Vou te pedir que te apresentes, ou seja, não precisas de me dizer o nome. Diz-me só a tua idade, ano de nascimento, o que é que fazes agora, escolaridade e depois dos teus pais a mesma coisa.
Ok, então… tenho 34 anos, nasci em 23 de Fevereiro de 79, sou enfermeira, tirei a minha licenciatura em enfermagem, tenho um mestrado em saúde pública e um mestrado em infecção e VIH Sida, sou natural de Portugal, sou portuguesa, nasci em Vila Franca de Xira no Ribatejo e os meus pais são ambos de Cabo Verde. A minha mãe já é viúva e… tenho que dizer a escolaridade da minha mãe?
Huumhumm.
A minha mãe frequentou… em Portugal até ao 12º ano e o meu pai, já faleceu há… há mais de 30 anos, mas também tinha estudos avançados para a altura porque ele antes de se casar estudou no seminário e na altura, nós sabemos que quem estudava no seminário tinha alguma literacia.
Huumhumm. E profissão?
A minha mãe é terceira oficial administrativa. É administrativa numa… actualmente, no Hospital de Vila Franca de Xira e o meu pai na altura também já pertencia aos quadros administrativos do IFP.
Huumhumm. E irmãos?
Tenho… Portanto, eramos 6 irmãos. 5 rapazes e eu a única rapariga e faleceu um irmão há 15 anos.
Huumhumm. Idades?
Portanto, o meu irmão mais velho tem 43, o que faleceu teria 41 se estivesse vivo, a seguir o outro vai fazer 39 este ano, eu tenho 35 e os dois mais velhos que são gémeos têm 32, vão fazer 33 este ano de 2014.
Profissões?
O meu irmão mais velho é… trabalha nas produções de audiovisuais, também esteve na faculdade mas depois não quis concluir o curso; (também tenho que dizer do que faleceu?), o que faleceu era militar na tropa, na marinha, não, no exército; o A que é o que vai fazer 39 andou também na faculdade a tirar animação sócio-cultural mas também não terminou, trabalha actualmente no SEF e é… faz animações cócio-culturais no fim-de-semana como freelancer para entreter as crianças e ainda dá aulas de uma luta tailandesa que é muaitai. Dos gémeos, um dos gémeos está actualmente a concluir o curso de contabilidade no ISCAL e também trabalha no SEF, no SEF durante o dia e também dá aulas de muaitai; e o outro gémeo dele tirou o curso de professor do ensino básico, mas nunca leccionou por opção, entretanto estava no mestrado (interrompeu temporariamente porque já tem filhos) de gestão escolar e actualmente trabalha na loja do Nuno Gama.
E os teus pais vieram para Portugal com que idade e porquê?
Então, o meu pai… portanto, veio primeiro o me pai, já há mais de… já há 40 anos, possivelmente à procura de condições melhores do que o que havia em Cabo Verde e posteriormente veio a minha mãe porque na altura a mulher acompanhava o marido. A minha mãe veio sem escolaridade, nem tinha a 4ª classe e veio para acompanhar o marido.
Huumhumm. Agora vamos falar um bocadinho do teu percurso escolar e queria que me começasses por dizer, ahh, se tiveste alguma reprovação, como é que foi…
O meu percurso escolar?! Sempre fui uma aluna posso considerar acima da média, nunca tive, podemos dizer, interrupções, fiz sempre… o secundário fiz sempre bem. Média de 12º acabei com 15, 16. Se calhar a média geral de 10º, 11º, 12º deve ter sido uns 16, possivelmente. Sei que no 11º tive aí 17 ou 18 de média, mas 16 no total escolar. Entrei para a faculdade no curso que queria, na opção que queria, na escola onde queria. Aí não reprovei. Fiquei retida meio semestre por opção, porque aquela idade dos 18 anos também faltava muito às aulas. Ahhh, mas depois eu própria (havia a possibilidade de continuar), mas eu achei por bem só ficar um semestre a fazer uma melhoria de cadeiras que foi bom, depois tirei 17, 18. Portanto, nunca reprovei a minha licen… o bacharelato na altura para enfermagem ainda era bacharelato, com 21 anos. Comecei logo a trabalhar, simultaneamente…
Em quê?
Em enfermagem, como disse. Simultaneamente no primeiro ano em que trabalhei fui logo tirar um ano de complemento que foi na altura em que a enfermagem também passou para licenciatura de 4 anos e fiz também a licenciatura. Portanto, já estava a trabalhar com 21, com 22 já tinha a licenciatura também, já estava a trabalhar e aos 26 fui tirar o mestrado, fiz seguido. Quando comecei um já estava na parte da tese, comecei outro mestrado na parte curricular. Terminei os dois também com óptimas notas, um foi pré-Bolonha, não havia nota quantitativa só qualitativa e no outro com nota quantitativa tive 18.
Huumhumm. E como é que sentiste esse percurso? Houve alguma dificuldade, não houve dificuldade, como é que viste o ensino, os professores?
Em termos de quê? De qualidade de ensino? Nacional ou com alguma…
Sim, mas só relativamente ao teu percurso, à tua escola e aos teus professores.
Portanto, até à faculdade também entrei numa escola pública. Devo dizer que o serviço de educação nacional é óptimo, não tenho razão de queixa. Tive óptimos professores no secundário, professores também bons… claro que há professores melhores e piores em todas as áreas, mas professores bons na licenciatura. No mestrado, como os mestrados já são a pagar… mas sempre bem, com qualidade de ensino boa. Embora que seja no mestrado, eram faculdades de renome e nós às vezes vamos com uma expectativa de maior qualidade de ensino. O primeiro mestrado ficou aquém, um pouco aquém das minhas expectativas, mas também foi um ano piloto como uma turma maior. Até então (foi em 2005 ou 2006)… até então as turmas eram bastante reduzidas com uma média de 15 alunos e no ano que eu entrei eramos 50, portanto os meus professores tiveram alguma dificuldade em se adaptarem a tantos alunos. Mas, são boas universidades, portanto, acho que a qualidade de ensino em Portugal é muito bom.
Huumhumm.
Ensino público! Ensino público.
E a relação com os colegas nessa… nessa fase?
Não. Sempre bem! Possivelmente por ser uma pessoa social nunca tive grandes dificuldades em relacionar-me com os colegas. Há sempre aquelas rivalidades ou quezílias, mas passaram-me ao lado. Há que saber contornar. Mas, o normal como no dia-a-dia de trabalho, como qualquer relação social, mas sempre, sempre, sempre sem qualquer problema.
E quem é que dirias que te influenciou mais para os estudos ou se é que houve alguém que te influenciou?
Ah, naturalmente a minha mãe! Sem dúvida! A minha mãe sempre incentivou os estudos, sempre incentivou uma educação, proporcionou a oportunidade sozinha (que a minha mãe ficou viúva, portanto, muito cedo, né?! Se o meu pai faleceu já há mais de 30 anos… aliás já faleceu vai fazer 30, já fez 33 anos)… ahh, ela sempre incentivou a escolaridade em todos nós, o hábito da leitura, todos nós tivemos oportunidade de entrar na faculdade, só que o meu irmão que faleceu escolheu o percurso militar porque não quis, todos nós tivemos a opção de ir para a faculdade. Quem quiser, concluiu! Uns concluíram outros não, mas ela sempre proporcionou isso sem pôr qualquer opção, tinha que ser pública. Não, pública ou privada, ela fazia os esforços que fossem necessários para sustentar. Portanto, sem dúvida, foi a minha mãe! Se calhar também parte… passa um bocado por nós, se calhar nós também temos todos um traço comum que gosta eventualmente de algum estudo, também sabemos o peso que a sociedade atribui à escolaridade, mas sim sem dúvida foi a minha mãe que sempre incentivou esse, esse hábito.
E dizes que incentivava os hábitos de leitura…
Hábitos de leitura e de estudo! E de… e sempre valorizou a importância de termos formação académica. Como ela veio muito nova e sem formação, começou a trabalhar sem formação, ela própria começou depois a estudar, após a morte do meu pai, e ela… lembro-me desde sempre dela sempre dizer “um canudo não.. pode não fazer nada, mas ganhar o conhecimento e um dia pode ser útil”. Lembro-me sempre da minha mãe dizer isso, portanto… Na minha família todos nós estudámos. Não só a minha mãe, as minhas tias, as minhas primas, ahhh… as minhas tias até mais velhas, foram para a faculdade até mais tarde. Posso dizer mesmo, no seio da minha família sempre foi dado muita importância aos estudos e ao… em termos alguma formação. Isso passava naturalmente pelo ensino e então, pronto, foi por aí.
E o que eu queria perguntar directamente é como é que lidas com o facto de ter que estudar e… sempre foste uma pessoa estudiosa ou tens hábitos de estudo que exijam uma leitura regular ou nem por isso?
Exigir, exige! Só que eu acho que não é… eu acho que uma pessoa… claro que há pessoas com maiores, outras com menores dificuldades de aprendizagem. O curso de enfermagem é exigente, o mestrado é sempre exigente. Ahhh, embora a minha mãe tenha incutido hábitos de leitura desde, desde muito novos, actualmente não tenho hábito de leitura. Sei que é uma falha, mas não tenho! Ahhh, se eu tive algumas dificuldades? Não! Se eu era uma aluna que me esforçava muito? Não! Saía-me naturalmente sem… não precisava… eu não queria ser uma aluna de 20, mas também não queria ser uma aluna de 13, então estudava o suficiente para ter a minha meta. A minha meta era sempre os 15, 16, 17 por ali. Não me sai… não me saía do corpo. Era natural, não tinha… acho-me uma pessoa mediana, portanto, como qualquer outra pessoa aprendes sem grandes dificuldades. Não sei se era essa a res… o tipo de…
E começaste a trabalhar (agora passando para a parte do emprego), começaste a trabalhar aos 21.
Aos 21.
Como é que foi essa transição entre a escola e o trabalho?
Ahh, na altura o curso de enfermagem… pronto, só posso falar no meu caso, no meu caso, né?! E no meu caso, ahhh, na altura (que não é como agora) tínhamos uma vantagem. O curso de enfermagem era muito profissionalizante. Logo que começámos a estudar, ao fim de 6 meses já estávamos no campo de estágio em contacto com as pessoas, portanto dava para ter uma visão daquilo que ia acontecer quando entrássemos no mundo do trabalho. Actualmente os contornos já não são bem assim, veio Bolonha, veio fusão de escolas, o programa curricular mudou, já não era bacharelato, já passou a ser licenciatura, actualmente os miúdos já têm um contacto mais tardio com os doentes, portanto, a integração à vida profissional é muito mais difícil. Os estágios já não são tão rigorosos como eram na minha altura, ahhh… claro que é sempre complicado! Muito mais nesta área mais delicada que se trata da saúde. Áreas delicadas são sempre complicadas. Saúde, educação e também mesmo na área das finanças uma pessoa tem sempre medo de cometer algum erro e pode prejudicar o outro, portanto, é difícil a integração ao mundo profissional mas também em enfermagem há sempre um período de integração, nós chamamos sempre o período de integração, portanto, acho que é como… aconteceu naturalmente. Acho que não tive grandes dificuldades, felizmente.
E basicamente trabalhaste sempre nessa área.
Só trabalhei nesta área. Na enfermagem hospitalar, em pediatria. Nunca trabalhei… nunca acumulei um segundo emprego noutra área da enfermagem. Só trabalho, portanto, há 13 anos no mesmo serviço, no mesmo hospital.
Como é que descreves o teu dia-a-dia nessa função?
O meu dia-a-dia é… como é que eu posso dizer?! Tem a vantagem de todos os dias serem diferentes, apesar de as pessoas acharem que é rotineiro, não é. Não é rotineiro. Todos os dias temos desafios porque as crianças são diferentes, mesmo com mesma a doença as crianças interagem e reagem às doenças de forma diferente… ahhh, os pais são diferentes… Portanto, cada dia é sempre um desafio, ahhh… mas a interacção decorre com… também ao fim de 13 anos uma pessoa já leva as coisas com outro sentido, não é?! Portanto… mas a interacção com… diária, num contexto de trabalho, é… é… é normal! É como qualquer outra pessoa! Passa essencialmente.. actualmente, e nos dias de hoje passa essencialmente pela motivação que te é dada para o trabalho, que já não é tanta como havia há uns anos. Ahhh, financeiramente sempre foi má portanto nós na área da enfermagem estamos sempre acostumados a ser mal pagos, portanto, eu ganho menos do que ganhava há 13 anos atrás e já há 13 anos não ganhava bem. Portanto, nós o dilema de ganhar mal já está presente, mas a motivação… a motivação é um factor importantíssimo que… esse se calhar é o maior desafio: tornar o… ser motivado para trabalhar com condições cada vez piores, mais exigentes a nível de esforço físico (intelectual e de conhecimentos é sempre exigente porque tenho uma profissão que exige uma formação contínua, tenho que estar sempre actualizada), cada vez mais exigente em termos das pessoas, dos utentes, mas em termos hierárquicos e organizacionais cada vez menos tem a capacidade de nos motivar. Se calhar isso é o desafio maior que enfrento diariamente, mas uma pessoa tem que viver, tem que trabalhar e tem que no seu trabalho fazer o melhor que pode. Se calhar é por aí que consigo… a minha forma de pensar.
E o que é que te levou a escolher essa profissão?
Eu sempre quis saúde! No 11º as pessoas ainda achavam… como eu era uma aluna com notas razoáveis que eventualmente eu podia escolher medicina, mas medicina nunca foi muito a minha propensão. Eu gosto do contacto com as pessoas. No 12º um dia estava assim, pensei “Vou para enfermagem!”, foi aleatório, no secundário foi aleatório. Portanto, não foi uma escolha que veio de dentro. “Ah! Tive aquela necessidade de ser enfermeira!” Não, foi uma escolha aleatória dentro do gosto que eu queria: saúde, contacto com pessoas, ahhh, e calhou enfermagem.
Se não fosse enfermagem o que é que poderia ser?
Na altura ou actualmente?
Actualmente?
Actualmente não escolheria… naturalmente, escolheria sempre enfermagem. O que eu não escolheria era ter ficado só na enfermagem. Efectivamente não é uma profissão economicamente boa, já não é uma profissão estável (eu não, porque sou do quadro da função pública), mas para quem entra já não é uma profissão estável, dá-nos muita riqueza pessoal no contacto com as pessoas, muita, que uma pessoa transporta para o seu-dia-dia. Portanto, aconselho todas as pessoas a tirar um curso de enfermagem, a trabalhar em enfermagem os primeiros anos, mas actualmente tirava, exercia 3, 4 anos e se calhar em vez de ter tirado outro mestrado (que até foram 2 que não são valorizados na nossa profissão), tinha tirado outra licenciatura ao fim de estar a trabalhar 5 anos numa área diferente e possivelmente agora iria sempre escolher uma área ligada à gestão ou à economia porque nós temos sempre que pensar no futuro, o que nos dá mais utilidade, ou então mesmo a área da gestão hospitalar , mas há um tempo atrás porque agora também o mercado já está um pouco usado. Ahhh, portanto se eu pudesse era na altura ter tirado algo relacionado com a gestão, a economia, continuava sempre a vertente da saúde, depois um MBA ou qualquer coisa relacionada nessa área.
E vês-te a continuar nessa função para o resto da vida ou pretendes no futuro mudar?
Ahhh… Gostar de mudar, é isso.
Tens planos para mudar?
Planos sempre tive. Planos, isso eu sempre tive. Por isso é que fui à procura de um mestrado que não se focalizasse na enfermagem, focalizasse num tema mais amplo que foi a saúde pública e depois serviu uma área de interesse porque é uma doença que gosto particularmente, que é a infecção VIH SIDA e depois é que tirei uma coisa mais específica. Mas ambos são um pouco distantes da enfermagem per si. Entretanto… portanto, eu sempre quis fazer algo diferente, o país é que não possibilita que dentro da enfermagem se possa fazer algo diferente. Porque a conotação de uma enfermeira ou de um enfermeiro no país é aquela pessoa que mete em soro, mete uma algália, colhe uns sangues e limpa os velhos. Pronto, isso é o que as pessoas pensam que faz o enfermeiro. E o nosso curso, pelo menos na altura mais do bacharelato, que volto a dizer que era uma altura… a altura era muito boa em termos de conteúdos de aprendizagem, permite ao enfermeiro fazer tanta outra coisa. Portanto, eu posso fazer muitas outras funções que actualmente são feitas (porque eu faço elas no meu dia-a-dia, faço elas no meu dia-a-dia!). Desde psicologia, intervenção social, apoio na área de assistentes sociais… portanto, projectos comunitários onde actualmente são os… são exclusivos de profissionais, não abrangem o enfermeiro, e cada vez que uma pessoa manda uma candidatura espontânea pensam logo: “Ah! Mas você é enfermeira, o que é que está aqui a fazer?!” As pessoas nem próprias têm a noção que o currículo de enfermagem permite-me isso. Aliás, eu até posso continuar a estudar vários aspectos fora da enfermagem, mas sempre com a enfermagem como tronco comum e exercer as competências que fazem esses profissionais como assistentes sociais ou psicólogos e afins. E trabalhos de coordenação, de campo comunitário… não precisa de ser um psicólogo a gerir um campo comunitário, uma intervenção comunitária. O enfermeiro é totalmente capaz para o fazer. Desde que seja um enfermeiro (não é um enfermeiro que sempre trabalhou toda a sua vida e toda a sua educação na área da obstetrícia, não é esse enfermeiro, mas o enfermeiro que já fez um outro percurso académico, que tem outras competências pessoais pode perfeitamente desempenhar essa função sem ter um curso de base da psicologia, por exemplo. Agora, se tenho a ambição de continuar?! Naturalmente que sim, se não tem… O país é que não me permite. Já tive, por exemplo, entrevistas de trabalho mesmo para outras áreas e diziam-me logo: “Ah, mas você é enfermeira!” Logo, logo por aí era logo, ahhh, ahhh, retida e nem progredia depois para o resto. E não há! Portanto, por esse campo é muito limitativo, portanto tinha sempre que tirar um outro curso diferente e aí leva comigo as minhas experiências que já ganhei (tanto pessoais como profissionais de enfermagem), mas a candidatar-me nunca era como sendo enfermeira, era como o outro curso que eu possuía. Mas sim, tenho, tenho perspectivas. Ahhh, agora uma pessoa fica um pouco mais moral… desmoralizada, mas (porque o tempo vai passando e elas simplesmente não acontecem), mas tenho sim, tenho perspectivas.
E como é que é… como é que defines a tua relação com os teus colegas de trabalho?
Ao fim de 13 anos de trabalho, mesmo de serviço, as pessoas reconhecem… as pessoas sabem avaliar o valor das pessoas sendo como boa e má profissional. E isso não tem interferência nas relações, claro, laborais com os colegas, mas na verdade estou lá há 13 anos, já, já ganhei, vá, um status na… no meu serviço, portanto, sou valorizada. As minhas opiniões são muito valorizadas e ouvidas. Claro que há sempre temas de debate, naturalmente que eu não tenho sempre razão e eu sou uma pessoa que sei ceder quando não tenho razão, portanto isso é vantagem da discussão. Há sempre muita discussão em termos de ponto de vista e… mas a minha opinião é muito valorizada pelos meus colegas, pelos meus pares, como também pelos pares interdisciplinares, outras profissões dentro da área da saúde.
Então e agora falemos um bocadinho de hobbies. O que é que fazes nos tempos livres?
O que é que eu faço nos tempos livres?! Os meus hobbies são hobbies digamos k mundanos e vulgares. Não pratico desporto, infelizmente, que devia, mas… é mais um defeito, uma pessoa não pode ser perfeita risos. Estou a brincar, naturalmente! Não pratico desporto, mas gosto muito de estar com a minha família e os meus amigos. Conviver com a família foi sempre um hábito que nós tivemos entre nós. A família mais próxima, naturalmente. Nós sabemos que os africanos têm sempre uma família muito vasta, mas eu já não tenho aquele conceito que existe em Cabo Verde que o primo, do primo, do primo é minha família. Não, é aquelas pessoas mais próximas! Estar com os meus amigos, estar com os meus sobrinhos e adoro estar numa esplanada, beber ou ir a uma casa de chá beber um chá ou uma imperial, portanto, convívios mais ou menos é isto! Estar com as pessoas, estar muito… actualmente agora com a idade já não é tanto sair à noite, mas estamos na casa das pessoas nos nossos amigos, uns com os outros, conviver, portanto o meu tempo livre é basicamente conviver com os amigos, quando não posso ou na maior parte dos casos, quando não quero, gosto de estar no meu canto a ver televisão (ver televisão, programas que eu gosto de ver, naturalmente, programas que eu ache que ganhe alguma coisa com aquilo) e faço muito scroll pela web.
E que tipo de programas é que vês?
Bem, adoro filmes! Gosto muito de filmes. Filmes em geral e filmes documentário. Gosto muito de ver documentários… ahhh… tenho as minhas séries de culto que gosto de acompanhar… ahhh… quase todas dão na televisão, mas em regra já há possibilidade de ver tudo em streaming na net, gosto sempre de me actualizar nas minhas séries e documentários e filmes, basicamente é isso. Ah! Tirando um ou outro programa nacional que dá… de entretenimento, vejo…vejo um, basicamente um! Que aquela hora mesmo nos canais sem ser nacionais não dá nada de especial e, se eu não estiver a procurar algo específico na internet ou se não estiver a fazer outra coisa, gosto de ver um ou outro de entretenimento. Vejo só o do canal 1 que é o “Quem quer ser milionário”, gosto de ver esse programa e… de entretenimento, sim, basicamente vejo esse. Quando não quero ocupar a minha cabeça a pensar vejo uma telenovela, um episódio qualquer, mas nisso também sou mesmo… também sou um bocado… sigo o cliché das telenovelas brasileiras, portanto ou vejo… se estou em casa na hora do jantar ou a fazer a comida vejo uma brasileira ou mesmo à noite porque sou uma pessoa muito noctívaga e vejo à noite e há uma novela que até dá para ocupar o tempo sem pensar muito, mas já dá depois da meia noite… ou então gosto muito de ver o telejornal. Actualizo-me muito no telejornal, muito embora o telejornal tenha também as informações uma pessoa não pode processar da forma que é vista, as notícias comparo sempre com o que há online e vejo… há dois debates políticos que gosto de ver, que dão semanalmente na… nos canais por cabo portugueses. E é com esses que eu faço assim… formulo as minhas ideias relativamente à actualidade nacional e internacional. Portanto, é basicamente isso que eu consumo na televisão.
E tens algum sonho ainda por realizar? Ou…
Ai, tenho tantos! Ah, isso tenho tantos! Quer encontrar… pronto, basicamente é o sonho de toda a gente, né?! Quer encontrar um trabalho que me satisfaça profissionalmente e economicamente, que actualmente a enfermagem não é! Portanto, esse é o meu primeiro sonho por realizar. Gostava de estudar mais um pouco, mas também aqui é complicado, não há dinheiro, né?! Agora daqui só posso… não vou fazer um terceiro mestrado, naturalmente, até porque os outros dois já me saíram bastante da carteira. Mas mesmo algum doutoramento, mas o doutoramento é muito difícil em termos económicos, bolsas também é complicado porque em termos de currículo eu não estou afecta a nenhuma escola, nem nunca estive… ahhh… e as bolsas nós sabemos infelizmente como é que isso funciona em ter termos de atribuição… ahhh… mas sim, gostava de estudar um pouco mais e já sinto essa necessidade. Já estou há três anos parada desde o segundo mestrado… três, quatro e tenho mesmo… sinto essa necessidade de voltar a estudar… a estudar. Portanto, era o trabalho, progredir nos estudos e naturalmente acho que é o sonho de qualquer ser humano, que o ser humano não nasceu para ser só, constituir família, sim, eventualmente. Eventualmente, não! Sim, gostaria.
E em termos de identidade, como é que te descreves?
Como é que eu me descrevo?! Descrevo-me como sendo uma pessoa divertida, com sentido de humor; ahhh, um bocadinho teimosa; por vezes com a mania, ahhh, aberta à… a outras opiniões, mas também sou como todos. Infelizmente há aquela coisa, só dou opiniões a quem eu acho que… só valorizo a opinião da outra pessoa se eu achar que aquela pessoa efectivamente sabe mais do que eu, mas lá está, é a minha teimosia e a minha mania um pouco a me condicionar nesse aspecto; sou uma pessoa altamente social; gosto de sentido de humor; ahh, divertida, acho que sim. Descrevo-me por aí…
E sendo filha de pais imigrantes, os dois de Cabo Verde, ahhh, qual é a tua relação com Cabo Verde?
A minha relação com Cabo Verde aconteceu… Cabo Verde, país? Ou Cabo Verde, pessoas?
Os dois.
Os dois… Bem, com Cabo Verde, pessoas, a minha relação sempre foi só com a família. Só com a família. Ainda mais, eu nasci e cresci no Ribatejo, portanto não há muitos africanos, não havia muitos africanos na altura, portanto, as minhas… rede social era toda caucasiana, de origem portuguesa e naturalidade portuguesa, portanto, o meu contacto com caboverdianos era sempre com a família. Porque nós sabemos que… que o povo imigrante africano tem essa grande qualidade que quando vai para um país é sempre a porta de contacto para todos os que vêm. Portanto, se eu já era… já tinha seis irmãos, na minha casa nunca viveram menos do que 10, 15 pessoas durante toda a minha vida, e sempre convivi super bem com isso e aliás isso foi um dos… se calhar eu sou o que sou hoje dado a essa experiência, né?! E ajudar os outros também vem um pouco por aí. Nós ganhámos isso sem ter a noção que estamos a ganhar essa competência, nós ganhamos essa competência, né?!... social. Depois… portanto, o meu contacto era essencialmente com a família. Umas experiências melhoras, outras piores, mas isso é como todo o caso. Portanto, até… nunca falei caboverdiano, até muito recentemente, porque a minha mãe, lá está, sempre fez questão que em casa se falasse português. A minha mãe nunca falou caboverdiano connosco, nunca. Só falava em duas ocasiões: como a casa era sempre cheia, com os irmãos dela que viviam lá connosco, mas mesmo eles para connosco falavam sempre me português, nunca falaram connosco em crioulo; ou então, naturalmente, quando iam lá visitas, aí era só [assobio] crioulada, crioulada, crioulada. Ou então, claro, que é o mais evidente, quando nós nos portávamos mal. Aí ela começava a mandar vir em crioulo. Claro que nós entendíamos, mas falar nenhum dos meus irmãos fala crioulo como deve de ser. Acho que sou eu a única que falo melhor. O contacto com… com… depois com Cabo Verde, com África veio posteriormente porque fui uma primeira vez em Cabo Verde em 2006… 2006?... Sim, 2006, por aí… e foi o meu primeiro contacto com Cabo Verde. E depois voltei já em 2009, já no âmbito mais profissional e foi o segundo contacto. Portanto, aí é que u posso dizer com pessoas caboverdianas… com pessoas caboverdianas. O primeiro… o primeiro contacto foi… foi engraçado perceber a cultura, porque nós estamos cá, embora a minha mãe… a minha mãe tinha… apesar de tudo perdeu alguns hábitos! Perdeu alguns hábitos porque a sociedade aqui exigiu e eu acho que há coisas que quando nós vamos para um outro país, há um processo, chama-se aculturação e quer se queira, quer não, nós temos que acostumar aos hábitos do país para onde nós fomos. Portanto, a minha mãe era de Cabo Verde, a minha mãe não podia nem devia, e ela fez muito bem, por isso é que a minha mãe é a pessoa magnifica que é, mesmo sem qualquer estudo na altura, teve essa capacidade em se adaptar à sociedade que existe e criar… aos costumes que existem para o país para onde ela foi, que foi Portugal. Mas manteve, naturalmente, as coisas da terra né?!
Como por exemplo…
As coisas da terra… um dos exemplos e sempre o apoio à família quando precisa… ahhh… também música e… ah! Outro hobbie, adoro música! Esqueci-me de dizer… música e a gastronomia. Mas, o que eu acho que ganhou mais… a herança é mais… se calhar porque em Cabo Verde a minha família é particular, dentro da sua humildade é muito particular e a minha mãe trouxe muitas características que já eram dela, que não foram ganhas cá, foram lá e esse apego à família, e a assistência social e de a pessoa ver o bem, ajudar sempre a outra pessoa e progredir um bocadinho mais, e ver o mundo além do que aquilo… do olho comum… isso, eu acho que isso é uma herança que ela trouxe de Cabo Verde. Só que eu não acho que isso seja.. que seja natural do povo caboverdiano, é natural da minha família em particular. Mas, sim, mas esse modo de estar, a gastronomia e a música, naturalmente, sim. Portanto, o meu prato favorito é a cachupa e a congada. Adoro! Adoro! Adoro! Ahhh, entretanto, lidar com o povo caboverdiano, ahhh, foi engraçado! Na segunda ida a… na segunda ida é que eu dei-me para perceber porque foi uma ida mais profissional, porque na primeira ida foi uma ida… foi lúdica, foi de férias e portanto, achei curioso os costumes, porque há costumes ainda em Cabo Verde que permanecem e que hoje… e que infelizmente, da percepção que tenha ainda que distante, estão a terminar. Aquela valorização pelos idosos… pelos idosos (que não gosto da palavra) das pessoas mais velhas, de nós andarmos lá fora, fora, no interior, ahhh, e passar uma pessoa mais velha e pedires a bênção, as pessoas são muito simpáticas, ahh, sabemos que o cristianismo e a igreja católica está patente, mas as pessoas são sempre assertivas e simpáticas, tentam… são agradáveis para com os outros; o aspecto familiar, lá está, tive que visitar o primo porque o primo do primo do primo é família, então tinha que lá ir; são super hospitaleiros e é! O que me senti mais à vontade é, vou à casa da prima da prima da prima que pode ser a pessoa mais humilde que pode haver, nós somos todos humildes, mas mais humilde, a viver nas condições que nós não podemos imaginar, mas do pouco que têm oferecem sempre e isso aqui não existe cá. E isto eu acho que é um traço típico caboverdiano, porque mesmo aqui, embora os meus amigos são caucasianos, por contactos não tão próximos, mas normais, às vezes costumo ir a casa de outras pessoas que as origens são caboverdianas e é normal, uma pessoa não sai de lá… as pessoas podem não ter nada para comer, mas o pouco que têm oferecem-te sempre. Sempre, sempre, sempre! Para a visita e agradar a visita. E isso foi uma coisa que eu senti lá, nem que seja… só tinham aquele sumo, só tinham aquele… mas oferecem-te, o pouco que têm gostam sempre de oferecer. Ahhh, isso foi outro costume que eu notei lá e… nesse primeiro contacto. No segundo contacto… já foi um contacto mais profissional porque fui lá dar uma formação na UNICV e acho que a sociedade caboverdiana mudou muito nesses três, quatro anos de diferença que eu tive entre as visitas e se querem que eu diga se foi para melhor, acho que não. Acho que não. Acho que ganhou infra-estruturas, naturalmente, porque também no mundo actual se não chegasse a África também mal seria. Ganhou infra-estruturas, ganhou conhecimento, mas o conhecimento não foi bom conhecimento. Se calhar é um processo que vai demorar… Portugal também quando sai da pobreza e da ditadura, demorou muitos anos até que as pessoas… ainda actualmente os serviços são o que são, o atendimento é o que é, portanto, quanto mais em África e Cabo Verde, neste caso particular estamos a falar, nós quer queiramos quer levamos sempre a essência portuguesa por todo o lado e o pior são os defeitos, e os defeitos são as primeiras coisas que ficam. E os defeitos mantém-se lá. As pessoas, ahhh, houve com este boom da televisão e do cabo e da internet, as pessoas são bombardeadas com informação que não têm capacidade de filtrar, a socie… toda a gente quer fazer uma escolaridade, que eu acho que isso é óptimo, mas a escolaridade não tem qualidade, ahhh, não tem, não tem qualidade e as pessoas com esta pouca informação que aparece já se acham de tal ordem importantes, mas depois na prática (não sei se me estou a fazer entender no que quero dizer? Estou-me a fazer entender? –
Sim!), mas depois na prática, tudo espremido, o sumo é muito pouco vitaminado. As pessoas não sabem se comportar na mesma, ahh, não têm… não prestam serviços em qualidade e houve, acima de tudo, para mim que é o pior, a troca de valores e a troca de importância das coisas importantes na vida. Agora isto foi aqui uma frase mal construída, mas é! Ahhh, os valores mudaram completamente e para pior, e para pior. Portanto, os mais velhos não conseguiram acompanhar esta evolução que foi muito curta, né?! Esta evolução tecnológica e social que ainda deve certamente estar a decorrer em Cabo Verde e… e os miúdos novos…e ao mesmo tempo os miúdos novos abandonaram estes valores que são importantes e que para mim é a riqueza do povo caboverdiano. É a questão dos valores. Abandonaram, abandonaram isso! Isso foi o que eu notei. Acho que há… dentro do povo caboverdiano há também alguma segregação entre as pessoas, ahhh, o que é incrível, o que é uma estupidez, ahhh, baseado não só no estrato social como baseado… muito baseado na aparência e por incrível que pareça também na cor da pele, também na cor da pele, portanto, copelet como eles dizem e as pessoas mais claras, há um nicho do populacional de cabo-verde que tem uma capacidade económica ligeiramente acima da média e que se comporta totalmente diferente para com os outros cidadãos, mas se calhar se nós analisarmos bem isso é o que acontece em toda a parte do mundo. Quem sempre tem um bocadinho de dinheiro a mais é sempre um bocadinho mais parvo e idiota nas suas posturas. Mas lá como a população é tão pequena, lá são tão poucos, né?! Cabo Verde tem quê, 500 mil habitantes qualquer coisa assim no arquipélago inteiro, nota-se ainda mais, é muito mais evidente. Portanto, não gostei, não gostei disso e se actualmente dissessem gostavas de ir morar para Cabo Verde? Não, não gostava. Não é pelo clima porque é óptimo, não é pelo país porque é lindíssimo, Cabo Verde é lindíssimo, tem um potencial que já sei que vai se estragar, mas tem ali um grande… um potencial enorme, mas é mais pelo… por incrível que pareça, pelos cabo.verdianos em si porque… a não ser que eu fosse morar para fora, né?! Para o interior que ainda há um pouco mais dessa herança e fazer um trabalho de prevenção lá, com as pessoas de lá. Mas na cidade… mas como eu sou uma pessoa citadina, lá está… Gosto da cidade e cidade em Cabo Verde é… estes costumes diferentes das pessoas, acho que as pessoas devem perfeitamente querer que a cidade evolua e serem mais cosmopolitas, acho isso tudo, tudo muito bem, só que não podemos esquecer de onde é que viemos. Eu acho que as pessoas às vezes esquecem-se de onde é que vieram. E essa é a percepção que eu tive… ahhh, depois lá está, como o ambiente é mais pequeno ressalta logo à primeira vista (porque nós já sabemos como é que é o que ressalta logo à primeira vista é o que é belo ou o que é errado) e lá ressalta logo muita coisa que é errada. O funcionalismo público funciona mal, ahhh, as pessoas trabalham mal mas acham que trabalham super bem… é que elas nem têm noção das suas próprias dificuldades.
E em que zonas é que estiveste de Cabo-verde?
Estive só na Praia. E eles também não lidam muito bem… pelo menos… se calhar foi o meu contexto, lá está! Foi a minha experiência, mas como isto também é só para falar da minha experiência, é a única coisa que eu tenho para dizer. Da minha experiência, os caboverdianos com quem eu lidei, portanto, foram caboverdianos, técnicos-superiores, na área da educação, eles não olham muito bem aos filhos de imigrantes que nunca cresceu em Cabo Verde e que nunca lá foi, que também é diferenciado e que foi lá fazer, fazer algo. Não digo que as pessoas percam às vezes a formação porque felizmente acho que as pessoas… fiz uma formação de 35 horas lá para enfermeiros e acho que o feedback foi óptimo, todos adoraram, mas eu estou a falar de outras pessoas, não é dos formandos, as pessoas com quem eu lidava diariamente e eles não olham para nós da mesma maneira que se eu tivesse nascido lá e tivesse vivido lá, tinha vindo fazer um curso a Portugal e tinha regressado. Não olham da mesma maneira e exigem-nos mais, ahhh, sacrifícios do que se fossem eles próprios não exigiriam e exigem menos a quem lá vai dar formação que nunca teve qualquer raiz nem que seja genética com Cabo Verde, ahhh, são tratados de maneira diferente. Portanto, não gostei da forma… achavam que “ah! Por eu ser filha de caboverdianos devia ter o dever moral de fazer sacrifícios pela terra!” Mas eu não tenho o dever moral de fazer sacrifícios por nada. Gosto, gostava e naturalmente contribuía, mas como contribuía por qualquer causa, não sendo caboverdiana ou não. Naturalmente que eles têm que ter a noção é que sendo caboverdiana dou mais, naturalmente. Mas, vou querer exigir como exigiria noutro sítio qualquer e eles lá não olham… como não cresci lá, depois não falo crioulo, depois não ouço música africana, conheço só um ou dois ícones e nem estou a falar da Cesária Évora, naturalmente estou a falar de outros e mais antigos, mais antigos que a minha mãe ouvia e os meus tios ouviam e gosto particularmente, mas não sei falar caboverdiano, não sei dançar, não aprecio particularmente a música caboverdiana, portanto, ainda tudo mais eu era diferente nesse sentido, ouço música rock ou indie, alternativa, que eles nem sabem o que são, ahhh, o que é, portanto, para eles era diferente e eles não lidam muito bem com isso.
E os teus gostos musicais vêm de onde? Ou seja, ahhh, o teu gosto musical foi influenciado pelos amigos, ahhh…?
Foi influenciado pelos meus irmãos. Isso de eu ser a terceira filha, ou o quarto filho… pronto, já tenho três irmãos mais velhos… eu acho que acontece de tudo. As pessoas ou gostam de música ou não gostam de música, mas isso é como tudo na vida! Ou gostam de música ou não gostam de música. E os meus irmãos mais novos… um deles não liga assim grande coisa. Eu adoro ouvir música, adoro ir a concertos! Ahhh, e o meu gosto pela música veio sem dúvida dos meus irmãos mais velhos! Ahhh, como disse, se eu vivia no Ribatejo os meus amigos são caucasianos e não ia ouvir quizomba. Portanto, ia ouvir o que se ouvia na altura. Os meus irmãos mais velhos, dois deles que nasceram antes de mim, eram metaleiros, portanto, eu comecei a ouvir heavy metal, portanto, eu fui metaleira na minha adolescência, mas metaleira naturalmente, mesmo, naturalmente não, literalmente! Calça preta, doc Martin’s, t-shirt preta, concertos de heavy metal mesmo agressivo… portanto fui uma metaleira! E a verdade é que o metal abriu-me horizontes musicais enormes. Eu a partir do metal… eu já ouvia o que a minha mãe ouvia. A minha mãe ouvia música africana, pouca, mas também havia muita coisa na altura que era o Dennis Russo e aquelas coisas que se ouvia naquela época. Portanto, nós já tínhamos aquela musicalidade, portanto, embora ouvisse metal eu ovia as músicas que a minha mãe ouvia. Mas nós ouvíamos muito metal. Se calhar ouvia mais a minha mãe metal do que ela ouvia as músicas que ela gostava. E a partir do metal, a verdade é que o metal que as pessoas também não conhecem, né?!, tem tanta influência musical, som de telefone: O, o telefone! tem tanta influência musical… e a partir daí passei para tudo! Eu do metal passei logo para o Jazz, adoro Cold Train, adoro Miles Davies, e os meus adoram, mas vejo tudo, tudo ganhei pelos meus irmãos porque foi a partir daí, isto é tudo um processo. Era heavy metal, depois surgiu a moda do grunge, comecei a gostar do grunge, adorava os Pearl Jam, os Nirvana, que adoro ainda actualmente e a partir daí quanto mais música e mais música diferente, mais vais gostando de música. Portanto, o último que chegou em último lugar de ouvir até foi mais música étnica que até não ligo muito, mas até lá fiz um percurso que passou por várias vertentes musicais mas que tudo começou pelo metal. Se eu tivesse começado como com os putos, adolescentes que começam a ouvir a onda comercial… som de telefone: O! Interrupção Parte 2
… se eu tivesse começado o meu percurso musical como começam os miúdos de hoje em dia, que é o que acontece, porque os pais não houve música em casa, ahhh, e depois começam a falar com os amigos e ouvem as músicas com os amigos, ahhh, eu possivelmente tinha um gosto musical péssimo que é o que eu acho que tem a maioria das pessoas porque só ouve a música comercial. Eu não! Tive essa sorte! A minha mãe gostava de música, depois ouvia os meus tios a falarem da música… e isso fica-te no sempre no ouvido, fica-te sempre no ouvido, mais cedo ou mais tarde tu vais sempre ouvir. E comecei pela onda do metal, na minha escola, na minha turma, eu era a única metaleira! As minhas amigas na altura, ouviam o quê? Já que estamos a falar para aí de 93 ou 92 e elas ouviam possivelmente “Ace of Base” e essas coisas… mas lá está era música comercial! Eu ouvia porque elas ouviam, mas como eu ouvia o metal eu não me restringia só a… houve mais abertura, pronto! Actualmente se puserem uma música dos “Ace of Base” ou dos “Bon Jovi” eu sei cantar de cor, eu sei trautear aquilo, porque elas ouviam! Mas lá está, elas limitavam-se àquilo que era o que havia na altura, que era o todas entre elas “Ah! Vamos todas ouvir isto!”, mas eu já não! Ouvia aquilo que elas ouviam, mas só que eu em casa ouvia outras coisas. E depois ter irmãos mais velhos e que gostem de música é totalmente diferente, totalmente diferente e depois ainda por cima os meus irmãos têm bom gosto musical e isso ajudou um bocadinho. Agora ouvem umas coisas um bocadinho diferentes, mas a nossa génese está muito ali, sem ser do metal do rock, mas muito… muitos blues e jazz, que são músicas que as pessoas, depois lá está, as pessoas… quando te interessas por música depois também vais aprender, né?! e isso até no próprio metal tu encontras influencias vindas daí, por isso… é por aí.
E voltando ao cultural que coisas é que destacarias de negativo e de positivo na cultura portuguesa?
Ui, tantas! Vamos começar pelo pior, né?! Ora bem, negativo na cultura portuguesa… Sem dúvida, a herança colonial que ainda há; a forma de ver a pessoa não caucasiana ou a caucasiana de fora, que ainda há (brasileira, de leste, ciganos…), portanto, ainda é um país colonial e não só, colonial e nem sei até que ponto é que nós podemos ir ainda um pouco mais atrás, né?! porque se formos a… eu acho que estas coisas têm sempre interferência e passam mesmo sem nós darmos conta. Mesmo que seja implicitamente ou indirectamente quando nós andamos na escola e nós damos os Descobrimentos. Como é que um país deste tamanho há 500 anos atrás era dono de meio mundo?! Portanto, esse… essa mania da grandeza existe nos portugueses. Acho que os portugueses têm a mania da grandeza, mas quando depois já não há nada! Quando não há nada. Acho que isto é uma coisa típica dos portugueses. Mania da grandeza, mas carteira vazia. Portanto, a aparência, o colonialismo, a forma de tratar o outro que não seja caucasiano ou ser caucasiano que não seja alto, louro e de olhos azuis, ahhh, portanto ligam muito às aparências e… isso não… acho que é outro defeito deles, deles se calhar e… pronto, nós, que eu também sou portuguesa, naturalmente, né?!, mas é fácil dizer outros quando nós estamos a falar mal… risos. Outro defeito de nós portugueses, ahhh, vou dar antes uma qualidade que pode ser vista como defeito. Portugueses têm um aspecto que é… são muito… como é que se diz?! Ahhh… um olho na burra e o outro no cigano!” Isso é bom! É bom porque dá-te muita capacidade de adaptação. Eles são altamente… um português adapta-se em qualquer parte do mundo acho que tem um… acho que adapta-se perfeitamente, só não se adapta se não quiser. Ahhh, e depois são muito… um pouco trapaceiros nas coisas, é um defeito. Mas, ahhh, ser de olhão, que acho que é uma coisa tipicamente portuguesa, é ser de olhão, também pode ser uma virtude! Mais qualidades dos portugueses… qualidades… acho que o português, ahhh, em média qualquer cidadão portugueses só não aprende as coisas se não quiser ou se não lhe for proporcionado. São comodistas, mas se for minimamente incentivado, acho que qualquer português tem potencial intrínseco mesmo de aprendizagem. E… mais… deixa-me pensar! Já disse que têm a mania das grandezas, que ligam demasiado às aparências, são de olhão, não são só os de olhão mesmo mas em geral, na gíria popular, são um pouco interesseiros… hum, é por aí. Mas são competentes, têm boas capacidades de aprendizagem, é uma comunidade que adapta-se facilmente à diferença se quiser, né?!, se quiser! Ás vezes a maior parte não quer, mas se quiser consegue perfeitamente e… acho que é isso!
E no meio dessas duas culturas com qual é que te identificas mais?
Quê? Portuguesa e africana? Naturalmente, com a portuguesa. Isso eu não tenho problemas em dizer, e os africanos levam isso a mal. Mas eu não sou caboverdiana. Eu digo “Eu sou portuguesa!”, mas tenho origens caboverdianas, faço sempre esse acrescento. Eu não digo que sou caboverdiana. E isso… e também cá com os poucos… com os contactos que eu tive ao longo da minha vida, mesmo com os meus… com alguns primos que vieram, eles diziam: “Ah, tu não és preta!” e eu… ou “Não és preta!” que eles costumavam dizer, que eu não ouvia a música, eu não falava, lá está! E lá em Cabo Verde eu também senti isso. Os caboverdianos têm esse defeito. Se tu não ouves aquela música, se tu não falas daquela maneira, nem te vestes daquela forma, então não podes ser considerada caboverdiana e isso é um defeito dos caboverdianos porque eu acho que a identidade cultural não é por aí que se vê. E lá está, e se calhar uma herança portuguesa ou não, os caboverdianos acham muito que é isso. Se eu falasse para lá, começasse a falar crioulo e dançar umas quizombas, mandar um ou dois bitaides em caboverdiano eu era tão caboverdiana quanto eles, mas eu não… pois, não me considero assim. Considero-me caboverdiana em termos de herança, ahhh, genética e cultural, tenho alguma, mas sou definitivamente portuguesa! Aliás, até costumo dizer, eu sou mais europeia até do que portuguesa. Tenho muito presente em mim o conceito europeu. E sou portuguesa, naturalmente! E sou, mas de origem caboverdiana. Que isso faz a diferença, porque efectivamente eu ganhei essa herança, né?! Eu podia não ter ganho e aí se calhar nem dizia que era… nem dizia que era. Mas, faz… eu sinto que sou também caboverdiana, em termos da herança, mas sou definitivamente portuguesa, portanto, se tivesse que dizer… sou portuguesa! Não sou…
Consideras que Portugal é um país racista ou não?
Racista?! Claro que é, claro que é! Isso é claríssimo! Socialmente até é proibido, quase é proibido dizer, a pessoa já nem pode dizer que são, mas são! Se for, até eu própria, se pensar bem, consigo ter um ou outro comportamento racista. Agora estamos a falar o racismo, mas agora só à base da cor. Pronto! Os portugueses são racistas à base de tudo, por causa da cor, à base da opção sexual, à base da opção musical, à base de onde tenhas vindo, ahhh, mas em termos de cor, é o que estamos a falar, né?! Em termos de cor, claro que são, claro que são racistas. Ainda há! O que se nota é que as pessoas que são da idade dos meus pais, ou da minha mãe porque o meu pai faleceu relativamente e consideravelmente mais velho que a minha mãe, mas da idade da minha mãe, portanto, uma pessoa na ordem dos seus 55, 60 anos, vá, ainda há muito, ainda há a presença do… daquele… da discriminação à base da cor. Não vamos dizer racismo porque agora uma pessoa também não pode dizer que é racista, mas há a discriminação à base da cor. O que há agora actualmente… está camuflado! Eu acho que a tendência, seria boa desaparecer, só que o colonialismo foi há 30 anos, portanto até desaparecer ainda falta muito tempo, ahhh, mas o que existe é que está mascarado. E eu acho que ainda é pior quando é mascarado do que quando é explícito. Porque agora uma pessoa não pode tratar o outro diferente porque é preto, não pode tratar à vista desarmada, então o que é que a pessoa faz?! Esconde! Portanto, eu não digo, por exemplo uma professora não pode dizer “Eu não gosto daquele miúdo porque é preto!” eu não vou dizer, mas dou-lhe notas piores, aplico-lhe um método qualificativo pior, a minha relação com ele… pronto, a discriminação é camuflada, que para mim é muito pior! Eu espero que a tendência seja a desaparecer e não se manter na camuflagem, mas o que existe actualmente é a camuflagem. Na minha idade… as pessoas da minha idade deviam de ter a obrigação, nem que seja moral, de ter a noção de que isto é descabido, embora, porque são… na maior parte das pessoas, são pessoas, ahhh, diferenciadas, né?! com alguns conhecimentos, e eles sabem que é errado, mas saber… do saber ao praticar, pronto, né?! Dizem “Ah, os pretos… mas tu não contas, SB!” Claro que conto! Eu sou portuguesa, mas eu sou preta! Eu não nego donde é que eu sou e orgulho donde é que eu sou! Um dos piores, das piores ofensas que me podem fazer é dizer isso! “Ah, tu não contas!” Não, eu conto! Naturalmente que conto! Ahhh, mas sim, eu acho que eles ainda são racistas, sim. Ainda são! Mas a mudança também parte de nós africanos! Sim, de nós africanos. Eu se calhar tinha um ponto de vista diferente porque sempre fui privilegiada, embora a minha família sempre foi pobre, mas com base no que nos foi incutido, né?! Mas nós sabemos que ao africano mesmo nascido em Portugal ainda é exigido muito mais do que a qualquer outro cidadão português. Ainda é exigido muito mais! Na escola… eu lembro-me! Para passar na escola eramos poucos, né?! No Ribatejo éramos 2 ou 3 pretos na escola, éramos 2 ou 3 só, portanto, eramos sempre diferentes, né?! E era sempre exigido mais! Ahhh… barulho de telefone: O telefone da minha prima… ahhh, mas eu acho que a mudança dos portugueses para com os africanos à base da cor também passa muito por nós, porque nós… porque os portugueses são racistas, já sabemos que são racistas e nós também vamos um pouco na onde de como eles são racistas, então eu também vou ser… querem afirmar a sua africanilidade, vá, da forma errada, da forma errada. E lá está, se calhar nem toda a gente tem a capacidade de ver o que é o certo e a mudança também passa por nós. Só que é difícil. Se eu não tenho uma família estruturada, se esse princípio nunca me foi implícito, como é que eu posso mostrar que eu sou preta, mas que eles me aceitem como igual, porque eu sou igual! Pronto, mas como é… é difícil, mas eu acho que são racistas, ainda há muito para mudar de ambas as partes. Isso nota-se no dia-a-dia. Há tantos africanos em Portuga, tantos, tantos, tantos, tantos, tantos… lá está, é um problema que ainda mais dificulta. Mas isto é um problema social enorme e dava para ter aqui horas de conversa e de troca de pontos de vista, mas a verdade é que não há africanos em profissões de relevo. Atenção, vou corrigir a frase! Não há portugueses de origem africana, que eu sou portuguesa, né?! Não há portugueses de origem africana em posições de relevo. Eu trabalho no Hospital há lá quê?! 2 ou 3 pretos. Um médico, duas enfermeiras! Uau!!! No meio de 500 funcionários… Sim, porque os pretos que há trabalham todos na limpeza, pronto! Vou a uma escola… quantos professores universitários tive que forem pretos? Nenhum! Infelizmente as pessoas só se acostumam com a realidade com base naquilo que vêm! É um… é errada mas as pessoas não têm capacidade, lá está, as pessoas não têm capacidade de análise das coisas. Então quando as pessoas não têm capacidade de análise, exige-se de nós um esforço muito maior de forçar as pessoas a aprender. Portanto, foi o que a minha mãe sempre me ensinou “SB tu és preta e eu sei que tu tens orgulho em o ser, mas prepara-te que a vida para ti vai ser um pouco mais complicada, portanto, vais provar que não és tão boa quanto eles…”, vou ter que provar que sou melhor. Eu tive sempre que provar que sou melhor! Ah, claro que há muitos melhores do que eu! Mas, isso é competências individuais! Se calhar tu és melhor do que eu muitas áreas, claro, então! É normal! Mas daí isso que coiso… e isto já é ensinado em casa. E os africanos têm que ter esta noção, mas encostam-se que foram escravos e que… porque é verdade, ainda há esse peso, ainda há esse peso e isso conta, e conta para a postura dos brancos portugueses conforme o preto, o africano. Mas, a verdade é que em Portugal tu não vês, não vês um preto na televisão, não vês um preto actor, não vês um preto a apresentar o telejornal, e as pessoas têm de se acostumar a essas coisas. Infelizmente as pessoas são burras! Então para lidar com a burrice a gente tem que ser um bocadinho mais espertos e enganar as pessoas. Não é enganar, é… é enganar para um bom sentido, por uma boa causa. Eu não estou a usar a palavra correcta, mas é a palavra que me surge de momento. Nós temos que contornar, vá, a situação para elas aperceberem-se das coisas. “Ah, tu não queres ver desta maneira, então pronto! Vou ser um bocadinho mais esperto e dou-te a volta, mas tu vais chegar lá!” Mas é isso que… e a sociedade então como também nós ainda somos vistos diferentes porque ainda há esse tal racismo implícito e camuflado, mesmo que não seja consciente, que eu acredito que na maior parte das situações não é consciente, mas existe, ponto final parágrafo, existe! Se eu for com uma pessoa portuguesa caucasiana à mesma oferta de trabalho, se nós formos com as mesmas competências, as pessoas dizem que não, mas há! A pessoa, quem está-me a avaliar tem tendência para escolher o branco, ponto! Isto ainda acontece! Mesmo que eu tenha se calhar ainda mais competência! Mesmo que eu tenha ainda mais competência! Atenção, vamos os dois bem apresentados, se for com um cariz um pouco mais… [Ó O, fecha aí a porta!]… se for com um cariz um pouco mais, mesmo apelativo, ou pouco sexappeal… sexappeal igual, presença igual, aparência igual, mesmo se eu tiver um bocadinho mais currículo a tendência é sempre a escolher o branco. Eu não sei se eles fazem isso consciente ou não, ou se é camuflado ou não, e aí as pessoas dizem “não, não, mas eu não sou…”, há aquela tendência natural e é isso que acontece. Então nós temos que mudar! Mas para mudar tem que haver africanos nessas posições para mudar. Como não há essa oportunidade isso também não se muda, ou então temos que ter a consc… os brancos têm que ter essa consciência. Mas como isto está camuflado e eles também não têm essa percepção por isso é que não muda. Não sei se estás a perceber, isto é uma… isto é uma… como é que se diz?! Uma… -
Um ciclo vicioso? - …um ciclo vicioso. Não era isso… um proverbio popular: rabo de pescadinha ou pescadinha no rabo… como é que eles dizem? Já não sei como é que se diz! Portanto, isto é um ciclo vicioso! Não vai mudar porque há sempre isto. Se não há brancos com essa consciência… porque quer queiramos, quer não, muitos dos nossos ganhos africanos em Portugal partiu também de pessoas africanas, mas também partiu de muita gente caucasiana com outra visão. A gente é que não tem essa noção. A gente pensa não foi a Associação de Cabo Verde em Portugal, nem a Embaixada que lutou pelos meus direitos cá. Foram brancos portugueses, caucasianos, mas com um nível de intelectualidade diferente que lutou por isso. Mas a gente sabe que essa gente não chega a lugar nenhum, que infelizmente nunca chegam ao poder, né?!, porque são pessoas mais intelectuais ou mais de esquerda, mas a verdade é que também houve muitos contributos dessas pessoas. Só que essas pessoas são incipientes, essas pessoas não têm qualquer poder político, não têm qualquer poder de decisão e isto foi um acumular de situações, de pessoas a falar e tal… portanto, não sei se vamos chegar algum dia… o que é curioso é que não acontece no estrangeiro. O que é curioso é isso. E basta passar quase a fronteira para Espanha. Portanto, isto é mesmo nosso, de… de… nosso, dos portugueses. Que vem do colonialismo e que se calhar, e como eu disse há pouco, que vem daquela herança da mania das grandezas, de dominarmos o mundo e nós somos os maiores mas não temos nada. A questão é essa, portanto, acho que nunca se vai superar.
E tens algum episódio que te tenha marcado, teu ou de pessoas conhecidas?
Como assim?
De racismo.
Ah! Tantos! Então, tantos! Então… o racismo, por isso é que eu acho que a sociedade de agora, ou desde a minha altura, desde o pessoal que tem os seus 35, 38 devia ter outra consciência, mas não tem. O racismo ensina-se. Quer se queira, quer não, ensina-se. Mas isto já vem desde sempre, portanto, eu sempre ouvi “preta”, chamarem-me “a preta”, pronto. Mas como é que era o preto que me chamavam na escola? Chamaram-me sempre “preta da Guiné”, “preta da Guiné”, aquelas coisas, né?! quando éramos putos. Os putos não têm noção do que estão a dizer, mas em casa, em casa ou nas suas… contactos com a família, ou fora da escola, eles ouviram a expressão “preto”, mas não ouviram da mesma forma que fosse a expressão “cão”. É a forma como foi dito em casa, “aquele preto”, “Ina, aquele preto”, eles percebem que aquilo é mau. Encaram aquilo como é mau. “Olha aquele cãozinho!”, encaram aquilo como é bom. É a forma como os pais dão a entoação às palavras. Os meus amigos quase todos dizem que não são racistas, mas a forma como eles estão a falar às vezes, inconscientemente, “estás a ver ali aquele preto…” os putos apanham aquilo! É o tom que eles usam na palavra. Eles podem dizer “preto”, então se é mesmo! Não é por aí! É a forma como eles dizem! Que não dão a mesma entoação àquela palavra quando estão a descrever que quando estão a descrever uma pessoa que passou loura de olhos azuis. Não dão a mesma importância! E os putos têm essa capacidade de perceber se aquela conotação é melhor ou pior. E a conotação associada aos pretos sempre foi a pior! Pronto, portanto, eu desde sempre chamaram-me “preto” toda a vida na escola. Agora de racismo, de discriminação, tive no secundário, naturalmente, porque senti, embora a minha mãe me dissesse que tinha que me esforçar melhor, senti que tinha mesmo. Nuca perdi nada por ser preta, porque eu já venho com essa base, eu sei que tenho que dar o melhor, portanto, mesmo que me quisessem apontar alguma coisa eram incapazes porque eu não deixava argumentos porque já vinha com essa base. Mas sei perfeitamente quando entrei no trabalho em 2001, nós tínhamos lá avaliações de desempenho, e ao fim do primeiro ano, eu entrei com uma amiga minha que é por acaso ainda trabalhamos juntas, viemos as duas da escola, entrámos exactamente no mesmo dia, no mesmo serviço, e eu sei, na minha primeira avaliação de desempenho eu disse à minha chefe “eu tenho a total noção que quando eu entrei você não gostava de mim e é porque eu era preta”, é porque eu era preta! Mas disse-lhe assim, frontalmente. “Mas eu sei que você agora adora-me!” e ela disse: “É verdade!” Lá está, porque nós temos que ter aquela, mais aquela capacidade de mostrar que as coisas não são bem assim. Se calhar foi a única coisa de racismo mais evidente. O que eu sinto muito é o racismo camuflado. É o racismo no dia-a-dia. Ah, já senti outra vez. Uma coisa que eu sinto muito e que ainda sinto. Isso sim é racismo. É eu entrar numa loja e ver o segurança atrás de mim, o segurança estar-me a controlar. Agora já não tanto, porque os Angolanos andam aí cheios de dinheiro e então podem pensar que eu sou angolana e ainda por cima esta zona não permite… não sei como é que não se apercebem que eu sou caboverdiana porque eu acho que é evidente. Eu acho que qualquer africano sabe ver mais ou menos de onde é que é cada um, tal como eu sei ver que aquele é finlandês ou o outro é romeno. Mas pronto, as pessoas africanas acham que eu tenho ar de angolana quando eu acho que eu sou toda de Cabo Verde, mas ainda existe. Epá, eu odiava! Há uns 10 anos atrás, 10, 15, acontecia mais isso. Entravas dentro de um centro comercial, dentro de uma loja, ias a uma Zara, ias a uma Mango, ias onde fosse e o segurança pumba, naturalmente olhava para ti. Lá está, porque quando entravam os pretos em bando, supostamente era para roubar. Muitos roubavam, é verdade! Mas muita gente branca rouba! Eles só vão atrás dos brancos que roubam se tiver diferenças, né?! Se se vestir de um a forma diferente, se falar mais descontraído, se for mais do bairro, aí eles vão atrás. Agora quantos e quantos e quantos… shoplifting, ah! Ui, então na adolescência, tantas miúdas fizeram e eram as queques! Mas nunca ninguém ia atrás dessa gente. E isso era o que eu odiava! Isso e entrar em restaurantes. Odiava! Se fossemos todas, eu e quatro amigas, e se fossemos todas pretas era sempre à espera, era sempre a pior mesa, éramos sempre os mais tarde atendidos e ainda agora isso acontece. Ainda agora isso acontece. Naturalmente agora, o coiso muda, conheço mais pessoas também, depois fui para Lisboa, né?! E como sou muito social falo com muitas pessoas, muitas delas africanas, tenho amigos também de origem, origem portuguesa, origem africanos, às vezes lá tenho que ir eu dançar umas quizombas, não danço, né?! mas lá vou com eles, e música africana ou assim, mas se eu for a uma discoteca africana, que as pessoas não têm noção que eu não gosto de música africana, mas são das melhores discotecas que ainda se pode ir, uma pessoa para ter a essência do que é que é uma discoteca, do que é que dançar tem que ir a uma discoteca africana e eu não ouço música africana, mas as… os portugueses… só os portugueses que vão é que se apercebem disso e são poucos. Que é mesmo, é um espírito… eu acho que devia haver um filme só por causa disso. Eu acho que é fantástico, fantástico! As pessoas não tem só aquela… as pessoas africanas vai mesmo para dançar, para dançar… as pessoas tem a mania… até porque os brancos têm a mania de dizer “isso são dos latinos”, mas depois é uma dança e a dança dos latinos vem de África, isso é que as pessoas não sabem! Mas como são latinos, né, é mais exótico. Isso vem dos escravos que foram para lá, que foi para lá e introduziram aquilo, mas ir a uma discoteca africana não, é dançar salsa. Vais a uma discoteca africana… e agora que os putos querem mais é o roça-roça, mas pá, nos anos 90, era do melhor! Era… e eu era metaleira! Atenção! Mas tinha a minha prima que morava em Via Longa e não sei quê, então com o pessoal de Via Longa que era tudo black lá íamos nós… eu estou-me aqui a dispersar na questão, mas eu já volto atrás… mas aquilo era tão engraçado e os portugueses não têm noção disso, e vais mesmo lá para dançar. As pessoas vão lá mesmo para dançar. Eu vou para uma discoteca agora aqui, é uma estupidez, porque eu estou lá, estou a beber gin tónico e a fumar cigarros, e nem danço. E as pessoas estão lá mesmo para ver o que está vestido, fazer o comportamento social, engatar um gajo ou um gajo engatar uma gaja, agora se queres ir dançar, se queres ver o que é que é dançar e o espírito de sair à noite, opá, tens que ir a uma discoteca africana. Mas voltando aqui atrás que eu agora perdi-me um, um… desviei aqui um pouco a conversa. Ahhh, a verdade é que tu… se eu saísse com um grupo de amigas, se fossemos todas pretas, mesmo actualmente vais a uma discoteca e és… só que actualmente já não há… os pretos vestem-se bem, os brancos vestem-se mal… não, toda a gente veste-se bem, só não veste bem quem não quer ou quem não sabe. Vais a uma discoteca, epá, se não forem discotecas lá está que estão habituados a passar música africana, uma discoteca tipicamente mainstream caucasiano português, aparece cinco pretos à porta não entram! Ainda hoje não entram! Porque são cinco pretos! E vais a qualquer discoteca mainstream, o rácio dos pretos que lá estão sem ser no Lux, sem ser no Lux que o Lux também é uma discoteca um pouco diferente, mas sem ser o Lux os pretos são contados à cabeça e aquele preto que está lá não é um preto qualquer. É porque é o filho do doutor não sei aonde ou então é porque viveu ali com os meninos de Benfica, com os meninos da Portela, ou então com os meninos, com os queques… desde miúdo andou com os putos betos. Mas é um! Se forem lá… ali… dez a entrar, simplesmente dez não entram! E isto eu disse, façam esse teste em qualquer discoteca de Lisboa dessas mainstreams caucasianas… não entram! Mas se forem dez brancos a qualquer discoteca africana entram todos! Mas lá está, porque também os brancos que vão a discoteca africana vão para dançar. Já sabem! Mas esse preto… lá está, nem toda a gente tem que ouvir ahh Kizomba! Eu posso gostar de música comercial e quer ir ali à… como é que se chama a discoteca?! Eu já fui barrada numa discoteca e eu sempre convivi… os meus amigos foram todos caucasianos e eu sei que eu não entrei, e eu ia com caucasianos… eu já tive a noção… isto é outra atitude de discriminação, outra resposta, eu já saí com amigas e tenho a noção que não entrámos na discoteca por minha causa, por eu ser preta! Porque as pessoas não entendem, os brancos não entendem quando eu explico isto. Eles não entendem, nem nunca vão entender. E o meu argumento é assim quando disserem “Ah cá não há racismo!”, eu digo há racimo, há discriminação, está é camuflado! E tu só podes perceber que há quando pertences a uma minoria. Se tu não tiveres uma mão, tu aí vais saber o que é viver sem uma mão. Se tiveres as duas nunca sabes o que é viver com duas, o que é que é viver sem uma, né?! Pronto, se tu és preta só eu sei o que é que eu passo. Pronto, lá está, porque somos uma minoria e quando és minoria as pessoas sentem. Se eu vou, e eu sei… nós ganhamos esta skill, eu estou a aproximar-me da discoteca e já estou a ver o porteiro a topar-me há 10 metros atrás! Eu já estou a vê-lo. Ele já olhou para nós! Já olhou para nós, mas topou-me a mim. A sorte é que às vezes até vou bonitinha, eles até me chamam a mim porque eu estou bonitinha, mas muito… então quando eu andava na faculdade, muitas discotecas, eu andava com os meus amigos brancos, né?! Eu tenho a noção que fui barrada, só não entrámos, não entrámos literalmente porque estava lá eu! Tenho… porque no dia seguinte e depois já tive provas, né?! E depois fiz testes, automaticamente fiz testes, né?! Hoje não vou sair! Dois dias depois, três dias depois vão as mesmas pessoas, na mesma discoteca, o mesmo porteiro e entravam. Portanto, é naturalmente porque estava lá eu. Mas depois é só… depois de começar a ir tantas vezes, né?!, tu já és lá conhecida começas a entrar… mas há, isso há, e ainda há! Eu às vezes ainda penso: gostava de fazer este teste social e passar estas coisas na televisão para as pessoas perceberem. Ás vezes penso tanto nisto! Então vá, juntam-se… vamos juntar aqui dez brancos, dez pretos, vesti-los… bem, se os pretos estiverem vestidos à bairro, aí estão lixados que não entram mesmo! Aí não entram mesmo! Mas isso também se estiverem brancos vestidos à bairro, pronto! Metes todos vestidos de igual, arranjados para a noite… metes e depois fazes o teste. Quantos é que entram e quantos é que não entram. Atendimento nos serviços, atendimento nos restaurantes, tudo… e aí é que se vê que, pronto, ainda há.
E agora queria que me descrevesses um bocadinho o sítio onde nasceste.
AH, nasci em Vila Franca de Xira…
Onde cresceste…
Vivi e cresci. Vivi e cresci lá, saí de lá aos 18 quando vim para Lisboa. Como se fosse muito longe. Não era muito longe, é já ali, 30 km. Mas, embora seja muito próximo de Lisboa, né?!, há 20 anos atrás quase, quando eu sai de, de lá, aquilo ainda era provinciano. Ainda é um pouco mas na altura ainda se notava mais, né?! Estamos a falar de há muitos anos atrás. Ahhh, Ribatejo, né?! Tauromaquia, que gosto! Se eu nasci lá, faz parte das minhas raízes… ahhh, que gosto! Ahhh, é um… mas é difícil! O povo, lá está, acho que foi um bocado diferente nesse contexto porque a minha mãe passou-nos outras coisas, não é?! E nós eramos um bocado diferentes. Portanto, em Vila Franca toda a gente sabe quem eu sou, toda a gente, mais do que quem eu sou, toda a gente sabe quem é a minha mãe. A minha mãe marcou a diferença, né?!, uma mulher lutadora, uma mulher com garra, uma mulher que levou sempre os filhos para todo o lado e puxou muito pelos filhos e pelos filhos dos outros, mas Vila Franca é tipicamente português. Mente fechada, mesmo aldeia, aldeia, província, província. Mas… mas é uma terra que pronto, tenho uma relação de amor/ódio. Mas acho que toda a gente tem essas relações de amor/ódio quando… donde vive, quando os mundos são pequenos, né?! Passamos as desvantagens de ser um mundo pequeno, né?! As cusquices, toda a gente a meter-se na tua vida, toda a gente a achar que sabe da tua vida. Mas depois tens outras coisas boas, nos maus momentos notas que as pessoas estão lá, nem que seja para agradar, mas estão lá. Ah, depois as pessoas são mais próximas. Tens isto, tens as festas da terra que é o Santo António em Lisboa. Epá, mas para mim não há nada que se compare com o “colete encarnado” que são as festas da minha terra. É sardinhas e vinho tinto e, pronto, música popular portuguesa que é do melhor para dançar do bailarico, que eu adoro! Não me ponham nos Santos Populares, dêem-me o “colete encarnado”. E todos na rua… ahhh, mas depois a mentalidade da Vila Franca é a mentalidade provinciana. É a mesma coisa que eu fosse lá para uma terra recôndita do Alentejo, pronto, não é metrópole, né?! Não é cidade. É aquela desvantagem quando se é diferente. Neste caso a minha diferença passa à base da cor. É um pouco mais difícil, mas gosto!
E por onde é que já andaste? Que sítios, que países é que conheces?
Oh, estive em Cabo Verde duas vezes, já fui ao Brasil a quatro cidades diferentes, já fui a Espanha, já fui a Itália, já fui a Inglaterra, já fui a França e a alguns desses sítios mais do que uma vez… e infelizmente não fui a mais lado nenhum, porque se eu pudesse e se eu tivesse capacidade económica, aos pouco hobbies que eu tenho o que eu adicionava era viajar. Já que não leio! A minha mãe bem tentou, todos os meus irmãos lêem, então os mais velhos lêem imenso, mas acho que viajar é quase como ler um livro, se uma pessoa for com âmbito de aprender. Pronto!
E o que é que te marcou mais em cada uma dessas viagens?
É… é ver… é porque quando eu vou passear ou viajar… uma coisa é… eu não sou muito de ir “Vá, vamos 5 dias para a República Dominicana ou para Punta Cana passar o…!” Aquilo não é conhecer Punta Cana. Eu gosto de conhecer minimamente o que se passa ali. Infelizmente uma pessoa quando viaja vai muito para as metrópoles, né?! Vais a Londres, vais a Paris, vais a Amesterdão… mas é tentar perceber como é que era a sociedade há muitos anos atrás lá e ver como é que as pessoas lá se comportam. Ver as diferenças com o teu país, a tua maneira de estar, né?!, qualidade de vida, como é que era aquela cidade, como é que é agora… acho que são essas… mais os ganhos que se traz das viagens e o que eu gosto de ver.
Humhum! Pensas sair de Portugal algum dia?
Oportunidade… aliás, é assim! Pensar, já penso há muitos anos, mas isso é uma resposta vaga, né?! Actualmente há tanta gente que fala de sair para fora… Pensar, penso há muitos anos, mas… eu gosto muito deste país! Não é por ser o meu. Para já, primeiro, é por ser o meu! Ponto! Eu disse que não é, mas é! É por ser o meu! É o meu país, portanto, gosto! E acho que, tal como o povo caboverdiano não se apercebe da qualidade de vida e da qualidade do país que tem, o povo português não se apercebe da qualidade do país que tem. Ahhh, apercebe-se quando se vai embora, mas este país é óptimo, é óptimo! É óptimo para viver, a comida é óptima, a metereologia é óptima, tem mar, tem costa de norte a sul toda, ahhh, tem diferenças paisagísticas também enormes, ahhh… e custava-me muito sair daqui, porque aqui eu posso fazer… e se calhar se eu fosse para Cabo Verde, em termos culturais se calhar para mim não havia grandes desafios porque em termos de cinema, o que é que passam lá?! , os blockbusters, depois lá está não ouvem bem a música que eu gosto… eu aqui tenho de tudo! Posso ouvir… há um… tenho pena que não haja muitos sítios em Lisboa (vamos para Lisboa, né?!) de ouvir assim um pouco mais de um jazz sem ser o Hot Club, que é muito específico de coiso…, mas tu aqui sais queres ouvir quizomba, vais a quizomba, se queres ouvir metal, vais a metal, queres um bar de gótico, vais a um bar de gótico, queres um bar gay, vais a um bar gay, queres ouvir reggae, tens reggae, tens tudo! Tenho cinema mainstream, posso ver 007’s como posso ver qualquer filme que veio do Sun Dance, ali no cinema mais alternativo, tenho teatro, tenho óperas, tenho concertos, vários concertos, eu adoro ir a concertos… Comida diferente, variada, eu posso estar numa casa de chá, posso ir para uma esplanada na Costa, posso ir para um terraço num Hotel de Lisboa, tenho museus, tenho teatros… há tanta actividade, mesmo sem ser paga que as pessoas nem têm a noção, óptimas, actividades culturais óptimas, para os miúdos mesmo crescendo em Vila Franca. Então onde eu vivia, no bairro Paraíso, os putos podem-se educar quase na rua quase a brincar… tirando aqui em Lisboa, mas pronto, isso é uma em… uma desvantagem numa grande cidade. Agora, se eu gostava de emigrar, gostar, gostar, não. Mas, lá está, em Portugal com o custo de vida actual, precisava… para uma pessoa ter uma vida boa, precisava ganhar um bocadinho mais. Aliás, eu não me importava de ganhar o ordenado que eu ganho agora se eu não tivesse que pagar casa, por exemplo. Não ganho… eu ganho pessimamente mal, mas se não tivesse que pagar casa, pá, com o pouco que eu ganho, era óptimo! Dava para fazer tudo! Dava para poupar, dava para viajar… tudo! Tudo, tudo, tudo, tudo! Só que actualmente a conjuntura económica, epá, é complicado! Mas uma pessoa pensa cada vez mais em ir para fora! E depois a formação em enfermagem, pelo menos a que tinha na altura, é boa que me permitia ir para fora trabalhar, só que já trabalho há 13 anos e nunca fui por alguma razão, né?! Talvez um dia porque já estou a ver que isto não vai melhorar, talvez quem sabe. Mas é uma ideia que está presente! Se ia… se ia naturalmente, não! Ia naturalmente se o meu trabalho cá fosse um trabalho estimulante, mas proporcionasse-me ir fora, aprender novas coisas. Mas não era ir fora, ser emigrante, né?! Não é ir fora, ser emigrante. Que até porque a emigração nos dias de hoje já não é a mesma coisa, né?! Os meus pais eram emigrantes, ponto! Eu se for agora morar para qualquer outro país, eu não vou ser emigrante. Vou ser emigrante no sentido nostálgico da palavra, que vou sentir saudades da minha terra, vai-me saber super bem vir a Portugal, vir a Vila Franca ou vir a Lisboa, mas lá eu não vou ter a vida de emigrante, não vou fazer o que a minha… o que os meus pais fizeram, nem o que a maior parte dos emigrantes que vem para Portugal faz, nem o que os que durante os anos 70 saíram de Portugal fizeram, né?! Eu não me vou meter dentro da comunidade portuguesa em qualquer outro sítio do mundo e restringir-me àquilo. Eu… como eu disse eu sou europeia. Se for para qualquer outro canto da Europa ou até mesmo do mundo, eu vou-me comportar como um cidadão de lá, pronto. Eu não vou para outro país para ser escravo do trabalho, para ficar a minha vida a trabalhar, trabalhar, trabalhar. A verdade é que se eu emigrar, tem que ser para… ou é para um sítio onde eu tenha economicamente, pode não haver nada, mas economicamente tão mais vantajoso que compense eu ser emigrante, tipo só trabalho, ou então para um sítio onde pelo menos a oferta que eu tenho aqui é o que eu tenho lá, e aí eu sou uma cidadã, comporto-me como uma cidadã de lá, pronto. Mas sim, tenho… não queria, mas…! Nem quero! Mas não sei. Não é… não está de todo excluído. Infeliz… eu gostava de dizer “não quero emigrar!” mas não está de todo excluído, infelizmente. Mas não sei, pode ser que aconteça aí alguma coisa boa. Era bom.
Ok, obrigada! SB.: Ah! Foi só isto?! Pronto! Então… Interrupção 2
Fazes algum trabalho relacionado com as comunidades ou…
Faço, sim senhora, um trabalho relacionado com a comunidade. Até gostava de fazer mais isso. É porque o meu trabalho na pediatria, ou em saúde, há os acordos de saúde com os PALOP. Portugal recebe muitos doentes evacuados de África, basicamente não vêem de Timor nem vêem do Brasil, vem de África com problemas de saúde. E então no meu serviço nós temos lá crianças que precisam de ser transplantadas com o dador de medula óssea, não é por leucemias, mas é por outras doenças do foro hematológico, e então algumas já morreram… curiosamente as que morreram foram todas africanas e outras conseguiram dadores ou os tratamentos suplementares tiveram efeito. Então há um ano e tal atrás veio uma criança de Cabo Verde que não tinha nenhum dador. Isto até é uma história engraçada de contar que até vem a propósito daquilo do racismo. Então um dia eu vou fazer… lembro-me perfeitamente, foi no dia dois de junho, porque dia um é o dia mundial da criança, eu fui trabalhar e a miúda já lá estava e essa miúda estava internada há mais de 6 meses sem dador de medula óssea compatível, portanto nem em Portugal nem internacional, porque Portugal funciona em rede com todos os outros bancos de medula óssea internacionais. Então eu chego, estou a receber o turno, e dizem “Ah, ontem esteve cá a ministra, a ministra da… (desculpa) a embaixadora de Cabo Verde a visitar as crianças internadas, especialmente as caboverdianas e viu a A e não sei quê, e explicou-se que não havia dador para esta menina, que já estava cá há mais de 6 meses…” e a conversa ia evoluindo e ela “…pois, mas também lá no centro de insto-compatibilidade dizem que não vale a pena fazer campanhas para essa gente porque eles não aderem”. Essa gente! Essa gente são os pretos! Bem, aquilo bateu-me de uma maneira! E eu “Ahhhh!!!”, bati assim na mesa, pumba! “Então vou eu fazer uma campanha!” Disse só assim. E pronto! Direccionada para os africanos. A verdade é que o que eles disseram foi verdade. Os caboverdianos… os imigrantes africanos em Portugal só pensam em direitos, não pensam em deveres, nem pensam em mobilizar-se por causas, não. Quanto mais eles tiverem, melhor. Se arranjarem benefícios e tudo mais, isso é bom. Agora eles, é verdade, tenho que lhes dar razão, mas o que me caiu mal foi “essa gente”, e “essa gente” aquilo caiu-me mesmo mal, mas não deixam de ter razão. O povo caboverdiano não se mobiliza. Existem vários motivos. Ou são imigrantes ou foram… mas pronto! Existem vários motivos que também não são discutíveis, mas eles não se mobilizam para as causas. “Então vou fazer!” Então pronto, criei uma campanha de incentivo à população para ser dador de medula óssea mas nomeadamente população caboverdiana. Porque o que nós queríamos era, não é que haja maior probabilidade de um caboverdiano seja dador com aquela criança, mas a verdade é que pode haver alguma mutação de uma pessoa caboverdiana que tenha a mesma do que ela e então é importante. E a minha ideia era mesmo mobilizar a comunidade para estas causas porque pode se encontrar dentro, caboverdianos né?!, somos tão heterogéneos, somos tão misturados geneticamente que pode… há particularidades que pode haver só nossas e que pode ser, sei lá, a mutação que aquela criança pudesse ter na altura, pudesse ter alguém… podia não ser, mas também podia ser. O importante era mobilizar a causa. Então criei uma campanha, fui ter com a embaixada de Cabo Verde que no início abraçou-me imenso a campanha, ahhh, criei a página do facebook, actualmente ainda sou eu que sou responsável por essa página que se chama “Uma dádiva…” (arranjei um nome assim todo pomposo para ser diferente, né?! Vamos ajudar não sei o quê… não!) “Uma dávida, um sorriso, uma vida! Dadores de medula óssea caboverdianos”. Quando eu criei este nome o que é que eu pensei? Bem, os caboverdianos vão aderir! Mentira! Mentira! Acreditas que quase um ano depois… ah, que me mexi, fiz essa campanha, fui a alguns eventos com a Embaixadora de Cabo Verde a espalhar a palavra, né?!... alguns eventos, cocktails e tudo, mas também fui à Quinta da Princesa, fui a… e não sei quê, organizei mesmo uma campanha de campo que foi… até foi a… a embaixada de Cabo Verde que me ajudou na Lusófona incentivar os miúdos lá a doarem medula, a registarem-se como dadores de medula óssea, por mim com alguns contactos consegui ir à televisão, pela embaixada consegui ir à rádio, por outros amigos consegui ir à RTP África e assim fui angariando pessoas espalhando a página no facebook, espalhando a mensagem e… portanto, eu criei a página em julho, em dezembro desse ano que fazia um ano que a miúda estava internada encontrámos o dador e eu ouvi que foi graças à campanha. E o dador foi nacional. Mas a verdade é que o nome é “Uma dávida, um sorriso, uma vida! Dadores de medula óssea caboverdianos”, as pessoas também não sabem utilizar as redes sociais, se forem lá às informações diz que é uma campanha para TODOS os cidadões, cidadãos, independentemente da… cidadões, cidadãos, independentemente da cor, né?!, só que há o apelo para as minorias étnicas para se envolverem. E está lá caboverdianos que é uma palavra que eu agora queria tirar até, só que já não dá porque pelas próprias definições do facebook não dá para tirar. Mais de um ano depois, aliás, agora não que agora já está mais ou menos equilibrado, mas para aí naquela altura, seis meses, nove meses depois de ter feito a página, muito mais de 50% dos followers e dos likes eram pessoas caucasianas. Muito mais de 50% eram as pessoas que faziam like, as pessoas que partilhavam, as pessoas que comentavam. E se eu for ver a estatística a maior parte… muitos são, ahhh, brancas e aquilo dizia lá caboverdianos. A verdade, é uma coisa boa do povo português, são solidários. Quando sentem aquela coisa são solidários. Os caboverdianos também, mas só se for lá. Cá não. E as pessoas não têm noção porque há muitas doenças que são próprias do povo africano que são do foro hematológico e toda essa gente… anemia nos estados mais graves, né?!, consome imenso do banco de sangue por exemplo, já nem estou a falar da medula… de sangue, transfusões… os africanos consomem imenso, mas nenhum deles é dador. Nenhum deles quer ser dador. Nenhum africano naturalmente vai ao hospital “olhe, quero ser dador de sangue!” Não vão! Não vão, mas têm essa noção que é graças aos outros todos, brancos que dão, né?! Eles não estão a pensar na cor, mas dão! Mas isto eu analisei aquilo e fogo! Mais de 50% das pessoas… muito mais! É para aí 70%... eram brancas! E aquilo até dizia caboverdianos e eles até podiam nem se identificar com aquilo, até podiam nem se identificar com aquilo. E tenho a certeza que também não leram o conteúdo a dizer que são todos, portanto eles estariam incluídos, mas foram sensibilizados pela causa. Foi diferente, ouviram aquilo na televisão ou ouviram na rádio, alguns ouvem na rádio ou então viram algum amigo, branco naturalmente, que partilhou e eles foram lá, viram, gostaram e fizeram like. Mas aquilo diz lá caboverdiano, mas só agora, já um ano e meio depois, porque depois como aquela miúda então conseguiu-se encontrar o dador, então resolvi manter a página. Temos lá actualmente mais duas crianças, outra de Cabo Verde que já está lá há mais de um ano e um de Angola, mas aquilo é, pronto como eu disse, qualquer pessoa para ser dadora. Agora é que já existe muitos africanos, mas só agora um ano e meio depois, um ano e meio depois. Porque houve uma página ou outra de facebook que também direccionada para a comunidade que partilhou, logo foi buscar algumas pessoas e agora os poucos que fizeram like foram partilhando e pronto! Mas só agora, só agora! E na campanha… é curioso, na campanha que eu fiz no campo na Lusófona, vieram… apareceram pessoas brancas que viram aquilo na internet que foram lá de propósito… brancas! Foram lá polícias de bicicleta que já sabiam que ia haver naquele dia, estavam a trabalhar no Areeiro mas pediram para ir lá ao chefe de comissão porque viram aquilo, não sei quê, não sei quê… porque já tiveram um amigo que também já teve um problema, que já tiveram um familiar e não sei quê… agora foi muito difícil arranjar africanos. A Lusófona é uma Universidade privada em Lisboa que tem muitos alunos africanos. Eu ia ter com um africano, eles diziam que não. Então se eu ia ter com um angolano e dizia que a criança era caboverdiana eles diziam que não! Eu tive muitas pessoas, muitos jovens de 20, 21 anos a dizerem-me que não! Que não! Africanos! Africanos, né?! E eu… isto é muito mau, isto é muito mau! E nisso… enfim! Mas pronto, arranjou-se para aquela criança. Agora felizmente… agora eu já queria tirar, tirar os caboverdianos do nome porque aquilo para mim é para toda a gente, mas eu gostava mesmo era de mobilizar todas as minorias, africanas… as mais étnicas diferentes… africanas, ahhh, indianas e orientais, que são minorias muito… têm especificidades muito próprias e estas pessoas não se mobilizam por auto-recriação aos serviços de saúde e há… e são pessoas que têm doenças muito próprias também da origem deles e podem ajudar outros, outras pessoas, né?! Mas a verdade é que os africanos… eu fiquei… eu já tinha esta noção, já tinha, mas depois quando eu vi aquilo eu… ffffuuu! É incrível! Foi uma tristeza, foi uma tristeza! As pessoas não vão naturalmente… e depois dizem que “Eh, não ligam aos pretos e não sei quê, nanana…!”. Mas a verdade é que muito da página, que ainda é uma página que embora tendo um ano e meio tem muitos poucos likes, infelizmente, porque as pessoas também não procuram estas coisas das doenças, né?! E depois há páginas que têm mais likes, mas a minha é diferente. Mas, com seis meses… tinha ali ao fim de seis meses tinha mais de mil likes, ao fim de seis meses aquela página conseguiu ter repercussão fora do país (porque até aquela altura não havia nenhum no mundo, ninguém no mundo para aquela criança, ninguém no mundo) e o feedback que tivemos foi que aquilo chegou a alguém que imediatamente viu aquilo, foi-se da… foi-se registar e pronto! Eu não sei se a pessoa tinha, ahhh, origens africanas e possivelmente até nem tinha, possivelmente até nem tinha, mas chegou lá, mas chegou lá! Mas os de cá ui, uff é complicado! E isso era uma coisa que eu queria compartilhar de cá, da comunidade africana cá. Ela gosta muito que lhe dêem coisas, mas dar aos outros, ui, tá quieto! Se fosse lá, se fosse feito uma campanha lá na cidade da Praia ou no Mindelo, era adesão massiva, isso eu tenho quase a certeza. Mas eles são solidários lá, agora se eu pedir cá para eles… e dizia lá caboverdianos, o mais engraçado é que dizia lá caboverdianos, se forem cá, uufff, muito complicado, muito complicado! Não vêm! E pronto, era só isto que eu tinha para partilhar.
Ok. Obrigada!