa… o meu pai apesar de gostar de Cesária Évora, Bana, não é uma coisa que ele me transmitiu muito isso. Por exemplo, uma coisa que foi um confronto… foi um confronto dentro da minha família foi eu casar-me da forma que eu me casei, eu decidi casar e casei. Mas o caboverdiano não. O bom caboverdiano antes de casar tem que falar com os pais- eu não, não pedi a eles autorização. Um bom caboverdiano… isso é cultural, a cultura pede que os pais deem a bênção. Eu não pedi isso. Eu casei no registo, quando casar na igreja quero fazer isso tudo para que não haja chatices como houve da outra vez, porque foi muito complicado da outra vez que os meus pais não gostaram muito, mas… isso é um bocado culpa deles porque eles não me transmitiram isso. Eles não me transmitiram… eu aprendi a moda europeia. Vou casar, vocês já conhecem a minha namorada, ela é muito fixe, nós vamos casar no dia X. Foi o que eu fiz. Os meus pais não gostaram. Os meus pais eu tinha de falar com eles, tinha de falar com a família em Cabo Verde, tinha que falar com a família da esposa, tinha… porque foi o que eles fizeram e é isso que é cultural. Quer dizer, o superficial o caboverdiano não perde… aliás, o essencial, a música, a comida… o meu prato preferido é a cachupa, eu posso comer a cachupa todos os dias forever que não me canso. Cachupa, a comida, isso passou-se. Dança, comida, a língua, isso não se perdeu. Os hábitos, a maneira de ser do caboverdiano, o temperamento, também faz parte da nossa cultura, isso acho que não. Mas as coisas de cultural, de práticas usuais, o uso do puro caboverdiano, eles vão perdendo e então acabam por não conseguir passar para mim, para nós e nós… mesmo nos bairros sociais os pais acabam por coiso… Por exemplo os meus pais eram muito mais pais caboverdianos assim na maneira de ser duro, mas com o meu irmão já não foram tanto. Evoluíram, ficaram mais europeizados. O meu pai aquela coisa da mesada que europeu, o pai caboverdiano não ao filho mesada. O meu pai a mesada, as discussões de jantar eram isso, eu acho que a mesada é muito educativa. Ele hoje em dia, ele nunca admite isso, porque é o próprio, mas ele já deu mesada ao meu irmão, estás a ver. Isso já é uma evolução. Quer dizer, eu para ter mesada tive que trabalhar, que é o que o caboverdiano culturalmente faz, mas o meu irmão já não teve que trabalhar, que é o que o europeu faz. Então a cultura vai-se perdendo. Mas eu acho que no caboverdiano em concreto, o essencial fica lá sempre. Acho que sim. Eu não perdi, não perdi. E eu fiquei cá no ano passado, desde os 7 anos, eu fui como delegado do partido de Portugal, do PAICV que tem uma delegação cá em Portugal, fui como um dos representantes, fui o único jovem representando os jovens a um congresso que houve em Cabo Verde, megacongresso que houve em Cabo Verde, portanto eu fui através do partido. Só tive lá uma semana e eu perdi o voo quase de prepósito porque estava muito bom. E vou voltar este ano outra vez porque é muito bom.
E tendo em conta o que já sabias de Cabo Verde quer da experiencia em pequeno, como depois o que te foi transmitido pelos teus pais, chegando a Cabo Verde com o que é que te identificaste e com o que é que de alguma forma…
Tudo. Senti-me em casa. Andar na rua… falas sempre crioulo, não tens de pensar em português. Quando entras numa repartição eles até podem tentar dar aquele português meio variado mas pronto um gajo tem saudades de falar crioulo e quer falar crioulo. Falas crioulo e eles acabam por falar crioulo. Alguns insistem em falar português porque sentem inferiorizados, estás a ver, estás a dizer que eu não sei falar português, então falam português. Pronto, eu às vezes compreendo isso e falo português. Mas andar na rua e falar sempre crioulo, comer peixe fresco tradicional caboverdiano, comer cachupa, comer… quer dizer, ver africanos, existem mais claros que tu, até há brancos, mas vê-se que aquilo é africano. Por acaso aquilo agora lá tem muitos portugueses e chineses. Mas quer dizer, a pessoa sente-se em casa mesmo. Olha, quando eu fui para Inglaterra e vim para Portugal, sentia-me em casa era brutal. Mas quando fui para Cabo Verde foi das melhores sensações do mundo. Acho que nada é por acaso. Nós nascemos num sitio por um propósito e durante a vida às vezes os propósitos mudam e nós acabamos por… mas o nosso destino no fundo acaba por estar sempre ligado à terra. Tanto que normalmente o caboverdiano acaba sempre por voltar a Cabo Verde. Se não for velho é no caixão, tem sempre essa vontade, porque estar na nossa terra é muito bom. Tu podes ir a Cabo Verde e Angola e gostar, mas Portugal é a tua terra, inconscientemente, porque isso é uma coisa intrínseca quando tu nasces, no momento que tu nasces. Há uma energia que te liga a este país de uma forma tao forte que é uma coisa que podes pensar que pode ser quebrado… quer dizer nada é impossível, pode ser quebrado quero Portugal, não é Portugal que eu quero, mas sentes-te em casa e quando estás em casa, está em casa. Eu senti-me em casa, senti-me mesmo em casa. Familiarizei-me muito com a cultura caboverdiana, muito com o que os meus pais dizem e fiquei maravilhado, vi coisas fantásticas, que eu não saia que o crioulo é assim, nomeadamente a haver com a cultura. No meu país… o país evolui muito, está a evoluir muito. Cabo Verde apesar de não termos nada, não termos nada, só temos sol, vento e areia, mas… a agua do mar também, mas o país está a conseguir evoluir. A oposição não diz isso, mas eu lembro-me, o aeroporto era uma coisa minúscula, para vir para Portugal nós tínhamos que ir para Sal, não havia direto, não é, isso é um exemplo. As estradas eram péssimas, eram de pedro, agora já é tudo… na zona dos meus… televisão nem vela, luz… nem na cidade como mais no campo, energia elétrica. Curiosamente na praia a luz vai com uma facilidade enorme, mas no campo já não é bem assim. Eles têm lá televisão, tem praticamente tudo, o país evoluiu muito, eu gostei muito de Cabo Verde. Vou voltar, gosto muito de África e vou voltar a africa. Sinto-me muito conectado a Portugal, gosto muito de Portugal, cresci aqui em Portugal, não me perdi na cultura. Não posso dizer que sou mais português que caboverdiano, mas dizer que sou mais caboverdiano do que português, não sei, é discutível, porque a maior arte da minha vida foi cá em Portugal. Mas acho que sou mais caboverdiano do que português. Eu preocupo-me muito com Portugal e com o futuro de Portugal, preocupo-me muito com o futuro dos meus, dos descendentes como eu, apesar de eu não ser um descendente, eu comprei a nacionalidade.
Era o que eu te ia perguntar, tens nacionalidade portuguesa?
Comprei a nacionalidade. Foi uma coisa que me irritou muito, porque eu já jogava futebol e na altura só podia haver um jogador africano por equipa. E já havia, eu era caboverdiano na altura e já havia e eu não podia jogar. Foi por isso que eu fiz a nacionalidade, mais uma vez seguindo o meu pai, o meu pai não queria ter a nacionalidade, até hoje não tem, ele sente-se caboverdiano, quer passaporte caboverdiano e não precisa da nacionalidade portuguesa para nada. Eu tinha um bocado essa ideia, mas quando me deparei com essa barreira de não teres a nacionalidade. O meu pai agora quer fazer a nacionalidade porque ele tem a barreira agora de não poder ir ver as filhas e precisa de ir. Tem saudades e elas sempre têm que vir. Não foi à formatura de nenhuma delas porque não pode ir para lá. Então pronto… eu tive de fazer a nacionalidade, tive…
E como é que foi o processo? Foi fácil, foi complicado…
Para mim foi fácil, porque eu adquiri… na altura era mais fácil e depois eu ainda não tinha 18 anos, devia ter 16 anos para aí. Então adquiri através da minha mãe, junto da minha mãe. Então foi mais fácil. O meu pai não tem, mas a minha mãe, eu e todos os nossos irmãos, todos nós temos. Foi fácil, foi fácil. Eu por exemplo, eu na Academia Ubunto e depois da licenciatura é que eu descobri da dificuldade que os africanos têm para adquirir a nacionalidade e cada vez mais. Cada vez mais, cada vez mais. Mas eu não tive muito, não tive muita dificuldade. Se calhar como era jovem não tive muito. Coisas que eu me lembro que custou, foi vir ao CEF e isso era para renovar documentos, vínhamos ao CEF de X em X tempo. Depois da nacionalidade que fomos ao CNAI nunca mais tivemos que nos preocupar com isso, foi o BI, foi renovar o Bi que não é a mesma coisa, é fácil. Foi uma coisa complicada.
Tinhas falado do temperamento caboverdiano, como é que tu te descreves?
O temperamento caboverdiano… o caboverdiano caracterizando, o caboverdiano é trabalhador, como nós não temos nada, temos de ser trabalhadores, trabalhadores. Mas o caboverdiano tem um temperamento que é… caboverdiano nunca teve guerra civil, não se consegue explicar o nosso gosto por catanas, facas. Não se consegue perceber que a primeira coisa que nós pegamos para nos defender é facas. Isso é uma coisa que é instinto. Atualmente é um bocado fama, mas antigamente… essa fama surgiu porquê? Em Cabo Verde era mesmo muito usual e os estrangeiros que vinham para cá esfaqueavam-se muito uns aos outros e esfaqueavam-se muitas outras raças e em toda a parte do mundo, os caboverdianos passavam-se esfaqueavam-se. O caboverdiano tem um feitio de… não podes… tem um orgulho muito aguçado, um orgulho muito alto, não podes pisar o meu orgulho. A partir do momento que tu pisas o meu orgulho eu tenho de te matar. Isso… au não penso assim, não vou matar alguém, mas… aí está, tu pisas em mim, eu tenho que responder. Hoje sou mais maduro, tenho muito aquela cena de respeitar… o caboverdiano em si, tem muito aquele temperamento de não aceitar que não te pise. A minha mulher por exemplo, ela é santomense, ela é de origem caboverdiana, o temperamento dela, nesse aspeto… eu sou muito compreensível com as pessoas, porque leio, tento ler muito as pessoas, tento perceber quem tu és, donde vens, sem falar muito contigo, tento perceber as coisas, tento ser compreensível contigo e com as situações, tento-me por do lado das pessoas… O caboverdiano não, não aceita, não aceita… o puro caboverdiano não aceita que lhe pisem nada. Mesmo os que nascem cá são um bocado assim, rebeldes. Rebeldes nesse aspeto, não aceitam, não aceitam ser pisados, ser espezinhados. As vezes não são, sentem-se espezinhados à toa.
Sentes que fervem em pouca agua?
Fervem em pouca água. O caboverdiano ferve muito em pouca água. E faz muita confusão. Festa de caboverdiano sem um bom soco não é festa. Eles bebem e depois descontrolam. Isso é cultural mesmo, estás a ver. Como o meu pai por exemplo, ele ia para as festas, eles iam com facões assim, toda a gente… os colegas, amolavam a faca, guardavam e iam para a festa. Se tu pisasses alguém, é guerra logo, estás a ver, logo. E havia quem fosse para a festa com esse objetivo, estás a ver, de guerrear. Então pisavam para poder andar à porrada e depois esfaqueavam-se uns aos outros. Existem zonas piores que outras, mas isso aí, esse temperamento caboverdiano só se aplica em algumas ilhas. A ilha de Santiago, que é a ilha onde tem mais negros, onde são os mais brutos, tem muito mais isso. As outras ilhas, por exemplo a ilha do Fogo também. Os do barlavento têm um temperamento também muito mais coiso. Mas as outras ilhas tipo São Vicente, a ilha do teu pai e as ilhas ali à volta, já são mais refinados, já são mais portuguesados, já não têm aquele feitio muito… mas têm, mas têm, não dão com faca, como badio… o badio gosta mesmo de faca, é confusente. Eu não sou assim, como não me considero assim. Tanto que é assim eu não posso levar as coisas muito a sério, tenho que relaxar, porque se levar a coisa a sério, emociono-me, enervo-me facilmente. Eu lembro-me quando era criança, qualquer coisa era motivo para eu chorar e ficar bravo, estás a ver. Agora já não.
Dirias que os caboverdianos cá e lá são iguais?
Os que nasceram cá não são. Os que nasceram lá… o caboverdiano é muito humilde, apesar dessa parte aí que não pises em cima de mim, a não ser que abuses da minha humildade. O caboverdiano é humilde, ele sabe que é humilde e quer ser humilde, gosta de ser humilde. Mas quando ele vê que estás a abusar da humildade dele, ele rapidamente vira a moeda. O caboverdiano lá continua a ser um polvo muito humilde, muito hospitaleiro, típico do português, herdamos isto dos portugueses, somos muito hospitaleiros, são parecidos. Mas de cá, os miúdos da segunda geração ou da terceira, eu não sei… supúnhamos que eu sou da segunda geração, os da terceira já não têm nada a ver com os de lá. Estás a ver, já não têm nada a haver. O caboverdiano é muito respeitador, muito educado, muito, muito, muito mesmo. Isso chega a ser mais educado do que humilde. Mas os miúdos daqui já não são educados. Porque já é uma coisa que não é do caboverdiano, já é mesmo da sociedade europeia, evoluída em si, em que os miúdos já respondem aos pais, os miúdos já não respeitam os idosos. O caboverdiano de lá, o caboverdiano da minha geração… é um bocado isso. Respeitam muito os idosos, não falam mal para alguém mais velho, têm muito essa coisa, estás a ver. Respeitam muito os pais eu não bebo à frente da minha mãe até hoje, não fumo. Eu não fumo, mas se fumasse. Coisas que eu sei que a minha mãe não gosta não faço. Não bebo, não fumo, tento não responder com respostas… não digo mentira… é mentira. Não digo asneiras. Sou casado, vivo na minha casa, a minha mãe vai à minha casa, mas eu não digo asneiras. Ás vezes lá escapa uma ou outra, mas fico com vergonha, peço desculpa, estás a ver. Os miúdos de agora não, o meu irmão já não é assim. O meu irmão já é completamente diferente. O meu irmão é português. O meu irmão vai a Cabo Verde sente-se caboverdiano, gosta de Cabo Verde, já foi, mas para dizer que vai viver lá, não vai. As minhas irmãs vieram para cá com a mesma idade que eu, eu vim com 7, passado um ano veio a Carina, passado um ano veio a Zuleica, todos viemos com 7 anos de idade, elas ainda não foram a Cabo Verde. Eu não sei se elas vão-se sentir a viver em Cabo Verde. Não sei. Mas eu era capaz de viver lá. Eu adoro Cabo Verde, eu adorei Cabo Verde. Adorei meso. A única coisa que me pode impedir de não ir viver para Cabo Verde é a minha filha, esta a ver. Apesar da educação lá estar num nível muito alto, aqui as crianças são mais evoluídas. O caboverdiano acaba por igualizar, acaba por vir para aqui estudar e consegue. Mas as crianças em si são mais curiosas, são mais arriscadas, então sou capaz de ficar aqui ou ir para a Inglaterra, ainda não pensei bem, por causa da minha filha.
E que aspetos positivos e negativos destacarias da não só da cultura, mas de Cabo Verde em geral? (1H49m)
De Cabo Verde, tipo o quê?
Qualquer coisa que tenhas visto lá e que tenha emocionado pela negativa?
Olha… eu quero desenvolver um projeto para acabar com isso… o caboverdiano é mulherengo… tem muitas mulheres… é difícil encontrar um filho de caboverdiano que não tenha irmãos fora do casamento. Tu tens?
Não.
Boa. O meu pai teve uma filha antes do casamento, que eu tenho mais uma irmã mais velha do que eu, não cresceu connosco, eu trato ela como irmã. Ela não é licenciada, ela trabalha como interna, é mais velha que eu um ano, portanto o caboverdiano faz isso, o africano faz isso. O africano… a monogamia é uma cultura ocidental não é uma cultura africana. O africano é poligamia, isso é que é a cultura em África. Cada homem na tribo podia ter varias mulheres, o homem serve para proteger as mulheres. Eu não concordo com isto. Então a monogamia é uma coisa europeia, é uma coisa ocidental e a poligamia é africana. Então isso ainda está nos genes, nós temos isso nos genes. O caboverdiano quer reproduzir o máximo possível que pode. O caboverdiano faz isso. Isso nota-se aqui e em Cabo Verde então, é drástico. Existem muitas, muitas, muitas mães solteiras. O mesmo rapaz tem para aí três mulheres e os filhos nasceram com um mês de diferença, estás a ver. Isso para lá e normal. Existem muitas, muitas miúdas, muitas, mas muitas mães solteiras. Esse é um aspeto negativo que eu posso dizer que em Cabo Verde é mesmo gritante. A criminalidade lá, eu não posso dizer… é aquela coisa, toda a gente fala, mas criminalidade há em todo o lado, e em Portugal se calhar chega a ser pior. Mas isso é uma coisa que fez impressão, existem muitas mães solteira, muitas. Eu cruzei-me com muitas raparigas, poucas não são mães solteiras. Podes contar pelos dedos. Uma boa parte, lindas, lindas mesmo, algumas licenciadas e tudo. Mas… é pá, o caboverdiano faz isso tem várias mulheres. Eu pronto… eu cresci na europa, cresci com portugueses, não tenho muito essa cultura de ter várias mulheres. Só tive três namoradas. Namoradas a sério, curtes tive algumas. Não foram poucas, mas também não foram assim nada exorbitantes. Isso interessa para a entrevista?
Interessa.
A minha primeira namorada foi descendente, não nasceu cá é descendente de caboverdianos, foi a minha primeira namorada, eu era muito romântico, escrevia muitos poemas para ela, ouvia muita musica romântica, era muito meloso e ela traiu-me e foi uma desilusão amorosa, porque foi o meu primeiro amor. Para um romântico… a minha vida acabou. Então pronto. No entanto eu ultrapassei isso, hoje somos grandes amigos, estás a ver. Somos grandes amigos, grandes amigos mesmo. A minha segunda namorada é portuguesa. Eu era tao africano, tinha essa sena do africanismo que eu… namorar com tugas, não… namorar com tugas nem pensar. Curtir tá-se bem, um gajo curte, agora namorar. Mas eu acabei a relação com a descendente de caboverdianos. A portuguesa já estava atrás de mim quando eu namorava, mas eu não, portuguesa não. Ela insistiu, quando descobriu que eu… ela era novinha, novinha, quando descobriu… eu andava nos jovens mediadores, era uma academia onde formavam mediadores lideres sociais. Eu era um líder social, então tornei-me monitor e fiz férias com miúdas e ela era uma dessas miúdas que estava nas férias e ela cresceu. Ela apaixonou-se por mim na altura, mas eu era o monitor e também não queria saber de brancas. Antes de eu namorar com a caboverdiana, comecei a namorar com a caboverdiana que tínhamos a mesma idade, mas eu fui monitor dela, quando começamos a namorar. Acabei com a caboverdiana, a portuguesa interessou-se, começou a andar a perseguir-me e eu disse porque não, uma boa forma de curar a desilusão, é outra. Era isso que o pessoal dizia. Mas eu descobri, porque não deixei de gostar da outra, até hoje ainda amo a primeira. Todos os amores são diferentes. Eu antes como um bom romântico diz é que só existe um amor puro e platónico, mas eu descobri que existem vários, tu amas várias, podes amar várias vezes e não há limite para o teu amor. Porque isso é a energia que gera o universo. Então eu descobri que eu posso amar muito, eu descobri que para ultrapassar aquilo que eu estava a sofrer, o sofrimento que eu tive, que alterou, que aquilo alterou muito a minha vida. Foi das coisas mais importantes para mim, porque eu evoluí muito como homem, como romântico e se eu não tivesse passado por aquilo eu nunca ia conseguir casar tao cedo, eu casei com 24 anos, nunca ia conseguir ser um esposo. Aprendi muito com aquilo, aprendi muito com aquilo, como lidar com as mulheres. Fui estudar até… depois daquilo eu descobri… ela diz hoje que a falha não era minha, porque aquilo foi uma coisa… ela era jovem e aquilo foi uma parvoíce da juventude. Mas eu na altura levei aquilo muito a sério e eu não posso levar as coisas muito a sério. Levei aquilo muito a sério. Eu estudei a melhor forma de tratar uma mulher, a melhor forma… então aprendi que o homem não pode ser aquela coisa melosa, chata… então, continuei a ser romântico até hoje, mas um romântico moderado. A minha esposa que não é nada romântica nem tem paciência para isso, ela foi militar, portanto não tem paciência para essas coisa, mas não é bem verdade porque ela é muito romântica mas tens de saber tocar no ponto. Cada mulher é diferente. Essa rapariga quando decidiu acabar comigo… eu consegui depois ultrapassar as coisas, perdoando-a. Eu perdoei-a, ficamos amigos, ela depois quis que nós voltássemos, eu gostava dela… ainda hoje gosto dela mesmo. Quero o melhor possível para ela, mas para dizer agora que voltávamos a ter uma relação, nem pensar. Porque ela traiu-me, apesar de ela se justificar que era uma criança, não interessa. Vamos deixar assim como está, é bonito, eu guardei bonito, o bonito da relação eu guardei. A portuguesa, nós namoramos muito tempo, acabamos… a portuguesa, acabamos e passados dias a minha esposa veio para cá, para fazer o curso, passados três dias conhecemo-nos, conhecemo-nos na passagem de ano, conhecemo-nos e foi amor à primeira vista. Eu disse, tu vais ser a mulher da minha vida, tipo vais ser a mãe dos meus filhos. Ela na altura pensou que eu estava bêbado e eu estava bêbado naquele dia. Porquê? Porque como tinha acabado de sair da relação com a portuguesa, tinha falado com ela essa noite, bebi para esquecer, depois fui para a festa e pronto… disse bom ano, a minha esposa estava sentada, estava alegre… disse bom ano a ela. Ela gostou de mim, pediu para dançar… estou-te a contar a minha vida toda… eu não sabia dançar quizomba, eu disse, não sei dançar quizomba e ela ficou muito desapontada, mas ficou lá sentada e não saiu de lá. A bebida ajudou. Tocou uma lá, tocou duas ela lá, vieram buscar ela para dançar e ela não foi. Olha eu não sei dançar, mas vamos dançar. Dancei, tive sorte porque a seguir veio o funaná e… aí eu dominei. Depois dancei quizomba mal dançada, mas dancei. Ela pelos vistos gostou, beijamo-nos e foi assim, até hoje estamos juntos. A portuguesa acabou porque os pais, apesar das minhas tentativas os pais não queriam um preto, e era mesmo assim que eles faziam questão de frisar. Ela era nova também, ela não quis lutar por isso, estás a ver, queria lutar, mas também não queria. Ela tinha uma família muito boa, os pais eram muito carinhosos e muito bons para ela. Então eu seria o fator de desequilíbrio familiar, ia criar um confronto entre ela e os pais. Nem ela estava disposta, nem eu estava disposto que ela passasse por isso por causa de mim. Então, nós achamos melhor dar um tempo e o tempo foi mesmo terminar. Continuamos apaixonados até hoje também. Eu disse isto à minha esposa, ela não gosta nada, ela não acredita nada nestas coisas, mas eu acredito. Continuamos apaixonados. A Marta até hoje… ela namora, com… quer dizer o ex-namorado dela antes de mim, andava com esse rapaz, depois andou comigo e esse rapaz é português. Num espaço de um mês conseguiu ir para a casa dela, eu nunca, nunca, nunca fui à casa dela. Os pais dela conheceram-me mas faziam tudo para me mandar embora. Olha, eu saia com ela, se os pais descobrissem que… os pais não podiam descobrir que ela andava comigo. Quando descobriam faziam uma pressão que tu não tens noção. Era mesmo impossível estar com ela, estar com ela era impossível. Era um jogo, era mentiras, era mesmo complicado. Apesar de eles saberem que nós namorávamos, mas eles faziam questão… mas tens de ir para casa… o que acabou mesmo com a minha relação com essa portuguesa foi uma reportagem de um senhor chamado Rui Veloso, curiosamente da tua ilha, que tinha 24 filhos e não sei quantas mulheres. Isso deu na SIC, os pais dela viram, tiveram uma conversa seria com ela, viste a cultura dele, viste donde ele vem, viste o que ele te vai fazer… ela veio com essa questão para cima de mim e eu como estúpido caboverdiano com o orgulho no topo levei aquilo muito a mal. Depois… pronto… concluímos que se ficássemos juntos tínhamos muito confronto cultural, que eu acho uma parvoíce. Quer dizer o confronto cultural ia haver sempre, mas os pais conseguiram. Os pais conseguiram que nós… até hoje ela sabe disso, eu sei disso, nós falamos… já não falamos com tanta frequência porque o namorado não acha muita piada. O atual namorada não acha muita piada. Como ele era o ex conseguiu voltar e tem medo de eu… mas eu nunca vou voltar para as minhas ex namoradas. Passou, passou. Eu gosto muito dela, gosto muito dela mesmo, quando ela faz anos, ligo-lhe. Se eu por acaso notar no Facebook que aconteceu alguma coisa de especial com ela ligo-lhe a cumprimentar. Com a minha primeira namorada ainda ligo, olá está tudo bem, como estão as coisas. Ela foi mãe, como é que está o teu filho. Essas coisas do género. Já com a portuguesa não consigo… fazíamos isso, mas depois que ela começou a namorar foi impossível. Tinham discussões por causa disso então eu afastei-me. Mas ela dá-me os parabéns quando faço anos, liga-me no natal, aquelas coisas normais. Se ela… fui pai ela dá-me os parabéns. Esse tipo de coisa, mas já via Facebook, ela… já não é… e manda mensagens escondido do namorado. O namorado não pode saber que fala comigo. Não tem nada a haver, mas isso é aquela questão de evolução, de tu saberes controlar os teus próprios… eu não sou muito mulherengo. Eu não sou um caboverdiano muito mulherengo, isso não é um ponto negativo em mim, não sou. Eu não digo que eu não olho, olho, olho junto com a minha mulher, se eu vejo uma rapariga bonita, que eu acho interessante, eu olho. Não faz sentido eu olhar nas costas e depois olhar à frente. Olho à frente de minha mulher. Olha, comento com ela, aquela rapariga e ela diz vê lá, não, estou só a dizer que é bonita. A minha esposa era muito ciumenta, mas com isso ela deixou de ser. Compreendeu que não vale a pena ser ciumenta e eu… ela nunca levou uma tronada, depois de estar com ela não me envolvi com mais mulher nenhuma até hoje, então ela… ela bisbilhotava o meu telemóvel, fazia tudo e mais alguma coisa, mas hoje já não faz, ela sabe que não há necessidade. Sabe que o que vai encontrar não vai ser nada por aí além. Então… ela já não é muito ciumenta. Depois casou e os ciúmes diminuíram imenso, já prendi o gajo, e pronto. Acho que ninguém vai dizer que é mulherengo, mas eu não sou. O meu irmão por exemplo que nasceu aqui, cresceu aqui, espelha-se muito em mim, não foi para direito, mas foi para outra área que eu gosto, informática. E ele por exemplo, eu vi, ele começou a namorar agora há pouco tempo e tem muito essa coisa de ser fiel. Não sou perfeito, numa situação qualquer posso não me aguentar, mas… acontecem situações, mas o que eu faço é fugir. Fujo das situações, evito. Não vou me fechar dentro de um quarto com uma rapariga à espera que me controle, isso aí não me vou controlar de certeza. Então para evitar isso, dou espaço. Porque é normal um homem apaixonar-se rápido, agente apaixona-se muito rápido. Então uma colega de trabalho, ou uma colega da faculdade ou assim, tu sabes que estás a sentir aquilo, poes a barreira, porque tens alguém. Eu acho que isso é um bocado da minha veia romancista, um bocado do exemplo que eu vi do meu pai. O meu pai apesar de ter tido a primeira mulher, o meu pai era muito mulherengo em Cabo Verde, como o típico caboverdiano. Mas depois que casou com a minha mãe nós nunca tivemos esse tipo de exemplo, então eu… é isso que faço na minha vida. Nem quero… a minha filha nasceu… ela descobrir que o pai tem várias mulheres e tal. Eu acho que isso não é bom para a criança. Não sou muito mulherengo, não sou.
E como é que te descreves como pessoa? O que é que dirias mais sobre ti?
Sou humilde, sou sonhador… não sou ambicioso. Sou sonhador, mas não sou ambicioso. Vês a diferença? A ambição é alguém que não se contenta com pouco, eu contento-me com pouco mas quero mais. Ok, é uma forma diferente. Eu sonho. Eu sonho. Eu sei que sou capaz de atingir aquilo, estás a ver. Se calhar não sou, mas eu acredito que sou, estás a ver. Então eu sonho. Não é ambição é sonho. Sou muito sonhador. Alguém que vê muitos desenhos animados só pode ser muito sonhador, sou muito, muito sonhador. Sou muito desnorteado, tipo a minha mulher passa-se. Olha, com ela eu corrigi imenso, mas isto também a haver… eu descobri isso com uma novela, mas deixei de ver… via muita novela porquê? A minha mãe, a minha irmã… as minhas duas irmãs e a minha mãe, quer dizer elas mandavam no comando em casa, então eu era obrigado, então eu vi isso… eu uso lentes de contato, então eu uso óculos, mas na altura eu não sabia que tinha de usar óculos então… eu esbarro contra as coisas, partia muitas coisas em casa, então aquilo era normal. O meu pai é muito desastrado. Eu sou também como o meu pai e o meu irmão também é. Não somos capazes de acordar, pegar no açucareiro e meter para lá o leite para depois beber. Esse tipo de cenas, na lua, estás a ver, na lua com os pensamentos. Então sou desnorteado nesse ponto. Eu chego em casa… a minha esposa é muito militar, tam, tam, tam, gosta das coisas em feitas e tal, eu chego a casa tiro os sapatos e meto aqui, tiro as meias e meto ali. Não faço isso de propósito, eu acabo de comer, sento e esqueço que está ali um prato… mas eu não faço isso de propósito, não é que eu sou machista. A minha esposa é muito machista no estilo de ser de mulher, porque ela tipo veio de África e as mulheres de África são um ocado diferentes. Não são tão feministas, ou seja, cuidam muito do marido, cozinham para o marido, limpam para o marido, não é uma obrigação do marido essas coisas, está a ver. Elas fazem questão de fazer isso, então a minha esposa é um bocado assim, mas gosta das coisas delas arrumadas. Eu ensinei a moda europeia, eu ajudo. Tento ajudar o máximo que eu posso, mas eu sou distraído. Deixo a roupa para ali, deixo a toalha, sou distraído. Sou distraído com as coisas, estás a ver. Estou na lua, nesse aspeto sou. Sou distraído com a vida às vezes, está a ver. Com os amigos por exemplo, os meus amigos reclamam, que eu não ligo para dizer olá. Mas eu penso neles, tenho saudades deles. Mas o que acontece é que há muita coisa para fazer e deixo… olha, foi o que aconteceu contigo… não é que eu não pensei em ti, mas eu relego, faço depois. Faço depois, faço depois, o depois chega, mas embora. Eu sou um bocado assim, não gosto de esperar, mas… em Inglaterra para mim era mais pontual, mas isso é uma das coisas que estou a trabalhar da minha faceta, é difícil. O português é pontual. O africano não é pontual, o africano PALOP, não é pontual. Isso é uma coisa se calhar cultural que tipo eu tento combater na minha própria cabeça. O meu pai não é pontual então tu espelhaste pelas pessoas. Então, tipo não sou pontual, não sou, não sou. Quero ser, tento ser, tento ser muito pontual, mas não sou. No trabalho por exemplo atualmente sou pontual, tenho responsabilidades, tento ser responsável, tento ser muito responsável. Mas como não sou… não levo as coisas muito a sério… a nível profissional levo as coisas a sério e quando tenho de resolver um problema resolvo. Mas relaxo um bocado, sou um bocadinho relaxado com as coisas.
Agora queria que me falasses um bocadinho do teu trabalho?
O meu trabalho… trabalho numa igreja, a igreja tem um cartório, e eu estou a fazer um estágio, um estágio profissional, na igreja do cartório. No entanto, faço muitas outras coisas, muitos outros trabalhos, que vão para alem do trabalho do cartório. O trabalho do cartório é fazer registos de casamentos, batizados, crismas, mas eu faço muito para alem disso, cuido dos contratos da igreja, da relação externa com quem a igreja contrata, com as empresas externas, da relação externa com a paróquia. Não é só uma paróquia são várias igrejas aqui em São Nicolau. Admiro muito o prior da paróquia que é o padre Mário, que é como se fosse um pai para mim, primeiro porque me ajuda muito a crescer como homem, como cristão… Isso é uma coisa… a minha mãe é muito católica, mas não é aquela verdadeira católica caboverdiana, ela perdeu-se aqui na europa no catolicismo. Ia à missa e tudo mais, mas chateou-se com o padre, deixou de ir à missa. As minhas irmãs e o meu irmão já perderam essa coisa. Eu ganhei um pouco mais porque eu fui à missa muito mais que a minha mãe então permaneci na coisa católica, mas tornei-me não praticante. Depois com os estudos comecei a ler muita coisa, gostas de saber de muitas religiões, estudei muitas religiões, gosto de estudar as religiões todas, mas sou católico, sou… e o padre Mário, é assim que se chama, ajudou-me muito, ajudou-me muito a crescer e ajuda-me todos os dias a crescer, como líder, como tudo… é um exemplo. Ali eu não estou a trabalhar na minha área. Muitos colegas meus estão presos, eu ajudo, como ainda não tenho a minha carteira de advogado, ou seja, não fiz a ordem desenvolvo o projeto e quando se tem que ir a tribunal passo a um colega que é advogado é o que eu faço. No meu trabalho é isso que eu falo, trabalho de cartório, trabalho administrativo, posso dizer. Por exemplo, agora andaram a distribuir cartazes da páscoa, eu é que organizei isso, eu é que fiz a distribuição. A nível profissional é isso, não sei se posso acrescentar mais alguma coisa.
Com que idade começaste a trabalhar?
Eu tenho que pensar porque eu comecei… em Cabo Verde quando a minha mãe veio para Portugal eu tive de trabalhar. Eu ia apanhar agua, eu tirava palha para os animais, portanto trabalho. Era uma coisa forçada que tinha mesmo de fazer. Vim para Portugal, isso já não é trabalho, as lides de casa fiz tudo, fiz tudo. Tanto que hoje eu odeio lavar loiça, lá em casa se há tipo coisa que a minha esposa sabe que eu não vou fazer… eu faço, quando vejo que ela está aflita, nos últimos tempos que ela teve o bebé eu faço, mas eu odeio fazer, porque era forçado a… forçado a, é uma coisa que me chateia imenso. Eu sei cozinhar, há quem diga que eu cozinho muito bem, mas os meus pais quando eu estava em casa pensava que eu não sabia cozinhar. Eu fazia de propósito porque se eles soubessem que eu sabia cozinhar iam obrigar-se a cozinhar. Queriam obrigar-me e eu recusei, cozinhar não. Podes bater-me, podes-me expulsar de casa, mas cozinhar não. Aí bati o pé, foi das poucas coisas que eu bati o pé com o meu pai e com a minha mãe. Portanto… a pergunta foi?
Com que idade começaste a trabalhar?
Com idade comecei a trabalhar, então… isso não é trabalho, trabalho a sério foi basicamente quando eu cheguei, passado um ano ou dois, comecei a trabalhar. Porquê? Porque o meu pai era ferro velho, tinha um ferro velho, ainda faz compra e venda de sucatas, mas aquilo na altura era mesmo um ferro velho. Era de um espaço para aí do tamanho… maior que isto… com sucata, muita sucata, os clientes vinham eu pesava, pagava aos clientes, isso já é um trabalho. Os meus pais não me pagavam por isso, mas eu lidava com dinheiro e lidava com os clientes e isso já é um trabalho. Sempre trabalhei com o meu pai como patrono. A partir daí, a partir dos 8 anos sempre fiz esse trabalho. O trabalho que eu fiz em que o mau pai não foi o meu patrono foi a partir do 11.º ano, no verão do 11.º ano, em que eu fui trabalhar para uma fábrica, fui trabalhar para uma fábrica de fibra de vidro, de fibra de vidro, foi a coisa que mais me fez mal à saúde foi aquela fábrica. Fez-me muito mal, muito mal, muito mal mesmo. Aquela fábrica aquilo é fibra de vidro, tu respiras e aquilo é de vidro e o vidro entra lá para dentro, criou muitos problemas… hoje não… por exemplo começou-me a desenvolver uma ulcera, de principio não se desenvolveu nunca, mas de principio. Por exemplo, eu nunca vomitava e hoje em dia vomito. Quer dizer tenho o estomago fraco ao nível do vomito. Essa fábrica…depois desta fábrica arranjei trabalho no continente… no Pingo Doce de Vila Franca de Xira. Do pingo doce fui para o continente. Do continente fui para a obra. Do continente para obra já era faculdade. Depois pronto parei de trabalhar. Comecei a trabalhar com patrono que não foi o meu pai, que ele não queria nada que eu fosse. Porquê? Porque eu acho que ele não me pagava o suficiente. Descobri que ele pagava-se mais que os outros. Mas é aquela coisa, temos de experimentar para crer. A primeira vez mesmo que trabalhei sem ser patrono foi no 11.º ano. Foi no 11.ºano que fui para a fábrica. Entre o 10.º e o 11.º, no verão fui para a fábrica. Depois da fábrica arranjei trabalho no pingo doce e foi assim.
E porque é que foste trabalhar? Era porque de alguma forma já querias ter o teu próprio dinheiro?
É, é, é. Por teimosia queria ajudar o meu pai. Nós não precisávamos, nós não precisávamos. É aquela coisa tipo sei lá, querias ter o teu dinheiro, mas no fundo acabavas por não ter. Tu, uma coisa má dás amizade ao filho, que é uma coisa que acho que falta muito na nossa cultura, não estou a falar da cultura caboverdiana, mas na cultura mundial, é o ensinar… isso tem uma expressão, é o ensinar a mexer com o dinheiro. A formação financeira, nós precisamos ter uma formação financeira. As crianças precisam de ter. parecendo que não, quando tu dás uma mesada ao filho, ele aprende a gerir o dinheiro. Então eu quando começo a ganhar aquela quantidade de dinheiro que nunca tive nas minhas mãos… no inicio não esbanjei… eu realmente nunca esbanjei, nunca esbanjei… eu gastava em livros, jornais, comprava todos os dias o jornal a bola e o público… eu só comprava a bola, comprava era revistas, revistas de carros de tuning e a visão. Comprava a visão, comprava sempre a visão. Então o meu dinheiro era todo isso. Nem roupa… até hoje quem compra as minhas roupas é a minha mulher. Nem roupa, nem telemóveis, nem saídas. Nunca fui de beber, nem droga, já provei, já experimentei canábis, erva, já experimentei isso… já experimentei, mas nem foi ai. Foi uma experiência. Não sei o que é que eu te diga mais.
Em termos de estudo/emprego quais são as tuas expetativas para o futuro?
Para o futuro… vou acabar o mestrado. Acabar o mestrado… no próximo mês vou começar um curso intensivo sobre proteção da base de dados na internet. Vai abrir… tenho essa expetativa, que abre as portas para um tipo de emprego, alguém que perceba a nível legal da proteção da privacidade empresarial e pessoal, individual. Então o meu mestrado tem a ver com isso. Quero fazer o mestrado, quando fazer o mestrado eu posso ficar ali na igreja, mas quero arramar um escritório mesmo a sério. Fazer o estágio que deve demorar para aí uns três anos. O meu plano é que seja em dois anos ir trabalhar para um escritório de advogados a sério. O meu plano durante a licenciatura e ainda durante o mestrado era ir para angola. Tinha um projeto montado para montar uma empresa de advogados, uma sociedade, o meu amigo ainda quer muito isso, mas o problema é que o advogado em angola sendo estrangeiro não pode exercer a advocacia. Aliás pode exercer consultadoria, mas não pode ir a tribunal. O socio angolano tem de ser maioritário. O que é que acontecia? O meu amigo era sócio maioritário e eu não podia ir a tribunal. Como sócio ficava muito fragilizado, apesar de ele ser meu amigo, negócios à parte. É meu irmão, mas temos de separar as coisas, porque as coisas quando chegam a um nível têm mesmo de ser separadas, porque se não, não dá. Então, pronto… tive que reformular os meus projetos. Atualmente o meu plano é acabar o mestrado e ir trabalhar para uma sociedade. Se não for trabalhar para uma sociedade, montar eu a minha sociedade, tenho autonomia para isso. Mas eu sou um bocado… tenho muitos projetos em mente, muitas coisas que meto no papel e que acredito muito prepotentemente que consigo implementar esses projetos. Assim o curto prazo que posso revelar é isso. Acabar o mestrado… há ainda em cima da mesa a ideia de irmos para Inglaterra, mas Inglaterra tem a questão que ser advogado tinha de estudar mais tempo, era mais chatices. Não sei se estou disposto a. Acho que consigo ganhar o suficiente para fazer a minha vida, desenvolver os meus projetos de vida. Advocacia é um projeto de vida que está quase na conclusão, mas tenho outros projetos ainda maiores que esses, para a cabeça não ficar parada, que eu quero implementar e que quero juntar dinheiro para implementar e advocacia é uma boa coisa. São assim os projetos a curto prazo.
Tu és uma pessoa que faz planos, certo?
Muitos planos, tenho muitos planos. Ainda hoje escrevi uma coisa que acordei e que pode resultar e escrevi.
Consideras que o teu curso fez parte do teu plano?
Ya. Acho que tudo o que eu planei até agora aconteceu. Sabes como é que eu sei isso, porque há dias fiz essa reflexão. Há um mês para aí fiz essa reflexão por causa da academia nós tivemos de fazer essa reflexão por causa de um programa que nós estamos a ter de formação pessoal. De formação pessoal, intelectual, então fiz essa análise. Eu consegui alcançar todos os meus objetivos, sou sortudo nesse aspeto. O único objetivo que me falta alcançar é ser milionário, ya. Milionário, ya. É o único que falta, porque de resto acho que tenho. Tenho família, sou feliz, tenho altos e baixos, todo o casamento é assim. Estou casado há pouco tempo, tu és casada?
Não.
Estou casado há pouco tempo, mas sou feliz, sou muito feliz, muito feliz com a minha esposa, não troco ela por nada. Sou mesmo muito feliz. A minha filha veio abrilhantar ainda mais a coisa. Quer dizer, tenho uma família, sou feliz com a minha família. Sou feliz com o meu rumo profissional. sou feliz com as coisas que estou a alcançar. Há dias que eu fico frustrado… uma das grandes frustrações da minha vida, foi não ter entrado para a faculdade de direito. Estive um ano em história e depois estive em direito. O curso está em stand bye até hoje, mas fiz um ano. Uma das minhas grandes frustrações foi não ter entrado para a faculdade de direito, mas acabei por entrar. Eu já resolvi essa frustração na minha vida. Acabei por voltar lá e fiz o mestrado e agora vou fazer uma pós-graduação… um curso, não é bem uma pós-graduação é um curso. Já ultrapassei essa frustração. Há, uma das grandes frustrações que tive foi ser jogador de futebol, eu tentei, não consegui. Não tentei, mas não consegui. Se calhar os meus pais não eram muito virados para o desporto. O meu pai é mais virado para o trabalho, trabalho, trabalho. Hoje em dia já não, ele reconhece isso. O meu pai até foi pugilista. Então eu tenho muito mais jeito para artes marciais do que para futebol. Descobri isso depois. Eu comecei a fazer artes marciais já em adulto. A partir dos 20 anos para aí. O meu irmão já… os meus pais meteram-no em artes marciais, no futebol, perceberam que isso é importante. Eu não consegui ser jogador de futebol, uma coisa que eu penso, fogo, era tao feliz. Mas os meus objetivos estão a ser alcançados, acho que sim.
Amigos, como descreves o teu grupo de amigos? Nacionalidade?
Portugueses de Vila Franca de Xira. O meu melhor amigo atualmente é um angolano, que é o padrinho do meu casamento, mas que eu conheci na faculdade. Os meus amigos do coração, que crescemos juntos, a maior parte são portugueses. Tenho muitos amigos, muitos, muitos, na Quinta do Mocho. Mas como eu saí de lá no 5.º ano, a amizade não é aquela coisa, estás a ver. É amizade, mas não é aquela coisa. Eu tento ligar, mas… eu tenho uma nota no meu telemóvel que faz com que todos os meses ele me lembre… ele não me deixa de chatear enquanto eu não ligar. Então força-me a ligar. É o que eu digo, não é que eu não pense neles, eu penso neles e deixo para depois, o programa obriga-me a não deixar para mais depois, tenho de ligar hoje. Então eu faço isso, ligo. A maior parte dos meus amigos são portugueses, comecei a ter muitos amigos caboverdianos quando entrei para as lides politicas partidárias, faço parte da JPAI. Fui mandatário de Cabo Verde como representante jovem. Fui mandatário de uma candidatura na J aqui em Portugal há pouco tempo, mas as eleições não aconteceram, mas é outra história também comprida. Aí é que comecei a conhecer muito mais caboverdianos, aí é que comecei a relacionar-me com caboverdianos mesmo a sério, porque lá em Vila Franca nem tanto. Aqui a maior parte dos amigos é português.
Algum deles te influenciou no teu percurso de vida ou não?
Há, há sim. Muito… Os meus amigos, a maior parte é licenciado. Na minha turma havia três superdotados, dez alunos excecionais e uns quantos normais, depois tinha os fracos que não eram muitos. Isso faz com que as pessoas que se tornaram meus amigos até hoje, isso faz com que principalmente os superdotados…
Isso era turma de universidade, secundário…
6.º ano até ao 9.º ano. Do 6.º ano até ao 9.º e depois separamo-nos a partir daí. Isto fez com que o nível de competição era grande. Tu para chegares ali… eles eram superdotados mesmo. Mesmo que eu quisesse não conseguia chegar ao nível deles. Primeiro eles andavam em melhores escolas… melhor saiam da escola iam para um colégio onde eram obrigados a coiso… tinham melhores condições, quer dizer é diferente. Depois quer dizer eram superdotados, tinham essa aptidão mental, estás a ver. Se calhar o vicio de estudar apanhei deles, eles não estudam ponto, não estudam ponto. São superdotados. Ouvem aquilo na aula, têm as melhores notas e não precisam de estudar. Eu descobri que eu preciso de estudar, mas… é o puxa, puxa. Eles fazem e eu também tento fazer. Mas também tento ser melhor que eles. Então isso influenciou-me muito, por exemplo, quando eu saí de Vila Franca, comecei a andar… eu falava rápido… eu tenho um amigo meu que era o mais inteligente de todos, agora está a acabar medicina, ele fala mega, mega rápido, não consegues perceber o que ele diz porque ele fala muito rápido. E eu depois comecei a falar como ele. Era engraçado. Então sei lá… os meus amigos influenciavam-me muito. Eu tentava ser mais do que eles, consegui ser melhor pessoa. Chegar a um ponto que eles são superdotados, mas sei também que eles não são mais inteligentes que eu. Eu consigo, eu consigo… aliás a minha capacidade argumentativa é maior, isso é a minha profissão. Mas assim a nível de intelectualidade ei consigo falar com eles. Eu não sinto discrepância. Eu não digo, tu és superdotado. Até porque esse que é mais inteligente, ele é um grande maluco mesmo. Quando ele for médico eu nunca vou a ele. É mesmo, mesmo maluco. É muito inteligente, muito inteligente, mas quer dizer, eu acho que os inteligentes às vezes são muito excêntricos e ele é muito excêntrico. Então pronto… o meu grupo de amigos ajudou-me muito por isso é fundamental. Eu acho que o grupo de amigos influencia o futuro de toda a gente. Nos bairros então isso é fundamental. Eu… eu… o meu pai meteu-me a trabalhar a sério, porque eu acordava… tinha um horário de trabalho, eu acordava cedo, ia numa carrinha recolher sucatas e fazer outros trabalhos com o meu tio e mais um empregado… porque eu comecei a envolver-me com um grupo que fazíamos coisas… eu na aula era mesmo um aluno exemplar, mas na rua já não. Não roçava a delinquência, não fazia delinquência, mas houve uma altura em que comecei a tentar lá chegar. Então o meu pai quando notou isso meteu-me no trabalho. Então pronto, para tu perceberes, o bairro influencia muito, a amizade. A melhor coisa que nos aconteceu a mim e aos meus irmãos foi ir para Vila Franca de Xira, onde encontramos aquele grupo de jovens que queriam entrar para a faculdade já desde pequeninos, aquilo acaba por entra em ti. Tu também queres entrar para a faculdade, estás a ver. Mais que os meus próprios pais, mais que os meus próprios pais, tu queres… que os teus amigos te deem valor, então tu queres ser como eles. Então estás a ver. Os pais deles acabam por influenciar também a ti, influenciam a eles e influenciam a ti. Tu quando vais a casa deles, os pais deles acabam por influenciar, dão opinião sobre a tua vida. Ya, os meus amigos foram muito importantes para o meu crescimento, em todos os aspetos. Olha, emocional, social e de escola. Foram muito importantes mesmo.
O que é que achas que os teus pais te passaram que gostarias de passar à tua filha?
Educação, a educação. Eu digo muitas vezes desculpa, digo muitas obrigado, digo muitas vezes com licença, respeito muito os mais velhos. Todos os meus irmãos são assim. Mesmo o Yuri que cresceu aqui não ao nível tao como nós, mas mesmo o Yuri, é muito, muito educado. Isso é a caraterística, é uma caraterística de qualquer pessoa que nos conhece que diz que somos. Isso não é tipo ma conclusão minha é uma conclusão do que as pessoas dizem. A educação…a educação. Pedimos desculpa, quando temos de pedir desculpa, somos orgulhos, mas quando é para pedir desculpa pedimos desculpa. Dizemos obrigado muitas vezes. Eu digo obrigado tantas vezes, obrigado, obrigado. Obrigado é muito importante e digo desculpa muitas vezes. Eu se vou pela rua e alguém tem de mudar de passeio eu peço desculpa. Mas isso sai inconscientemente… sei lá, se vou contra alguém peço mil desculpas, mas a pessoa é que tem o pé à frente, mas quer dizer eu não penso nisso, não penso que a pessoa… a pessoa é que meteu lá o pé. A pessoa vem contra mim, nem sou eu, a pessoa é que vem contra mim e eu é que peço desculpa, já sai naturalmente. Os meus pais insinaram-me muito isso, ensinaram-me a respeitar tudo e todos. A respeitar a opinião dos outros. O meu pai quando nós discutíamos, ok, então fala um de cada vez. Que é próprio da criança quer dizer, quer dizer, quer dizer, mas fala um de cada vez. Isso é uma coisa que me ajudou muito na relação com as pessoas, na relação com o emprego, está a ver. Por exemplo quando fui trabalhar no Pingo Doce, eu sou distraído, era um bom funcionário, as minhas chefes gostavam de mim, mas o que realmente elas gostavam, era a minha educação, era a minha simpatia. Isso fazia com que, eu podia me atrasar para o trabalho, adormecer, tipo tinha que entrar de manha e elas ligarem-me para ir trabalhar, elas fazerem-me favores. Eu ia para a faculdade, ia da faculdade, ela sabia que eu ia com fome, a chefe de loja, ela fazia, preparava o comer para mim, era uma inveja lá na loja. Em Inglaterra a mesma coisa, elas sabiam da vida que eu estava a levar, se eu adormecesse elas ligavam-me para eu ir trabalhar, não me descontavam no dia, estás a ver. Apertavam comigo, tens de chegar a horas, não eram ligeiras. Não deixavam de me dar na cabeça, estás a ver. Eu acho que isso só era possível porque eu era… eu só muito humilde com as pessoas, tenho vontade de aprender e sou muito educado, sou muito, muito educado. Os ingleses apreciam muito a educação. Os ingleses são muito politicamente corretos, e tipo… eu tento ser muito politicamente correto. A educação… acho que a melhor herança que os nossos pais nos passaram é a educação, ser educado.
Se pudesses mudar alguma coisa no teu percurso o que é que mudavas?
Mudava, mudava muita coisa. Mudava muita coisa. Olha… seria mais pontual, eu gostava mesmo de mudar isso, gostava mesmo, mesmo de mudar isso. Não é uma psicose, não é uma coisa que me cause muita… gostava de não usar óculos, porque os óculos, há cientistas que dizem isso, não sei se acredito ou não, a saúde ocular interfere na tua capacidade de memoria, então eu gostava de ter mais memoria de curto prazo. De longo prazo não é mau, é bom, mas o curto prazo é, portanto tu fizeste uma questão, eu esqueci-me milhões de vezes da questão. Eu…pronto, o teu nome eu sei, mas dificilmente eu encontro uma pessoa e diz-me o nome dela para eu me lembrar. Uso técnicas de memorização, mas mesmo assim as técnicas não coiso… eu acho que isso tem a ver com a minha situação ocular. Isso é uma coisa que eu se fosse a mudar, eu mudava. Acho que se tivesse mais memória eu podia ser genial. Mas não sou genial, mas não estou muito longe disso. Naquilo que faço… eu não sou muito bom naquilo que faço nem nada…não sou muito bom em nada, mas sou bom em quase tudo, porque consigo fazer quase tudo, estás a ver. Se calhar se mudasse alguma coisa, se calhar seira alguém mais estreito… isso faz com que tu faças tanta coisa na vida e às vezes não te apaixones. Eu gosto de me apaixonar pelas coisas, mas para dizer que eu tenho uma paixão mesmo, dizer que eu tenho uma banda que é a minha banda favorita em que compro todos os CDs, não tenho nada disso. Sou apaixonado pelas minhas mulheres, as minhas mulheres todas que eu tive, a minha mãe, a minha esposa, as minhas irmãs e a minha filha. Sou apaixonado pelas minhas mulheres, sou apaixonado, pelo meu pai, pelo meu irmão, pelos meus amigos e as pessoas à minha volta. Mas para dizer que eu amo um artista, não. Sou do futebol clube do porto, amo o futebol clube do porto. Mas para dizer que é aquela cena mesmo… não, sou de paixões… é isso, como eu faço tantas coisas não consigo me apaixonar assim de corpo e alma por nada assim de fazer… eu gosto muito de direito quando faço… olha quando estou a fazer um trabalho de direito de madrugada sem ninguém a me chatear em que eu estou a perceber o espirito de direito, quando percebes o espirito tu consegues perecer tudo à tua volta, não precisas de conhecer os códigos, não precisas… é muito relaxante, eu amo esse momento, estás a ver. Agora eu dizer que sou louco por direito, eu não sou. Sou apaixonado…quer dizer amo…adoro, aliás adoro, mas não amo, estás a ver. Eu amo as pessoas, mas as coisas da vida não sou uma pessoa muito apaixonada pelas coisas da vida. Devia de ser… gostava de ser mais apaixonado pelas coisas da vida. Isso tem a ver com o fato de eu penso e faço muita coisa e o meu pai é um bocado assim, o meu pai faz muita coisa, muita coisa mesmo. Faz tudo e mais alguma coisa. O meu pai, não há nada que ele não saiba e não faça. Eu tenho esse dom, consigo fazer muita coisa, mas no entanto, não sou muito bom em nada. Não sei… eu ultimamente descobri que sou bom a escrever, as pessoas gostam. Escrevo algumas coisitas, poemas… fiquei traumatizado depois da desilusão amorosa… eu escrevia muito poemas quando… no meu primeiro relacionamento, ya… quando ela acabou comigo achei que era dos poemas, destas lamechices, e não sei quê. Mas agora escrevo, já estou apaixonado pela minha filha, escrevo poemas… quando estou apaixonado escrevo, ya. Escrevo poemas, escrevo romances. Acho que sou bom a fazer isso.
Para acabar, para além de seres milionário, qual é o teu grande sonho?
O meu grande sonho além de ser milionário é desenvolver um projeto de carater educacional, que mudasse a mentalidade dos africanos. Apesar da minha opinião ter alterado um bocado, eu acho que os culpados, os grandes culpados não todos, não de todo os culpados, mas os grandes culpados da situação de África atualmente somos nós próprios e a nossa mentalidade e a nossa forma de ver as coisas. A única forma de alterar isso, não é ser politico e ir para o parlamento falar não sei quê e implementar e fazer leis para ficar no código civil, isso não muda a sociedade. Ajuda, está bem. Muda algumas coisas, mas não muda a cabeça dos que já cresceram isso vai mudar as coisas dos que já vieram. Então porquê? Isso é uma educação, então a educação é que muda as pessoas. A educação teve um papel muito importante na minha vida, e tem… educação… educação espiritual, não estou a falar só em educação académica, educação espiritual e social é muito importante, financeira, esse tipo de coisas, estás a ver. Eu gostava de desenvolver uma escola, uma mega escola, gostava de desenvolver uma mega escola. Isso é um sonho… se eu conseguisse desenvolver isso, tipo é uma coisa tao grande que eu quero fazer, é um projeto tao grande, que se espalhe por África toda, que sejam ensinamentos mesmo profundos. Que ensinem coisas que não se ensinam nas escolas, que vai ser uma escola, mas uma escola completamente diferente… eu já montei o sistema todo, já remontei e montei outra vez, estou sempre a montar o sistema. Eu não tenho nenhum curso de pedagogia, dizer que sou um pedagogo e que estou a fazer aquilo de acordo com a minha pedagogia, estou a fazer aquilo de acordo com a minha experiencia, daquilo que eu sei. Gostava de desenvolver um projeto desses, mas para desenvolver um projeto desses precisas muito dinheiro e muito dinheiro só um milionário é que tem. Por isso eu tenho de ser um milionário para atingir. Esse é o grande fim. O grande fim mesmo não é ser milionário, milionário é o meio para atingir o fim. O fim é desenvolver um projeto de carater social, educacional que mude mentalidades, a mentalidade Africana, a nossa mentalidade precisa de mudar muito, muito, muito. A não aceitarmos o que os europeus fazem connosco, que não é culpa deles, é culpa nossa, porque nós aceitamos, nós permitimos. Para não invejarmos os outros, que é uma coisa que nós temos muito. Para não reagir agressivamente e esfaquear alguém, estás a ver, que é uma coisa que nós temos. Para não entrarmos em guerra civil quando perdemos uma eleição, estas a ver. Que se faça tudo por educação, educação dos mais novos. Para sermos mais fechados à corrupção, a corrupção passa sempre entre gretas, não é, muito difícil não ser corrompido, sejas quem tu sejas. Mas para fecharmos mais a fileira a essa coisa, ya eu gostava de desenvolver um projeto nesse amito. Tipo um sistema de ensino em que os pais… o mesmo professor que dá aulas… do 1.º ano vai dar aulas até ao 12.º ano, ao mesmo grupo de alunos, pelo menos o mesmo diretor de turma, percebes. Pronto, é assim o meu grande, grande sonho, que não partilhei com muita gente.
Em termos de identidade como é que te defines?
Sou um pouco disto e um pouco de tudo. Sou português, sou caboverdiano, sinto-me angolano, sinto-me são-tomense.
Cidadão do mundo?
Ya, acho que sim. Sócrates é que disse isso, não sou tiniense mas sou cidadão do mundo. Então acho que sou cidadão do mundo. Sem querer chegar ao pé do Sócrates… isso não é um discurso feito, não estou a dizer isso para ficar bonito. Gosto muito de Angola, gosto muito da cultura angolana, estás a ver. Gosto muito de falar com o calão angolano, de gozar com os meus amigos. Gosto muito de kuduro, tento dar uns toques, mas kuduro é mesmo para angolano, estás a ver. São-Tomé também já falo com sotaque são-tomense, já sei, já tento ler, estás a ver, gosto, gosto. Tenho um bocado de tudo. Podíamos fazer percentagens e há culturas que têm doses maiores que as outras. Como é obvio o português e o caboverdiano são os que têm as mesmas doses, aquela dose mesmo forte. Agora qual é a dose maior não sei, não sei. Se calhar Cabo Verde tem, porque eu sou muito africano, quero muito ver África lá em cima, estás a ver. Porque eu sou muito africano, não sou muito europeu, mas sou muito português. Eu quero ver Portugal lá em cima, mas a europa tanto se me dá. É bom que a europa esteja lá em cima porque faz parte do mundo, estás a ver, faz parte do mundo. Quero que a europa esteja lá em cima, não quero que eles estejam… eu gostava de ver África lá em cima e Portugal…. Se eu poder… eu tenho ambições politicas lá em Cabo Verde, imaginando que eu torno-me numa figura em África, um sonho que eu sou muito sonhador, sou uma figura em África, consigo influenciar ao nível económico e social África e se eu poder trazer Portugal comigo, isso sem duvida. Porque Portugal tipo… Portugal deu-me educação, deu-me escola e eu não posso esquecer isso, não posso esquecer… Portugal fez isso. Cabo Verde fez a minha casca, tás a ver e Portugal tirou a estátua de cima, estás a ver. Portugal é tipo o escultor que esculpido o Péricles. É assim, a casca é da terra de Cabo Verde e o moleiro português fez ali o Péricles, desenhou o Péricles, quem o desenhou foi Portugal. Então eu continuo a ter a terra de Cabo Verde, continuo a ter o corpo de Cabo Verde, sou isso Cabo Verde em bruto, mas o trabalho, a mão de obra… a matéria prima é de Cabo Verde, mas a mão de obra Péricles é Portugal, é por isso que não me posso esquecer isso. Isso é um bocado tudo o que eu tenho, porque eu apaixono-me pelas pessoas e quando me apaixono pelas pessoas, apaixono-me pelas coisas que elas gostam, apaixono-me pelas coisas que as caracterizam. Então acabo por me apaixonar sem dar por mim, se eu tiver num grupo de angolanos já estou a tentar falar como eles, é uma coisa que me sai naturalmente, que não faço esforço nenhum. Para as pessoas se calhar angolanas, se calhar pode parecer muito esforçado porque não consigo falar genuinamente o sotaque, mas para mim sai-me natural e a minha esposa também e tento inconscientemente. Então ya, acho que sou um cidadão do mundo, eu quero ver o mundo fixe, quero ver o mundo em, quero ver o mundo em, por isso acho que sou um cidadão do mundo.