Vou fazer um enquadramento. Idade?
41 anos.
Nacionalidade
Portuguesa
Não tens dupla?
Não, não tenho, neste momento não.
Zona de residência?
Sintra.
Escolaridade?
Tenho mestrado em educação.
Profissão?
Sou consultor de inovação social.
Número de irmãos?
Espera aí que tenho de fazer contas. Então três, cinco, seis, sete, oito.
Idades?
Deles? Opa não faças isso…
Mais ou menos, só para saber…
Eu sou o mais velho, sou o mais velho, depois tem a minha irmã, que tem um ano e meio de diferença, tem 39. Depois tenho os outros irmãos, 19, 20… 19, 17, 15…31 e 33.
Estado civil?
Solteiro.
Número de filhos?
Um.
Nacionalidade do pai?
Do meu pai.
Sim?
Caboverdiano.
Escolaridade?
O meu pai tem o 12.º ano.
Profissão?
Ele agora é reformado.
Mas fazia o quê?
Era vendedor de marketing.
Nacionalidade da mãe?
Caboverdiana.
Escolaridade?
Tem o 4.º ano. Também é reformada.
Do quê?
Ela fazia limpezas, fazia essas coisas assim.
Porque é que os teus pais vieram para Portugal?
Acho que é um pouco de sempre, a procura de uma vida melhor, oportunidades. Acho que é um pouco isso.
Queria saber um bocadinho do teu percurso escolar?
Escolar…
Sim, a começar pela primária?
Fui para a escola primária na Amadora, depois fui para uma preparatória… diz-se preparatória… não sei, 2.º ciclo, depois fui para uma secundária também na Amadora. Depois da secundária fiz… ah… na secundária eu tinha que decidir o que é que queria fazer e eu estava a estudar no 9.º ano artes, artes e design, fui assim para um curso que não tinha muito a ver… mas eu gostava de artes e tive professores que eram pintores e então estive nessa área. O meu pai começou-me ali a azucrinar, artes não, não tens futuro e não sei quê… tens de tirar um curso assim de computadores, isso é que vai ser o futuro. Então eu decidi ir tirar computadores, até fui fazer um curso técnico de computadores e era isso. Então surgiram uns cursos novos que era, tens o 9.º ano e ias fazer o 12.º e eu fui fazer isso. Mas eh pá detestei, fiz o curso até ao fim… eu gostava tipo… de mexer em computadores, mas não era aquilo que eu queria fazer. eu fiz o curso, já que estou aqui faço. Depois de ter feito o 12.º fui estudar letras na Autónoma, aí tive imenso prazer, diverti-me imenso, tive professores que… que me apoiavam imenso em fazer as coisas e… e tinha bons resultados, lembro-me que no 2.º ano fui convidado por um dos professores para dar uma aula dele do 3.º ano. Achei o máximo, gosto disso, desse espirito. Depois de ter feito o curso de letras eu queria estudar um bocadinho mais na área de educação, mas não queria se professor, curso académico, o curso cá não me inspirava. Eu gosto de lecionar, mas não gosto da estrutura, não gosto do currículo formal, teria de virar o currículo todo ao contrário e dar à minha maneira. Então decidi ir para Inglaterra, para londres porque tinha visto uma universidade que é o king's college que é uma escola muito conceituada e tal, e eu queria estudar lá, então candidatei-me e fui para lá fazer esse curso de mestrado em educação. Adorei, foi assim uma grande experiência, os professores são muito inspiradores, são muito exigentes. Não era fácil entrar e fiquei muito feliz de ter feito o curso e acabei com o meu trabalho final com distinção e com mérito. Foi assim uma grande experiência.
E nunca reprovaste?
Eu reprovei na 4.º classe, porque eu tive… o que é que eu tive…essas coisas tipo varicela… não foi varicela… tive para aí uns 4 meses sem ir à escola. A minha professora na altura falou com a minha mãe, ele faltou muito tempo, faltou um semestre todo, eu sei que ele sabe, mas não é justo ele ter estado um trimestre todo e passá-lo, tem a ver com presenças. A minha mãe disse, pode fazer isso e depois ele volta outra vez. Voltei a repetir o 4.º ano, mas já estava com notas muito altas porque era matéria que eu já conhecia, mas ela teve de fazer isso porque eu faltei muito.
E entre ciclos não houve assim nenhuma paragem?
Houve… depois de eu ter feito a licenciatura eu parei. Eu fiz a licenciatura e tinha trabalho. Então estava a trabalhar no IPJ que hoje é o IPBJ, que é o instituto da juventude. Estava bem, ganhava bem, já não estava a pensar muito em estudar, mas na altura eu tinha uma namorada Suíça que veio para cá viver comigo e na altura estava a prender português, e ela inscreveu-se na faculdade de letras para aprender português e eu fui com ela, acho que foi no primeiro dia de aulas, uma coisa assim… não sei o que foi… e quando entrei lá…eh pá… eu tenho que estudar. Ela virou-se para mim, a sério. Sim, quero voltar a estudar. E foi isso. Houve essa paragem, mas entrei nesse espaço e pensei vou voltar a estudar.
E mais ou menos quanto tempo é que foi essa paragem?
Não sei, essa paragem foi entre o curso que eu fiz de técnico de informática e estudar a licenciatura… acho… nessa altura o nosso grupo estava a ter muitas solicitações para espetáculos e nós estávamos muito focados em gravar um disco e não sei quê… acho que devem ter sido para aí dois anos, ou três, porque estavamos numa de ser músicos, estávamos com concertos pelo país, estávamos focados é nisso, não estávamos focados em estudar. Eu tinha estudado e estava bem, tinha feito o 12.º ano e achava… depois vou ver. É isso, o facto de ter acompanhado à faculdade de letras que me fez este click todo, vou estudar e foi tudo muito de repente.
Então e para o mestrado houve algum tempo?
Praticamente não, porque quando eu terminei a licenciatura, acho que parei um ano. Porque parei a licenciatura e integrei um projeto, lá está, um projeto no programa Escolhas… o programa escolhas tinha um modelo, com os seus técnicos e não sei o quê…e eu tinha sido formador pelo IPJ dos mediadores e dos técnicos do programa Escolhas, eu era um dos formadores deles, e o chefe, o diretor do programa escolhas queria muito que eu fosse trabalhar para eles. Andava sempre a convidar e eu dizia, não, não quero fazer aquilo que vocês estão a fazer e tal. Numa das reuniões eu disse, só se for para fazer aquilo que eu quero fazer. então ele disse está bem, pode ser. Havia um bairro que não conseguiam trabalhar que estavam com muita dificuldade e eles disseram e então se for nesse bairro. Eu disse está bem. Então a minha ideia era usar as artes como ferramenta para alavancar o potencial dos jovens, então era música, teatro e dança, eram as três ferramentas. Eu tinha a vantagem de eles me conhecerem como artista e eu se organizasse alguma coisa eles iam querer fazer. Como muitos desses jovens estavam com um percurso muito complicado, seria uma boa forma de puxá-los para um assunto que lhes interessa. Então eu, a kuero lis bond que é uma pianista inglesa, e juntei também um duo, um baterista, um músico, Dalton Borralho que também é ator. Juntei assim esse grupo e disse bora lá montar aqui qualquer coisa com estes jovens. Comecei no inicio sozinho a trabalhar um conceito que é o teatro fórum, para que eles ganhassem confiança com os exercícios, e depois consegui que eles acreditassem que eles eram capazes de escrever um guião de um espetáculo. Começamos a escrever o guião do zero, ou seja, sem nada, e eles a decidirem o que é que gostariam de falar. O que eles decidiram fazer foi falar sobre o outro lado do bairro. Eles diziam que os média, tudo o que saia sobre o bairro deles era muito negativo, e que eles sabiam que lá dentro estavam a acontecer coisas extraordinárias como entreajuda, portas abertas, festas, momentos de dor em que toda a gente se junta e que isso não estava espelhado, esse lado humano não estava espelhado. Então montamos a peça chamada “o outro lao do bairro” que na verdade é um musical que tem música, teatro e dança, que espelhava a história daquele bairro, mas dum ponto de vista completamente novo. Foi isso que nós fizemos, isso levou a uma apresentação num campo de futebol para toda a comunidade. Toda a comunidade veio ver. Depois levamos a peça para “recreios da Amadora” que é um sitio simbólico em termos de espetáculos na cidade da Amadora. Isso era muito importante porque havia esta imagem negativa deles e do bairro deles e de repente eles estão num palco, sabes, e a cidade foi ver. Isso foi muito bom para o bairro deles, mas também para aquilo que era o propósito de mostrarem o outro lado do bairro. Depois dali fomos para o teatro Maria Matos em Lisboa. Primeira vez em Lisboa, num palco também muito bom. Estou lá e depois surgiram convites para ir para a Holanda para um dos festivais de arte urbana chamado “the urban art” e ali foi interessante o convite para o festival porque já era a segunda ou terceira geração de caboverdianos nascidos na Holanda que se encontravam com a geração nascida cá em Portugal. Montamos uma sambola, ou seja, cada um levou a sua performance e depois criaram uma performance original. Foi brutal… então a televisão Holandesa foi, os holandeses caboverdianos foram, foi assim, sabes, uma coisa cheia. Depois de lá fomos para Londres para um intercambio de descendentes de jamaicanos das Caraíbas e eles, e a ideia era cruzar as culturas. Então eles ensinaram o silvano que são aquelas marimbas dos carnavais da Jamaica e os nossos ensinaram batuque, capoeira e depois montaram uma performance no conjunto que foi perfeito.
Voltando um bocadinho atrás, falar um bocadinho mais no percurso escolar, quais eram as tuas disciplinas favoritas e aquelas que menos gostavas?
Em que altura?
Tudo?
Quando eu estava no curso de artes e design, eu adorava as aulas de artes, porque tinha um professor que era conhecido, era um pintor de renome. E ele gostava de alguma rebeldia que eu tinha. Quando estava… ah vamos pintar e… umas rosas… e eu porquê rosas… e ele gostava disso, embora ele não demonstrava ali, ele gostava muito disso. Eu gostei muito da disciplina pela liberdade criativa que eu tinha na disciplina e também porque ele era muito inspirador e as nossas aulas eram completamente diferentes de todas as outras aulas, tínhamos sempre música durante os momentos de criação, havia sempre alguma coisa de diferente. Eu gostava disso. Depois das outras… eu gostava de português também, sim, tinha boas notas. Gostava de inglês, também tinha boas notas. Francês também gostava… depois quando cresci comecei a gostar mais e lamentei não ter estudado mais francês, mas também gostava muito de inglês e andava assim… Matemática houve fases, havia anos que eu gostava imenso de matemática e como percebia as coisas achava fantástico, depois havia anos que fogo, não percebo nada disto e andava ali entre o 2 e o 3, andávamos todos, e tinha uma professora que era muito sisuda, focada nos números e não criava empatia e curiosamente há um mês atrás cruzei-me com ela… isto foi no 7.º ano… encontrámo-nos, ela estava igualzinha, eu disse, professora…ela ficou assim a olhar para mim… foi engraçado. Eu não gostei das aulas dela, achava-a muito sisuda, ela percebia muito daquilo, mas não conseguia passar. Depois as outras disciplinas eu estava bem com tudo, sabes. Gostava de educação física também. Depois na licenciatura adorava o inglês porque tinha notas muito altas, por causa das minhas maluquices, quando havia trabalhos para fazer era muito criativo nos trabalhos e eu lembro-me que nós tínhamos um professor que acho que foi adotado por uma família inglesa em Inglaterra, então era português e tinha a escola toda de inglês, então ele era muito exigente. Toda a gente sabia disso e tinham 12, 13, 14 e eu num trabalho com ele tive 19. Toda a universidade soube. Houve um fenómeno interessante, eu era aluno da noite, alunos do dia mudaram-se para a noite para ver se conseguiam subir as notas, foi hilariante. Gostei disso, de valorizarem isso. Gostava também de uma disciplina que tínhamos que era história da língua portuguesa, porque era um professor fantástico, chamado João Louro que me permitia ser criativo até onde eu quisesse e valorizava isso, então eu também gostava muito da cadeira dele. Eu acho que muitas das cadeiras que eu gostava tinha a haver com o professor, ás vezes com o assunto que se dava. Depois tinha cadeiras que eu não gostava por causa dos professores. Por exemplo o grande reitor da universidade dava uma das cadeiras que era linguística portuguesa que era uma coisa… tínhamos cartões e eram sempre… todos os anos… já estavam amarelos, ele dizia aquilo e era aquilo que tinhas que colocar num teste, se virasses qualquer coisa não tinhas positiva. Eu detestava esse estilo de ensino, então eu comecei a fazer uma coisa, levava um gravador para as aulas dele, metia a gravar e depois passava as aulas. Assim comecei a ter notas porreiras porque tinha de ser exatamente aquilo que ele dizia, ele até dizia, oiçam isto, prestem atenção, depois começava, ta, ta, ta… Eh pá, era uma seca, então não gostava tanto. Depois no mestrado gostei de tudo. Havia cadeiras muito difíceis, técnicas, mas… eu entendi porque tinha de ser assim, não era as que me davam mais prazer, mas entendia e eu escolhei aquele mestrado por causa das cadeiras que tinha, portanto estava feliz.
E em relação ao ambiente e às condições da escola?
Olha, onde eu tive melhores condições foi sem dúvida no King’s College porque tens… a autónoma, tinha um ambiente muito fixe, camaradagem… primeiro porque era uma turma de noite e o pessoal era mais velho e as conversas não eram tolas, eram coisas interessantes e acho que a faculdade tinha boas condições. As propinas eram caras, mas eu acho que o ambiente era bom, era um sitio central em lisboa. Eu nunca fui muito de me ligar às associações de estudantes, embora eu mandasse sempre os meus bitaites e tal, mas eu nunca me liguei a esse tipo de coisas, mas gostava do ambiente e participava naquilo tudo que houvesse para fazer. Os ambientes melhores em termos de qualidade, foi sem dúvida em Inglaterra e autónoma.
E a primária, a secundária…
A primária… olha, eu cresci num ambiente onde eu não tinha muito a referencia de miúdos negros à minha volta porque nós vivíamos num sitio onde não tinha comunidade africana e a escola era o sitio onde eu ia conhecer a diversidade… não sei se estou a responder à tua pergunta que era…
O ambiente na escola e as condições?
As condições ainda. Acho que… por exemplo, na primária não havia assim grandes condições, mas havia… para mim foi um encontro com a diversidade, com outros. Encontrei alunos que tinham acabado de chegar de cabo verde e para mim era interessante estar esse tipo de contacto. Eu não sinto que a escola promovesse isso, isso era uma coisa que estava a acontecer e que a escola não sabia como lidar com essa diversidade também. Não sei se respondi à tua pergunta…
Se calhar já volto a isso.
Está bem.
Em termos ainda de escola primária…
Querias falar mais da escola primária, não é?
Em termos de professores, da relação com os alunos, alguma vez sentiste que isso influenciava o teu percurso?
Sim, acho que a forma como os professores valorizavam alguma coisa que eu tinha, para mim é a forma como vou ter a melhor performance. Eu lembro-me não na primária, mas no mestrado quando eu estava a fazer, eu queria fazer aquele mestrado e pronto, mas não tinha grandes ambições. Mas eu lembro-me quando fui apresentar o tema da minha tese à professora que ia ser minha orientadora Jane Johnson, ela ouviu o tema, disse: vamos trabalhar juntos, mas isto é para ter uma distinção, não é? E eu ups… não tinha pensado nisso. Sabes… o termo de distinção no estrangeiro não me passava pela cabeça. Um aluno estrangeiro, estou lá, quero é fazer isto. Isso plantou uma semente muito importante em mim que foi essa possibilidade, alguém ver essa possibilidade e consegui, mas só porque isso foi plantado, porque isso não estava nos meus objetivos. Eu acho que funciono muito assim, se houve disciplinas que eu tive notas boas teve muito a ver com o eu gostar ou então alguém plantou alguma coisa. Aí está a importância dos modelos e das pessoas.
Quem te influenciou mais a prosseguir estudos?
A estudar?
Sim?
Acho que talvez tenha sido o meu pai porque nós em casa tínhamos sempre muitos livros e ele foi sempre tido como alguém que estudava e tinha conhecimento. Eu acho que havia dos amigos dos meus pais essa expetativa também de que os filhos dele iam ser também. Depois o meu pai fez uma coisa que é estranha, eu e o meu primo passamos por isso e não é fácil, antes de irmos para a primária ele colocou-nos a estudar as matérias, a tabuada. Então eu lembro-me que eu entrei para a escola com 6 anos, mas eu com 5 anos eu já sabia a tabuada e eu já saia escrever. Isto era assim, era hora de almoço, acabamos de almoçar, o pessoal levantava a mesa e eu pegava na tabuada e chamava ele. E tinha uma régua, quando a gente falhava levávamos na mão, lembro-me disso. Não concordo com o método, e ele sabe que eu não concordo, mas sem duvida que isso deu vantagem para eu na primária estar… por isso é que na 4.º classe a mim não me fez mossa porque eu percebi que não era porque eu não sabia, era porque não estive lá. Mas sem dúvida que isso foi uma vantagem, esse ambiente dos livros todos em casa, muitos debates em casa também, sobre politica e nós estávamos lá, íamos ouvindo essas coisas. Eu acho que sem dúvida que o meu teve essa influencia. Acho que sim.
Como é que eram os teus hábitos de estudo?
Os meus hábitos de estudo, ouve uma fase que eu era muito organizado, tinha o meu espaço, tinha os meus livros… eu sempre encontrei o meu tempo para estudar e ouve uma fase que estudava em casa, mas depois ouve uma grande parte da minha licenciatura que eu estudava na Gulbenkian, ia lá para os jardins e ficava lá. Depois houve uma fase que eu ia para um sitio que eu ia que era o Agora, no Cais do Sodré, eu e um outro amigo que estava a estudar sociologia na lusófona. Íamos sempre para lá, fins de semana estávamos lá sempre batidos a estudar. E sim, era sistemático o estudo. Eu percebia a importância…eu fazia uma coisa que era passar cadernos e eu fazia imenso isso. Como gravava levava o tempo a passar cadernos. Isso era um exercício que refrescava a memória, refrescava o que se tinha passado na aula, estava atento e percebia o flow das aulas e para mim foi uma vantagem.
Chegaste a ter bolsa em alguma situação?
Tive. Tive, na licenciatura acho que tive um ano ou dois de bolsa. Sim.
Como é que chegaste à bolsa?
Foi assim, foi engraçado. Quando eu decidi estudar, foi assim uma coisa tão… eu lembro-me que o pai da minha namorada fez questão de querer patrocinar o meu primeiro ano. Eu lembro-me de estar na Suíça em Zurique num jantar e ele muito seleto que ele era um advogado, ainda é, tipo daqueles grandes internacionais que representava a coca cola. Ele dizia, o que queres fazer da tua vida, queres tocar piano… eu disse: entrei naquela faculdade e senti… ele disse: então vou ser o teu sponcer. Eu disse: não é preciso, mas ele disse: faço questão. E ele, acho que foi praticamente o ano todo, foi o meu sponcer, patrocinou o meu primeiro ano e eu disse: espere lá eu quero pagar e posso pagar. Na altura eu disse vamos ver o que há, e comecei a ver e vi que havia bolsa e que eu podia candidatar-me e candidatei-me. Foi mesmo isso.
Quando é que achaste que de alguma forma ias seguir a área que seguiste?
Esta área que eu estou agora?
Sim.
Isto, o meu envolvimento comunitário com o lado social, começou por acaso. Primeiro porque na altura nenhum bairro onde eu vivi, vivi em bairros que não havia referências. Os modelos eram… o padre, o catequista, sabes… faltava… para os jovens faltavam referencias e eu comecei a inventar coisas, a organizar jogos de futebol e não sei o quê. Por causa disso, acho que me convidaram, havia uma bolsa de um ano para estagiários na área de educadores de infância e era para trabalhar com crianças. Chamaram-me e disseram não queres esta bolsa, andas aí a fazer coisa. Eu aceitei e fui trabalhar um ano como tipo de estagiário de educadores de infância, num projeto já profissional e eu estava com eles. Eram de 3, 4 anos e eh pá, adorei estar a trabalhar com eles, crianças pequenas. Depois na altura havia um tipo que já deves ter ouvido falar Mário Andrade que era tipo uma personagem da área social das associações e tinha uma associação nas Fontainhas que era a associação Unidos de Cabo Verde e ele estava com um prolema grave que a maior parte dos miúdos daquele bairro estavam a ter notas muito más e faltavam muito. Ele teve a ideia maluca de dizer: se eles andam a faltar ás aulas para ir para a escola, vamos meter a escola dentro do bairro. Então ele decidiu fazer a escola dentro do bairro porque seria uma forma de pressão dos pais e familiares: olha, está na hora da escola, não podes faltar, e toda a gente sabia. O problema é que faltava professores e ele convidou as professoras originais deles para irem dar aulas lá. A maior parte não aceitou e houve umas duas ou três que aceitaram, mas faltava e ninguém queria dar matemática. Faltava alguém de matemática. O Mário como soube que eu estava como estagiário lá e sabia que eu tinha tido esta banda e não sei o quê, ele disse, se eles gostam da tua música, tu podes dar matemática, porque é mais fácil. Eu disse: mas matemática não é o assunto que mais me interessa. Ele disse: mas isto é ao nível do 5.º ano e não sei o quê. E foi assim que eu entrei, fui dar aulas de matemática dentro do bairro com esse conjunto de professores. Logo no primeiro dia foi um desastre porque eles queriam lá saber e porque no primeiro dia foi o dia da transformação, porque estavam todos a falar crioulo entre eles e eles estavam naquela que é uma forma de criar separação, então eu comecei a falar crioulo e dar aula em crioulo, então eles pararam e no segundo dia… eles eram 25 e no segundo dia tinha 50 pessoas, os pais deles, estavas a ensinar matemática em crioulo. Então foi assim que eu comecei. Depois daí fiz vários programas internacionais onde eu era formador de disciplinas da área de informática, de teatro, um ano letivo de teatro, sempre com este tipo de públicos. E foi um bocado assim que eu entrei na área social.
E a parte musical, conta-me um bocadinho como é que foi?
Foi, foi, foi… eu já ouvia muita música em casa, já tinha muitos discos e também colecionava coisas. Quando me mudei e fui viver para um outro bairro onde conheci o Melodi, e… pronto, eu tinha muitos discos, ele tinha muitos discos e começamos a falar e na altura o hip hop estava a começar, quase ninguém conhecia, não ouvia e nós eramos os malucos que andávamos a ouvir hip hop. Foi assim, começamos a ouvir os discos e porque não fazer. Eu lembro-me do primeiro Rap que eu escrevi e depois muito rapidamente conhecemos um DJ e que era famoso e tocava na noite africana e ele começou a dizer: e se nós fossemos tocar os nosso RAPs na discoteca onde eu estou a trabalhar. Na altura o pessoal queria era dançar quizombas e não sei o quê. Ele de repente no meio da noite dizia: agora os meus amigos e a minha banda vai tocar. Mas era Rap para pessoal todo: fogo e não sei o quê, estás a estragar a festa. Era muito giro, mas havia sempre uma ou duas pessoas que tinha estado no estrangeiro e que dizia: eh pá, vocês estão a fazer uma coisa espetacular, isso é Rap eu já ouvi. Começamos assim. Depois começamos a melhorar. Ensaiávamos todos os dias e eu escrevia letras todos os dias. Isso fez com que facilmente crescêssemos como artistas, como grupo e a confiança em palco também se via porque tivemos sempre aquela experiência que tocavas uma música que ninguém queria ouvir, então isso dá-te calo. O facto desse DJ estar sempre a mudar de discoteca deu-nos também uma grande estaleca para perceber o que é que funciona, o que é que não funciona. Dai até ter os hits foi rápido, surgiu a oportunidade de gravar o República e pronto começamos a tocar em todo o lado e começamos a fazer uma coisa que poucos fazíamos que era quisemos tocar mesmo com músicos profissionais que era uma fase em que o Rap era uma caixa de ritmos, um GMC e um DJ. E nós dissemos, nós queremos ter uma banda, então tínhamos músicos de renome, conceituados, que estavam a tocar com putos que eramos nós. Foi uma grande aprendizagem. Nós é que eramos os patrões, ou seja, nós é que pagávamos a eles, era assim uma coisa de doidos. Mas deu-nos uma grande aprendizagem e imensa confiança. E foi um bocado assim que começamos na música. (Fim da 1.º parte)
Com que idade começaste a trabalhar remuneradamente? (inicio da 2.º parte)
Foi esse estágio que eu fiz nessa associação como estagiário e na área de educação de infância, foi isso. A primeira vez como trabalho. Porque sempre que nós tocávamos nós ganhávamos, então eu já fazia dinheiro nessa altura. Então esse é um trabalho mais tradicional. O estágio mais tradicional que sim, pagavam-me. Eu só estava de manhã, era tipo part-time. Foi assim o meu primeiro trabalho tradicional pago.
Tinhas que idade, mais ou menos?
17 anos, para aí.
E a música começaste com que idade?
Menos, para aí com 14, 15 anos.
Depois desse trabalho tiveste mais algum?
Depois desse trabalho fui fazer esse projeto de matemática que era inserido num programa europeu que era o Urban e era pago também. Fiz um outro temem como professor e formador de informática, voltei a dar matemática neste mesmo projeto. Depois a diretora desse programa foi convidada para ser diretora do IPJ e passou muito tempo a tentar convidar-me para lá, só que como eu gostava muito de música, abriu uma loja de discos em lisboa, maior que era a Virgin Megastor, e eu e o Didi da minha banda dissemos: isto é para nós, nós adoramos música e nós vamos meter os discos todos que nós queremos, o que nós precisamos é arranjar uma maneira de ir para lá trabalhar. Na altura, tinha saído um anuncio que eles estavam a precisar de gente para, nós não percebemos o que aquilo era para fazer, mas precisavam de gente para fazer qualquer coisa. Inscrevemo-nos e entramos, e aquilo que era para fazer era para plastificar CD, então os CD vinham e era uma máquina com um plástico longo e tu metias lá o CD e aquilo fazia assim o quadrado do CD e plastificava e depois tiravas, tinhas de fazer um a um. Era esse o nosso trabalho. Estávamos lá na cave, o chefe era um espanhol que já havia uma Virgin em Espanha e então ele veio para ajudar a montar a Virgin em Portugal. Estávamos lá e estávamos… estes discos e não sei o quê, o que era fixe era nós trabalharmos aqui. Depois houve um dia que nós dissemos ao chefe, nós percebemos imenso de Arem B e Hip Hop. Então ele disse: aí é. Dissemos: sim. Ele diz: então venham falar comigo. Então ele entrevistou-nos um a um e cometeu o erro crasso de me perguntar então que bandas é que conheces e eu, pin, pin, pin. Então diz: tu vais trabalhar para ali. Pronto e foi assim, que fui trabalhar para a Virgin. Conheci o Richard Branson, Brian Adams e milhares de artistas que passaram por lá, porque os artistas quando visitavam Portugal iam sempre à Virgin, porque a Virgin dava sempre os discos que eles quisessem. Eles levavam os guarda costas e andavam só a apontar, este e este. Levavam uma data de CD. Então nós conhecíamos os artistas assim, e eles tinham de ir às nossas secções e foi assim. Então esse foi um dos meus trabalhos e fiz isso enquanto estava a fazer a faculdade. Por isso estava lá de dia e depois ia… depois abriu a concorrência, que foi a FNAC e a FNAC quando abriu… a Virgin estava situada à saída do metro dos restauradores, onde era a loja do cidadão. E a FNAC a primeira campanha da FNAC começava nas escadas da saída do metro, para entrar na Virgin. A FNAC não sei o quê e a gente isto é brutal. Estava-se a publicitar o melhor serviço de sempre em livros e discos, o melhor atendimento de sempre. Eu fiquei, era fixe era trabalhar lá, eles parecem profissionais e não sei o quê. Então o Didi foi primeiro a ir para lá, depois o patrão da FNAC ouviu falar de mim e veio perguntar-me se eu queria, ofereceram-me condições melhores e eu puf, fui trabalhar para a FNAC. Já estava numa fase em que já estava farto de discos, nós conhecíamos muita gente, milhares e milhares de artistas. Gente que vinha de Angola e ia diretamente à Virgin ou à FNAC, e como conhecíamos muitos artistas e muitos discos, tínhamos pessoas que vinham ter connosco e perguntavam que discos é que deviam levar e levavam esses discos. Compravam 100 discos, 50 discos. Se nós disséssemos eles levavam. Era muito interessante essa confiança e até hoje há pessoas que veem ter comigo e dizem, foste tu que me mostraste Bob Dylan, não me esqueço disso, isso é para a vida. Coisas assim. Eu gostava desse aspeto. Depois em termos de atendimento nós evoluímos muito, aprendemos muito em termos de atendimento ao cliente, mas nessa altura já estava a sentir que era um desperdício de estar a trabalhar em lojas de discos apesar de eu gostar muito. Foi aí que essa diretora disse, tu não podes estar, tu tens de vir para aqui para o IPJ e mudei-me, despedi-me… não, pedi uma licença sem vencimento que era uma coisa que a FNAC raramente dava e eles deram-me. Foi assim giro. Fui um ano trabalhar para o IPJ e adorei, percebi que era… e fui ganhar tipo o triplo que ganhava na FNAC também. Estava no Estado, ou seja, era um salto grande. Então é assim, são esses trabalhos iniciais que fui sendo pago, no IPJ também. Depois no IPJ foi o salto, fui convidado para ir para o programa Escolhas, que coloquei aquelas condições e eles aceitaram, também era pago e depois de… quando fui para Londres com aquele grupo de jovens eu percebo o potencial que tinha e as coisas que poderia fazer. Então aí pensei logo em fazer esse mestrado lá no Kings College e também como tinha de trabalhar, candidatei-me logo a partir de Portugal, porque Londres tem essa possibilidade, os anúncios estão on-line e dizem o que precisam, e candidatei-me para um sitio que eu estava a pensar que era em Londres e não era Essex então quando cheguei ao aeroporto é que eu vi que aquilo… e a minha entrevista era nesse dia, eh pá esta porcaria é longe, tinha de apanhar o autocarro e não sei o quê. Então cheguei tarde para a entrevista, cheguei tipo 2 horas depois à entrevista, em Essex, para trabalhar com jovens e era uma cidade que eram todos metaleiros e góticos e eu, fogo o que é que eu fiz. Eles perceberam, entrevistaram-me e mostraram-me tudo, só que era tudo metálico e perguntaram-me o que é que pretende fazer e eu não sei. Então isso não funcionou, não consegui, era fora e não fiquei. Depois candidatei-me para um outro trabalho que era o parlamento dos jovens que tinha sido uma iniciativa do governo inglês, de todos os partidos, era consensual, porque houve uma entrevista de um politico que estava a falar em nome dos jovens e disse: agora vamos fazer isto pelos jovens e eu entendo o que é que os jovens querem, e houve um jovem, no meio da multidão que disse, o que vocês deviam fazer era ensinarmos a serem políticos para a gente saber realmente o que é que é isso de decidir. Isso foi confirmado pela BBC e começou a correr. Então os partidos todos disseram nós temos de fazer alguma coisa e colocar um orçamento elevado e uma decisão que todas as camaras municipais deveriam ter um parlamento dos jovens. Eu candidatei-me para ser coordenador de um parlamento dos jovens em Hackney que era um dos concelhos assim mais complicados de Londres. Candidatei-me, mas naquela, olha vamos ver o que isto dá. Aquilo tem um processo tu envias a candidatura e depois eles selecionam as cinco melhores e os cinco melhores é que são convidados para a entrevista. Eu fui, na primeira entrevista tinha sido entrevistado pelos diretores e pronto achei que correu bem e ia-me embora e eles dizem, você não se vai embora ainda, e eu, então o que é que falta, tem de ir para a outra sala. Então na outra sala estavam 10 jovens que me iam entrevistar, que tinham o seu leque de perguntas, ta, ta, ta, como é que vais fazer isto, e como é que vais fazer aquilo. Terminei esta entrevista ia-me embora e eles disseram, não, ainda não te vais embora porque à tarde vão haver uma outra parte da entrevista e eu disse: ok. A parte da tarde era todos os diretores, todos os jovens assim em circulo e no meio os cinco finalistas. Na mesa estava um tópico de debate, um tema politico da atualidade inglesa para nós debatermos entre nós. E eu disse, olha morri porque eu não faço ideia do que se passa aqui ao nível politico e os meus colegas eram todos ingleses e haviam dois que eram de lá, daquele concelho. Eu disse, o que eu vou fazer é dizer o que eu acho, porque eu não sei o que se passa, mas dou a minha opinião. E pronto, morri, mas digo o que eu acho. Foi assim. Depois fui para casa e uma semana depois ligaram-me a dizer que eu consegui o trabalho. Foi assim tipo… foi muito fixe e foi uma grande experiência para mim montar o parlamento de jovens, porque tinha de ser… inclusive ter representatividade de tudo, desde os grupos de ciganos, aos judeus, jamaicanos, tudo. Tudo tinha de ter representação no parlamento. Depois muita formação também, dar muita formação, foi uma experiência. Tinha um orçamento de 1000 libras para gerir, para distribuir por projetos. Tinha encontros nacionais. Cada concelho tinha um parlamento, mas depois havia um supra anual em que todos os representantes de todos os parlamentos iam, uma coisa assim grande. Era muito bem pago. Depois dessa experiência eu percebi que havia um sistema de estrelas nas camaras, e cada camara tinha um determinado grupo de estrelas de acordo com a sua performance e eu disse conheço duas estrelas e eu quero estar no sitio de quatro estrelas, para ver como é que é. Porque a minha ida para londres era um bocado de frustração de como a área social funcionava cá, o mesmo ram, ram de sempre, os mesmos técnicos e não sei o quê. Eu queria mais algo, e londres estava com essas novidades, então eu estive dois anos em Hackney e depois disse que me ia embora e depois eles fizeram um grande escabeche, disseram: o que foi, o que precisas. Os recursos humanos reuniram comigo não sei quantas vezes, propuseram-me o aumento, 5000 libras de salário e não sei o quê. Eu não aceitei porque queria sair, porque queria trabalhar em camara Camden, o único que era quatro estrelas. Então andei à espera da oportunidade e surgiu uma oportunidade em Camden para ser coordenador de um projeto que era o unic oportunite free que era dinheiro, muito dinheiro para os jovens gerirem e decidirem o que deveria ser feito. Mais uma vez os jovens disseram, isso é muito bom ter os new workers que eram os profissionais que trabalham com jovens a decidir que atividades nós vamos fazer, mas eles tipo, a maior parte das vezes, eles não sabem o que nós gostamos, nós é que sabemos o que nós gostamos, porque que que em vez de estarem a dar a eles para gerirem e não nos dão a nós? Nós sabemos as atividades que funcionam. Então foi assim as oportunity free. Eu estava a gerir 340 mil libras por ano, para ser distribuídos por projetos de jovens e tinha que formar e capacitar um grupo de jovens para decidir sobre esses financiamentos. Como se fosse uma fundação que gerisse esses dinheiros, surgiam candidaturas, avaliavam essas candidaturas, tomavam decisões sore elas, e decidiam se iam financiar ou não iam financiar. E nós inovamos muito nesse sistema de avaliação e o sistema de quando o painel tomava uma decisão negativa havia a possibilidade de tu reclamares sobre essa decisão, porque cada candidatura que não era aprovada recebia uma carta a explicar os pontos de porque é que não foi aprovada. Essa era a primeira inovação. A segunda era a possibilidade da pessoa, o projeto que recebeu nega poder fazer um appeal e vir ao pé dela e apresentar porque é que não concorda e o painel reunia-se com eles e explicava as suas razões. Isso era uma inovação porque não havia essa prática. E a terceira inovação foi as visitas de acompanhamento, ou seja, nós financiávamos projetos, mas depois íamos visitar os projetos para vermos como estavam a correr. E isso não acontecia. Então o governo inglês começou a publicar coisas a dizer que nós eramos o exemplo de boas práticas e produziu um livro de boas práticas em que estávamos lá nós nesse modelo. A partir daí todas as camaras passaram a vir a Camden, os coordenadores a virem, como é que vocês montaram isto, como é que fazem isto? Então comecei a passar um bocado essa ferramenta. Os nossos jovens começaram a ser chamados pelos vereadores que geriam milhões para estarem em painéis para decidirem sobre financiamento. Foi brutal. Depois eu decidi enviar dois para uma formação que era só para fundações. As grandes fundações tinham formação de como criar sistemas de candidaturas, como avaliar e eu disse: vocês vão perceber como eles estão a fazer. Os dois quando voltaram passaram-se da cabeça, disseram: tu não imaginas o que é que aconteceu? Diz, mas o que é que aconteceu? Então ele disse que a meio da formação um deles começou a falar da experiência Camden e que o formador disse: tu é que devias estar aqui a dar esta formação, então eles vieram…sabes, assim. Foi maravilhoso perceber que o trabalho que estávamos a fazer era bom e tinha qualidade. Camden teve muito reconhecimento e ouve um prémio chamado epic word, special live in Camden, é um prémio de distinção e que eu disse, vou candidatar e vou ver o que se passa e eles ganharam. Foi brutal. Então essa foi a minha experiência em Camden. Muito boa. Depois foi um bocado aquela coisa de estou aqui há 5 anos, estou a aprender isto tudo, as ferramentas todas e não estou a ajudar Portugal, não estou a ajudar o pessoal que podia beneficiar destas coisas e o regresso foi um bocado… Eu vinha com N projetos, N projetos que eu queria fazer cá e não queria trabalhar para ninguém e não sei o quê. Quando regressei eu estava com algum receio, um que estas metodologias e ideias todas não fossem recebidas bem pelas as associações portuguesas e as organizações e outra vens com estas ideias todas, fantástico, ajuda-nos, tinha essas duas possibilidades e quando decidi voltar tive três propostas de trabalho antes de chegar cá. Era a fundação Aga Khan, o programa Escolhas outra vez e uma organização chamada TESE de inovação social. Então andamos ali vários dias a negociar, meses, e depois decidi ir trabalhar para a TESE, para lançar um projeto americano chamado do something, para jovens, de voluntariado. O projeto era o maior projeto de sucesso da América, de voluntariado juvenil, eles tinham um web site que permitia aos jovens escolher a causa que lhe interessa, quanto tempo quer dedicar à causa, onde quero fazer, com quem quero fazer, e quanto tempo queria dedicar a isso, e depois faziam marcos de organizações que tinham oportunidades de voluntariado de acordo com aquilo que ele escolheu. Ele fazia isso tudo on-line, mas o voluntariado era offline, no terreno. Depois tinha um sistema de campanhas por causas, as grandes marcas patrocinavam uma campanha e era o programa que fazia o programa, desenhava a campanha toda, para lançar na net ou no terreno. Por exemplo, uma das campanhas que se fez nos Estados Unidos foi como havia muitos sem abrigo eles fizeram uma campanha de recolha de calças de ganga. Então os jovens, eram patrocinados pela Denim, e os jovens eram desafiados a recolherem calças que não precisassem e colocar num grande contentor nas suas escolas e depois havia uma carrinha que ia buscar ou então iam entregar na loja da Denim de roupa. Isso tudo era junto e era distribuído pelos sem abrigo que tivessem necessidade. Então eu vim para lançar esse projeto cá, quando regressei, então estive a trabalhar nisso, também foi outro trabalho que eu tive. Coordenar, tive o lançamento com um toor pelo país todo, numa carrinha pão de forma, por festivais, praias, fazia uma série de coisas. Tive na televisão num programa que é o… num programa da SIC que é logo de manhã, estás a ver aqueles programas que é tipo… têm uma parte que é tipo noticias e depois Têm outra parte que eles entrevistam uma pessoa só numa cadeira, assim tipo da SIC. Então eu fui a isso em prime time, a ser entrevistado e falar do projeto, do something e lançar o apelo. Foi uma experiência boa, foi logo no inicio da campanha. Então tive um ano nisso e depois um dos principais financiadores do something era a fundação EDP e eu conheci o diretor e disse que não estava muito satisfeito, já estava um bocado… então ele disse: vens trabalhar para a Fundação EDP. E eu disse, yes. Então eles tinham uma ideia que não sabiam exatamente como executar que tem a haver com a nossa conversa, que é a fundação como organização financiava muitas organizações, dava-lhes dinheiro, mas percebia que no mesmo território elas não comunicavam entre si e não colaboravam. Todas recebiam financiamento, escreviam relatório do projeto, grandes resultados, mas eles quando viam de cima, viam essas organizações no mesmo território e nunca nenhuma mencionava a outra, ou uma colaboração com a outra. Então tiveram este conceito de criarem um up de inovação social um local onde o programa tinha como objetivo juntar essas organizações e colocá-las a trabalhar com a premissa de que forma a colaboração entre organizações produzia o tal impacto dentro do bairro onde estamos. Então eu estive nesse projeto, a coordenar isso e a gerir e meter o pessoal todo a falar entre si, e a meter os mecanismos de colaboração, muita inovação, dei muita formação, trazer ferramentas novas também de outros países. Então fiz isso uns 4 anos, para aí, na Fundação EDP.
E depois?
E depois… e depois, eu fiz uma formação chamada numa metodologia chamada dragon dreaming tem a ver com transformações em projetos sustentáveis e projetos colaborativos. Fiz um curso introdutório e depois fiz uma formação mais intensiva na Alemanha, para ser formador e a minha cabeça mudou. Eu comecei a questionar os valores da fundação, quanto dinheiro tem, como é que… coincide com os meus valores e com aquilo que eu quero fazer. Ganhava muito bem e decidi despedi-me. E foi uma grande confusão… eles passaram-se da cabeça porque são a instituição que são, são a maior empresa portuguesa e de repente alguém que está lá dentro e quer-se despedir, o que é que aconteceu, os diretores todos, estás maluco. Mais uma vez um role de reuniões e reuniões, porque é que tu queres sair e não sei o quê. Renegociação de salários. E eu não fiquei e decidi sair e eu não tinha nada. Sai e não tinha plano B e o plano B era eu trabalhar por minha conta. Eles perguntaram-me: o que é que ti vais fazer? Eu disse: vou ser consultor. Então eles disseram: se vais ser consultor, vais ser consultor para nós. E eu, está bem, desde que eu seja consultor, desde que eu não esteja debaixo da vossa alçada, eu sou independente e faço consultoria. Então durante um ano eu fiz consultoria para a fundação EDP e há dois anos isso terminou e desde então tenho estado por minha conta, o que não tem sido fácil, porque como vês o meu percurso não tem esta coisa de repente estou sozinho e não tenho nenhuma estrutura e estou por mim. Estou também a aprender este mundo de ser independente, de pagar iva e essas coisas. Já tive a minha fase de pânico e agora, tenho de pagar estas contas e não está a acontecer como eu tinha pensado. Acho que agora estou mais em paz com isso. Agora eu continuo a não saber quando vai ser o meu próximo trabalho, mas em termos dos meus valores, do meu propósito daquilo que eu quero fazer, estou aceso.
E em relação à música, quando é que paraste e porquê?
Eu acho que foi um desacelerar, porque nós estávamos quase a gravar um disco como family e quando eu decidi ir estudar, reduzi muito a minha intensidade da música porque nós como te disse, durante 5 anos nós só fazíamos isso. Ensaiávamos todos os dias durante 5 anos. Escrevíamos sempre. Então é estaleca que fica sempre. Então o desacelerar disso também foi desafiante. O que eu comecei a fazer mais foi escrever para outros, nos meus tempos livres. E tenho feito isso até hoje. Tenho estado a escrever para outras canções, letras, colaborar… para as pessoas que eu gosto, tenho sido feliz também nisso. Gosto muito de trabalhar com o Melody porque nós fomos também colegas de banda e sempre tem uma canção minha, este ultimo agora também tem uma canção minha, sobre o dinheiro. risos Também sou grande fã e amigo da Sara Tavares, então temos estado a compor coisas. Há um tema que ela já está a cantar ao vivo, que eu também… que eu escrevi e que ela tem estado a tocar. Temos estado a colaborar desde então, a fazer canções juntos, fazer jame sations em casa ou no estúdio dela. Ás vezes é ela que trás um bocado de uma ideia e eu complemento, ou eu trago um conceito e ela diz é fixe, ás vezes… já aconteceu ela ter um convite e chamar-me para escrever como é o caso da Dina Medina, que é uma cantora que está na Holanda, nós fizemos uma canção também juntos sobre a brincadeira que está no último disco dela que saiu há umas semanas. Então tem sido bom, estar a lançar aquilo que tu gostas de fazer e estar a colaborar com artistas que tu gostas. Eu gosto muito do Beija Mendes e tem uma letra minha que eu não sabia que ele tinha musicado e ele um dia veio e disse: vê lá esta música. Eu já ouvi isso nalgum sitio. Foi uma letra que eu lhe dei nas primeiras vezes que nós nos conhecemos, já há muitos anos, para mim já nem me lembrava, ele fez aquilo, fixe. Também já fiz…ele por exemplo trazer uma ideia musical e eu dizer soa-me a este tipo de ritmo, a este bite. Ele dizer: eu quero esse bite. Então eu faço esse bite e envio. Então tem sido um privilégio de trabalhar com pessoas que eu admiro, com quem gosto de estar ligado. Dá-me imenso gozo de estar a pensar, continuo com esse hábito de escrever, de inventar canções. Ás vezes é muito fixe sai, outras vezes deixa-te estar quietinho. Mas… é esse o mundo que eu me vejo sempre, da criatividade, da inovação e a escrita de canções está lá sempre. Sabes… acho que preciso de fazer isso.
E pensas voltar aos palcos?
Ao palco… é assim, eu… eu tenho muita facilidade em estar em palco. Tipo, é a minha casa, sabes. Se tiver saudade, quando eu fizer uma canção que tenha uma grande pica de me meter num palco. Aí sim. Por enquanto, tenho boas canções, mas ainda não me fazem sair para entrar no palco. Eu sei que quando tiver essa vontade de entrar em palco, eu estou, então… para mim estar em palco, é estar com os meus amigos, com o pessoal que gosta e estarmos a mandar uma mensagem fixe para o pessoal e sentir que isso enche as medidas das pessoas, que crias momentos mágicos, crias possibilidades nas cabeças deles, esperança e magia. Quando tiver uma canção dessas quero estar num palco, sim.
Mudando um bocadinho de assunto, agora vamos falar de origens? Origem caboverdiana…
Sim.
Já estiveste em Cabo Verde?
Sim.
Qual foi a sensação?
Foi uma história curiosa. Quando nós gravamos o nosso primeiro hit era rádio em crioulo e nós tínhamos muito sucesso cá em Portugal, mas não sabíamos o que estava a acontecer em Cabo Verde. Nós chegamos a estar em primeiro lugar em Cabo Verde e nós eramos tão desleixados que não tínhamos vídeo. Então era um hit que cada vez que aparecia no número um no top, tinha só a imagem do disco. Vieram-nos dizer, pessoal que vinha de Cabo Verde, estão em primeiro lugar, vocês não sabem? Vocês têm que ir a Cabo Verde, o pessoal todo quer vos conhecer e não sei o quê. Então metemos na cabeça que queremos ir para Cabo Verde. Para mim também era um sonho porque ouvia os meus pais a falarem e queria muito ir. Então, o Didi disse assim: há uma coisa que acontece que é uns barcos que vêm de Cabo Verde para trazer mercadoria e atracam em lisboa e depois voltam. E eu: o que é que estás a pensar? Só demoram uma semana a chegar a Cabo Verde. Eu disse: como é que nós sabemos isso? No jornal vem sempre a que horas é que os barcos chegam e em que porto é que eles estão. O que a malta faz é, infiltramo-nos lá dentro e vamos para a cozinha descascar batatas até chegarmos lá. risos Então montamos esse plano e fomos ver nos jornais a que horas chegavam esses barcos e não sei o quê. Víamos que daqui a duas semanas chegava um barco e estávamos com o plano montado. O que é que aconteceu? Houve um tipo que era dono de uma discoteca africana que ligou-nos, chamava-se Emanuel, olha eu conheço o teu pai e criou aquela confiança e ele disse: olha estou a montar uma comitiva, porque o Gutierres vai visitar Cabo Verde, leva uma comitiva, o general, mais não sei quem, mais não sei quem, e eu quero montar uma comitiva a representar Cabo Verde com o Tito Paris, a Lura que na altura não era conhecida, mas tinha um tema que estava inserido lá em Cabo Verde e vocês. O quê nós? Sim, vocês. Então não fomos no barco.
E como é que esse plano resultou?
Então lá fomos nessa comitiva, com o Tito Paris que é um contador de anedotas nato e a Lura e fomos fazer um tour de espetáculos pela ilha de São Tiago, com algumas datas em estádios e foi assim que conheci Cabo Verde. Foi fantástico porque chegamos e fomos logo à televisão de Cabo Verde, foram biscar-nos ao aeroporto e entrevista e não sei o quê. Portanto foi brutal. Depois os concertos. Eu lembro-me que fomos à sumada a um campo de futebol onde fomos tocar e eu disse: fogo isto aqui é a terra da minha mãe e a minha avó… eu tenho de conhecer a minha avó e não sei o quê. Então estávamos a fazer o som check e eu baldei-me ao som check, sai para as ruas era de noite, eram para aí 9h da noite e íamos tocar ás 10h. Saí à rua e vi umas senhoras a vender coisas na rua e disse: olhe você conhece uma senhora chamada Marta. Marta? Sim, eu sou o neto dela. Mas és o neto dela? Sim, vim de Portugal e tal. Então vamos lá. Ele começou a dizer a toda a gente, este é o neto da Marta e não sei o quê. Então foi uma grande multidão comigo à casa da minha avó para eu conhece-la. Chego lá, grande multidão, Marta está aqui o teu neto que veio de Portugal. À noite. A minha avó sai: meu neto? Qual neto? És meu neto? Então senta-te. Eu sento-me quietinho e ela começa-me a fazer uma data de perguntas. Qual é o nome da tua mãe? Qual é o nome do teu pai? E eu tive de estar a responder aquilo tudo, tipo inquérito. Depois de responder aquilo tudo, ai meu neto. Depois vai-me buscar uma fotografia minha de bebé para aí com meses a dizer é a única foto tua que tenho é esta, como é que havia de saber e não sei quê. E foi assim. Depois convidei o pessoal todo para o concerto.
Em termos da ideia que tinhas antes de ires e o que encontraste?
Eu encontrei tipo uma capacidade de receber fantástica, porque nós andávamos nas ruas e encontrávamos pessoas e elas vinham falar connosco: de onde é que vocês vieram? Viemos de Portugal. Então vens almoçar a minha casa. Tipo… eu nunca vi esta pessoa antes e ela convida-me para ir almoçar a casa dela. Tens de vir comer à minha casa. Senti esse acolhimento das pessoas. Ficamos também numa casa, não ficamos num hotel, ficamos num apartamento onde estava também o Gil, estava o Tito, estava uma azafama, no piso de cima morava uma cantora dos sementeira. Então nós estávamos assim uau, isto é sensacional. Depois tínhamos sempre lá pessoal a bater à porta, fãs e não sei o quê. Foi muito bom, fomos muito bem acolhidos. O Zeca ofereceu a sala dele de ensaios, acompanhou-nos em todos os tours em todo o lado onde nós fomos. Foi do melhor em termos de acolhimento. Senti muito aquela vontade de sair de Cabo Verde, de conhecer a europa. À imenso pessoal que dizia leva-me contigo, quero sair daqui. Aquela coisa de sair. Senti muito isso. Nós andávamos muito na rua, então não estávamos num sitio protegido e em que só vemos os lados bons, andamos pelos bairros, fomos à praia, deu para ver muita coisa. Ainda ficamos uns doze dias em Cabo Verde. Portante foi bom, essa experiência foi boa.
E quais é que consideras que são as principais características do povo caboverdiano?
Eu acho que tem muitas. Tem esta coisa do rebelde, não papa grupos e não sei o quê, explode. Depois tem esta coisa do carinho, do receber bem, este lado do desenrasca, qualquer coisa dá para montar… é muito interessante o milho, em Cabo Verde, dá para cachupa, da para serem, fazes cuscuz, não é. Isso mostra a capacidade de com pouco fazer muito. Tens também um lado de ficar à espera, estamos aqui na rua sentados, tem isso, estamos à espera a ver o que acontece, tem esse lado também. Tem um lado também de muita entreajuda de comunidade, nós assistimos também a algum fenómeno de insegurança, principalmente na praia. Cuidado não vás ao mercado, está atento. Não sinto que isso seja o reflexo da sociedade caboverdiana. Muita musicalidade nas pessoas, qualquer pessoa pega num violão e diz qualquer coisa, ou conhece alguém que toca serenatas. O Tito então saia à rua e em todos os bares ia tocar uma música, cantava uma canção. Eu andava sempre com o Tito então andávamos aí. Eu acho que o povo caboverdiano tem isso, essas coisas todas, essa diversidade. Como tem essa diversidade de ilhas, não dá para dizer que é uma coisa só do povo caboverdiano. Cada ilha tem várias características que tu vais aprendendo, que faz as identidades do povo caboverdiano. A coisa que mais lamento é esta divisão dos sotaventos e barlaventos e não se chegar a conclusão qual é o crioulo que fica. Isso entristece-me muito, deixa-me, aborrece-me.
Com o que é que te idênticas mais do povo caboverdiano?
Eu acho que pelo lado criativo sem dúvida. Criativo de criar arte, mas criativo também de ver possibilidades de tentar com pouco fazer muito. De alguma rebeldia de não conformismo. Sabes que Cabo Verde tens estas duas coisas ao mesmo tempo, tem aquelas pessoas que não se conformam, vão à luta, vão vender o que for preciso, reviram o mundo se for preciso, depois tem aqueles conformistas, a vida é assim estamos cá nesta vidinha. Eu revejo-me mais neste lado de vamos lá fazer coisas. É curioso porque a minha educação foi bilíngue, porque os meus pais tinham uma casa num prédio, eles alugavam a casa toda, era uma casa muito grande e a dona daquela casa era uma senhora que tinha para aí 60 anos e estava lá sozinha e tinha aquele casarão todo, então eu cresci nessa casa e ela ficava com uma parte da casa. Aquilo era tão grande que dava para separar a casa dessa forma. Desde que nasci eu tive duas avós, a minha avó da parte do meu pai que tinha vindo de Cabo Verde quando nasci com o meu primo com um ano e que me ensinava crioulo e tudo de africa e com as histórias, depois tinha uma avó portuguesa que me ensinava milhares de coisas. Lembro-me muito pequeno para aí com 3 ou 4 anos estava a fazer cavaleiros e cavalos com as caixas de nestum a recortar para brincar e eu sei perfeitamente onde é que eu aprendi isso. O português também foi assim. Era engraçado porque uma vez elas andaram à bulha risos as duas por minha causa porque a minha outra avó portuguesa chamava-me às escondidas porque nós eramos três, a minha irmã mais nova que tem menos um ano e meio que eu e o meu primo que tem mais um ano que eu, mas ela só queria que fosse eu, então procurava-me, ás vezes quando eu estava a brincar chamava-me. Eu ia para o lado dela e ela mostrava-me este mundo todo de coisas e etc. A minha outra avó não gostava disso, que fosse só eu a ser chamado. Eu quando era pequeno gostava de açúcar e eles não me davam açúcar, mas a dona Maria tinha sempre lá rebuçados. risos Então isso obrigou-me a ser bilíngue porque eu tinha estes dois mundos constantemente desde muito pequeno. Curioso isso.
E os teus pais falavam contigo em?
O meu pai fazia questão de falar crioulo em casa e a minha mãe também. Isso era a bandeira do meu pai, longe se um filho dele não falar crioulo. Era assim uma coisa muito nacionalista, africana e cada vez que vou falar com o meu pai, porque africa e eu lá vamos nós outra vez. Então é engraçado isso, esses dois mundos ao mesmo tempo. A dona Maria já faleceu e a minha avó também, sem duvida que foram na minha infância a grande influencia para eu ser quem sou.
Com o que é que tu te identificas?
Eu já não me preocupo com isso. Nem… nem estou para aí. No outro dia disse ao J e à Sara, nós devíamos criar um país, porque é tão desgastante tentares ser… não é ser… é tentar a aprovação do outro, eu vi o quanto os meus amigos sofrem com isso, a Sara, o Gil, eu acho que não vale a pena nós irmos por aí. Ver a infantilidade das pessoas é ou não é caboverdiana. Tipo a loira não é crioula, sabes. Ela sentir que tem de ir viver para Cabo Verde para ser aceite, e mesmo assim há sempre um, ela não nasceu cá. Sabes, esse mundo de separação, até porque não tem interesse em não querer ser, porque depois pensas assim, ser aceite seria uma coisa fantástica. Mas depois vês que todos os que são aceites como caboverdianos, os outros estão-se a barimbar para eles. Há pessoal pobre e quem tem dinheiro não liga e, no entanto, são aceites. Toda a gente diz, ele é caboverdiano então para quê? Estás a ver. Para quê que eu vou ser aceite para depois, agora que és não interessas. risos Então acho que tem de ser uma coisa para ti. Nós habituamo-nos a navegar nestas águas de ninguém e começamos a criar a nossa identidade de navegadores e eu gosto disso. Não quero estar preso num rótulo. O rótulo caboverdiano trás uma série de estigmas, assim como o rótulo africano, sabes. Quando eu estou em contacto com o outro, vem esse, és caboverdiano então deves gostar de ter muitas mulheres, tens muitos filhos e trais muito, quantos filhos tem o teu pai e vai fazer a mesma coisa, sabes. Aliás eu estou em défice, eu tenho um filho, o meu pai tem oito, o meu avô teve… estou mal… Eu acho que tu deves ser aquilo que és, independentemente daquilo que os outros acham. Eu vou buscar as coisas que me interessam em cada mundo para construir a minha identidade a cada momento, a cada segundo, sem me importar muito. Não interessa. Acho que é redutor eu dizer que sou só uma coisa.
E em relação à cultura portuguesa com o que é que te identificas e quais as características que achas que são assim flagrantes?
Acho que há algum racionalismo nas coisas, sistematização, organização, embora os portugueses não sejam tradicionalmente conhecidos, num contexto mais global da Europa, América, como pontuais e organizados, são mais conhecidos como o desenrasca, mete a fita cola e depois a coisa funciona. Mas quando compara com a realidade caboverdiana e alguma África o que sobressai neles é isso, é alguma frieza, organização, tentativa de criar ali ordem numa estrutura de cima para baixo. Eu fui buscar algumas coisas desse tipo de pensamento e é engraçado que quando estou em determinados contextos eu pareço mais isso, e se calhar num contexto africano eu pareço mais isso, num contexto português eu posso parecer mais africano.
Em Cabo Verde não sentiste que te tratavam de uma maneira diferente?
Sim, sim, claro, claro. É a parte que eu lamento mais, de mentalidade, de não acolher o outro. O caboverdiano tem muita dificuldade, por mais que eu queira pensar que ele é misto e consegue navegar nessas águas, ele é muito preconceituoso. Entristece-me, entristece-me ver pessoas a dizerem que Cabo Verde não é África, entristece-me o rótulo de manjaco para as pessoas que vêm do Senegal, tudo o que vem do resto da África sabes, é triste. Eu não assino por baixo disso.
E culturalmente o que é que os teus pais te transmitiam da tradições caboverdianas, que ainda manténs?
Não sei… a música… a poesia, a cozinha. A minha mãe cozinha muito bem, eu também aprendi com ela coisas. A língua e com a língua vem um mundo. E o meu pai tem muito essa coisa de África, África, os grandes lideres africanos e o que é que eles achavam e não sei o quê. Ele vive muito isso e é capaz de estar horas a falar sobre isso. Apoia muito as coisas que eu faço, se vou à televisão. Ele recentemente entrou no mundo do Facebook e eu criei uma página e tudo. O meu pai os comentários, quando eu coloco algum post, ele dá-se ao trabalho de escrever gosto, eu já disse oh pai há um botão. Ele escreve sempre gosto. risos Pronto, não há volta a dar. Sim, eu senti esse apoio e algum orgulho. Embora eu não faça para agradar, são as minhas paranoias e é bom para sentir esse carinho. Acho que da minha mãe eu tive muita liberdade para eu ser o que quisesse, em nenhum momento ela disse vais ser isto ou porque é que não tentas ser isto. Vai... eu lembro-me dos 5 anos em que só tocávamos, nós não parávamos em casa. Mãe vou para o Porto, agora vou para Cabo Verde, agora vou… e ela, vai. Acho que isso também alargou-me os horizontes, ela lida muita com… muito recentemente vim a saber isso, com muita cusquice das amigas, a rotularem-me ou dizerem, o teu filho está na televisão, não paga… não deve pagar eletricidade, ele deve estar bem… tudo o que é… ela foi guardando isso, mas um dia disse-me, chateou-se com a melhor amiga dela por causa disso, o teu filho e tal não paga tv cabo… era uma coisa assim risos. De resto, com eles aprendi estas coisas e eu temem escolho muito o que eu quero aprender, não é tão linear, temos grandes debates até por causa disso. É isso então está bem, vamos sim pai. É mais o contrário.
E que valores é que eles te transmitiram que agora que tens um filho vais perpetuar?
O meu pai é a cena nacionalista, o crioulo e o africano e África. Esta importância da educação, ou de estudar, dos livros. A importância de teres o teu dinheiro, um bocado esta lógica. Ontem estava a dar formação e contei uma história sobre dinheiro e angariação de fundos e não sei o quê, e eu estava a contar uma história que eu tinha dois mundos nos meus pais, o meu pai muito controlado com o dinheiro, muito forreta e tal, e a minha mãe dá tudo. Aparece alguém em casa é uma mesa gira e tal, precisava de uma mesa e a minha mãe, leva. risos Vem-me essa comparação com essa atitude e o número de amigos que cada um tem. A minha mãe conhece meio mundo e tem amigos que não acaba, mas não é amigos de olá, é amigos mesmo que ligam e que ela sai à rua, e pessoal todo conhece. Nesse contexto eu não sou ninguém porque eu sou o filho da minha mãe, ela é que é o papa. E com o meu pai eu sinto que não é assim, eu sinto que são poucos, é tipo a dedo, este e aquele e aquele e fechou a loja. Eu acho que tem a ver com a atitude que têm perante o dinheiro, o materialismo e a relação com as pessoas. Quanto mais apegamo-nos ao ter, ao dinheiro, fechamos alguma na relação com o outro e quanto mais desapego tivermos abres imensas portas. Então eu sou o misto dos dois. Então tenho esta coisa de dou tudo, mas também tenho esta coisa de quanto é que eu tenho. Mas acho que sou mais de dar. Eu sinto até nesta fase de consultor, que tenho telefonemas quase diários de gente, olha, mas eu precisava da tua ajuda, mas eu cobro por isso, mas diz lá. risos Acontece imenso isso.
Já que falamos de amigos, conta-me um bocadinho como é que são os teus grupos de amigos e qual é a tua relação com eles?
Os meus amigos… tenho amigos de contexto, que é só do mundo da música e que nós passamos o dia a falar do disco do não sei quantos e da música do não sei quantos, e que estão lá sempre, o Mel, o Didi, e o pessoal da banda, pessoal com quem colaborei, a Sara também, somos híper confidentes e sabes é a música. Depois tenho amigos de profissão, de áreas de interesse da inovação que estamos sempre em contacto. Depois tenho um amigo que não se enquadra em nenhuma destas coisas e que tem a ver com a ligação a Cabo Verde, que é esse amigo que estudamos juntos no Agora e nós conhecemo-nos na Virgin e desde então ficamos sempre em ligação. Ele fez a licenciatura no mesmo ano do que eu, em universidades diferentes, ele estava a fazer sociologia e eu a fazer línguas e literaturas. Ficamos amigos até hoje. Qualquer coisa ele liga-me, qualquer coisa eu ligo. Nós falamos, ele está em Londres, ele ficou na minha casa quando eu estava em londres, depois acabou por ficar lá. Eu voltei e ele ainda está lá. Curiosamente temos coisas muito semelhantes nas nossas vidas a acontecerem-nos, coisas muito, muito semelhantes, então falamos quase todas as semanas. É um amigo que não se enquadra neste mundo da música, não se enquadra na profissão, mas enquadra-se no mundo África e Cabo Verde e a ligação com isso. Aprendemos muito, ele é mais velho do que eu, aprendemos muito também com os conselhos que damos uns aos outros, das fases que passamos. Depois tenho amigas também, uma coisa estranha, tenho muitas de ex relações que depois ficamos amigos. Tenho muitos amigos no estrangeiro. Londres deixei muitos amigos, que até hoje continuam a ligar. Os miúdos com quem trabalhei até hoje, houve um que fez agora um mestrado e ligou-me logo. É engraçado isso e vê-los a serem coisas fantásticas. Existe um que está na politica que é normal com o parlamento, génese desta geração. É assim um bocado, amigos da música, amigos da profissão, e… tenho feito novos amigos de… sabes que encontrei uma grande união dos independentes, dos consultores independentes, os que não saem quando é que vão receber, há uma grande empatia entre saber que estamos no mesmo barco, então vamos fazer um projeto juntos, e eu gosto disso. Estamos todos em crise, estamos todos sem nada, mas não pararmos de magicar projetos. Então essa ida a Moçambique vem de uma amiga que é professora lá e lembrou-se e disse, tu eras pessoa para vir cá e para mim é uma honra. Não conheço Moçambique e sempre ouvi falar como um país fixe, de gente boa e estar a fazer um projeto para mulheres licenciadas a serem lideres, eles estão a construir na esperança de ter a próxima presidente de moçambique. Então eu acho isso bonito como sonho, como perspetiva e poder contribuir para isso com aquilo que eu faço, acho isso fantástico. Isto foi uma amiga desta área da inovação, então acho isso mágico.
Em que medida achas que os teus amigos influenciaram o teu percurso?
Imenso, acho que os meus amigos deram-me impulsos, acreditam muito em mim. Acreditam que eu vou fazer coisas e quando não estou a fazer trazem coisas, trazem-me oportunidades, abrem-me portas, quando eu menos espero. E mais, esta coisa do universo da sincronicidade acontece-me muito, várias vezes. Mesmo esta história de ir a Cabo Verde foi um desejo, eu plantei essa energia, fogo gostava de ir a Cabo Verde, pum. Fogo gostava de ir a Londres, pum. Sabes… houve uma altura que eu disse gostava de ir ao Brasil e eu achava que nunca ia acontecer, pum, estive em São Paulo como consultor. Eh pá tudo é possível.
E falando em viagens, quais foram as viagens que te marcaram mais e porquê?
Das que me marcaram mais foi a minha ida a Cabo Verde pela primeira vez, com essa história da minha avó, a minha família, vermos quem são. Marcou-me também a minha primeira vez a viajar para a Holanda, a primeira vez que fui para a Holanda marcou-me imenso, fui visitar os meus tios. Sabes, estar num país diferente, ver como funciona esse país, estar em Roterdão, ver a rua luminosa, é a rua dos caboverdianos que moram todos ali, ver os estúdios, sabes. Isso também marcou-me. Gostei de estar em Paris, também, acho que foi fixe. Essa viagem a Londres para depois ficar definitivamente. Londres marcou-me muito, porque em Londres eu fiz tudo o que me apeteceu fazer. Trabalhei no teatro nacional de Londres que é uma coisa que nunca, nunca, nunca me passaria pela cabeça, com um maestro genial, um coreografo genial, fazer um projeto ainda mais genial que chama-se the next generation que eles iam buscar novos artistas para desenhar workshops, mas artistas diferentes, tipo um bailarino com um escultor, áreas diferentes, juntavas e montavam um workshop para jovens e assim os jovens bebiam dos dois mundos e depois montavam uma performance. Então eles fizeram o recrutamento e colocaram o anuncio no the gardem e uma amiga disse está a acontecer isso queres vir e eu disse, vou e tal. O recrutamento era uma sala com cento e tal, artistas e eles a dizerem façam isto e eu disse não me vão chamar nem aqui nem na china. Como é que eles conseguem perceber e não sei o quê. Eu fiz esse projeto e foi dos projetos mais mágicos que eu fiz. Conheci artistas maravilhosos. Planeávamos as coisas em casa uns dos outros, as sessões, os workshops. Eh pá, marcou-me também Londres. Depois existem as viagens normais que tu fazes de conhecer um país novo, mas não tanto com este peso que estas viagens tiveram.
E hobbies?
Hobbies… eu acho que a minha vida é um hobbie completamente. É tipo… e alguma sorte de fazer um hobbie que ás vezes te pagam. Estar a escrever canções e alguém pagar por isso, sabes. Eu acho que o meu hobbie está sempre dentro da música, da dança, gosto muito da dança, do potencial da dança, do transformar. Gosto de filmes, de comentários, de um bom filme, este filme transbordou-me vou ver outra vez. Adoro viajar, se eu pudesse estava on go, conhecer culturas novas, adoro viajar e ao mesmo tempo olhar para mim e perceber o que me está a acontecer neste sitio diferente e quem é que eu estou a tornar-me. Acho isso maravilhoso, viajar assim. Sonho imenso, não sei se classifica como um hobbie. Hobbie, sonhar. risos Mas concretizo também muito e às vezes quando começo a falar parece que já vivi várias vidas.
E leitura?
Também leio imenso.
Que livros?
Sei lá, o que me vem à mão. Eu tenho muita literatura a ver com África, com história africana, com literatura, poesia africana, Tony Morinson, N coisas. Depois tenho livros mias técnicos tipo escrita criativa, criatividade ou inovação. Tenho livros… tipo literatura mais PALOP língua portuguesa, Mia Couto, Chamando Romeira, ouve uma fase que só lia autores caboverdianos, livros de história, era variado. Neste momento o que é que eu tenho, por exemplo o que é que eu estou a ler agora… já nem sei. Ofereceram-me um livro, uma amiga que eu conheci na Alemanha de repente enviou-me esse livro, um livro para homens, mas acho que dá para mulheres, chamasse don't start the small, tem pequenas lições de duas páginas, tu podes abrir aquilo e ler qualquer pagina e aquela lição faz sentido, tem sempre uma situação qualquer de vida e depois tem uma lição, don't start the small é tipo não penses que as coisinhas não têm significado, não desvalorizes as pequenas coisas. É esse o livro que eu tenho de momento que quando eu abro tem sempre uma história que é bué fixe, não tinha pensado nesta prespectiva. Então é o que eu estou a ler agora, antes de adormecer leio uma dessas histórias e depois vou-me deitar. Também tenho o hábito dos áudio book, porque às vezes a conduzir e aproveito e leio. Adorei conhecer a história do Benjamim Franklin, achei brutal a história dele, acho que é um homem que viveu muitas vidas, acho bastante inspirador. Depois tenho áudios para tudo, para tudo. Ou vou correr, ou vou no carro e vou a ouvir.
Agora queria que tu me falasses assim um bocadinho como é que foi a tua infância em termos de bairro, ambiente com vizinhos, ambiente da zona onde cresceste?
Eh pá foi… tive sempre assim grandes contraste, porque como te disse onde eu nasci não havia muita malta africana, eram tipo prédios. Eu não tinha muito contacto com pessoas, eramos os três, eu, o meu primo e a minha irmã. Eu era o inventor de brincadeiras e eles seguiam-me e andávamos para aí. Mas tínhamos o direito de uma vez por dia ir ao jardim que era o grande momento do dia e era a minha avó que nos levava. risos Aí é que conhecíamos os outros miúdos e não sei quê. E nós uau. Mas depois não correu bem porque houve uma altura que a minha avó levou-nos e apareceu um casal estrangeiro que queria me levar e a minha avó não percebeu o que eles estavam a dizer, mas sabia que eles queriam me levar. A minha avó lembra-se na altura de eles dizerem, nós não temos um destes e a minha avó entrou em pânico. Foi contar isso ao meu pai e o meu pai começou logo, querem-me levar o miúdo agora já não saem. Tivemos uns tempos que não saímos. Então tipo tínhamos amigos, mas não podíamos sair. Eu lembro-me de estar muito à janela, porque como o prédio dava para uma rua principal eu estava sempre a ver pessoas pela janela e as pessoas quando passavam metiam-se connosco. Depois quando comecei a ir para a escola, eu tinha muitos amigos brancos que tinham milhares de brinquedos, eu nunca tinha pensado que alguém tinha tantos brinquedos. Nós não tínhamos, inventávamos brinquedos. Pelo natal ou de vez em quando o meu pai trazia uma coisa qualquer, mas aquilo que ele trouxesse eu desmontava para ver como é que era por dentro e depois acabava por estragar-se e o meu pai passava-se da cabeça e dizia não dou mais nada, mas depois lá dava. Depois eu abria outra vez que era para ver como era por dentro. Pronto risos Então quando ia à casa dos meus amigos via brinquedos que nunca tinha visto, robots, uau… o meu pai não gostava muito que eu ficasse na casa dos meus amigos, então era assim um contacto que eu tinha. Depois os meus pais separaram-se e eu decidi ir com a minha mãe e fomos para um bairro e aí mudou a minha realidade. Aquilo, passei de não ter contacto nenhum para ter muito contacto com uma realidade que eu não conhecia e aprendi imenso, mas lá está, as pessoas conheciam o meu pai é sempre o karma, porque mesmo em Cabo Verde o meu pai teve trabalhos de responsabilidade e as pessoas conheciam-no como é o responsável por. Então no bairro acabava sempre por conhecer alguém, ou que trabalhou sobre a alçada dele, ou que conhecem. Então tinham muitas expetativas de mim desde criança. Sim, essa realidade mudou completamente a minha perspetiva do bairro, estar a viver num bairro, ter as mesmas condições e ter amigos completamente diferentes. Perceber este lado mais terra a terra das coisas e o ruido, tudo isso acoplou a minha vida e acho que também contribuiu para quem eu sou. Mas também, eu tinha sempre esta função dentro do bairro. É como te disse chamavam-me sempre para escrever cartas. Comecei a ganhar dinheiro a dar explicações, porque as famílias chamavam-me sempre, porque o meu filho é burro, ele é burro, eu pago-te. Então eu era sempre recebido com todas as mordomias na casa das pessoas, com almoço todo servido com mais não sei o quê, e não sei quê, porque eu ia dar explicações aos filhos deles e pagavam-me no final. Então era uma coisa interessante esse fenómeno de dar explicações. Então fui tendo esse tipo de função. Quando via os meus amigos a chumbar e tal e depois passavam. Em termos de ambiente sim, o ambiente do bairro tinha isso. Acho que era um ambiente fértil de brincadeiras, de jogos, de possibilidades, de usar… de aprender a jogar à bola, isso era uma coisa que… jogar à bola para um rapaz é assim uma coisa… abre imensas portas. Eu acho que muita da facilidade que eu tive ou alguma popularidade nas turmas foi por causa do futebol, ou qualquer coisa assim, porque é um fator de exclusão se tu não sabes jogar, é duro. Vamos todos jogar à bola, bora, vai toda a gente para o campo. Vamos formar equipas, tu, tu, tu e o resto ficam a ver, sabes. Ficas a ver, não jogas. Isso era uma vantagem porque eles iam sempre me escolher, era um dos primeiros a escolherem. Então jogava, jogava sempre. Isso dá-te estatuto de alguma forma, dá-te algum estatuto, não te sei explicar. Eu acho que isso foi uma vantagem também. Quer no bairro, porque o bairro funciona exatamente da mesma forma, e saberes jogar bem, desculpa-te muitas coisas risos. Sim, em termos de ambiente essas duas realidades marcaram-me, viver num bairro. Depois aquela aspiração de querer sair do bairro e eu sempre tive muito contacto com o outro lado fora do bairro, quer via estrangeiros que vinham e ficavam, eu aprendi inglês muito cedo e isso foi sempre uma grande vantagem para mim porque conseguia falar com muita gente. Então quando vinham esses estrangeiros era sempre o brocken que ajuda a entender. Também foi uma grande vantagem. Depois sair do bairro e comprares a tua própria casa, eu comprei a minha casa com 21 anos, para aí, que é uma maluquice, empréstimo e não sei o quê. risos
Querias a tua independência?
Sim, sim, de alguma forma não me resignei, de não me deixar ficar. Estava exposto a coisas fortes. Os bairros passaram por coisas muito complexas, nos anos 90 foi o inicio do tráfico de droga mais forte, entrada dos grandes traficantes que vinham da Holanda, que eram capazes de disparar e matar a sangue frio, não tinham medo da policia e ostentavam motas, gastavam dinheiro nos jogos de batota. Eu lembro-me dessa, o pessoal nos jogos de batota com moedinhas e eles chagavam e pá aposto isto risos. Eu vi essa realidade toda a acontecer. Os primeiros a surgirem, as celebridades, os dealers que toda a gente fala, as grandes estrelas do tráfico que não tinham medo da policia, tinham não sei quantos guarda costas, eu vi isso muito de perto. Então tive muitos amigos que fizeram coisas completamente diferentes de mim e nunca deixaram de ser meus amigos. Eu acho que o que me fez diferente foi a música, foi os meus Rap e de repente ganhamos outro estatuto dentro do bairro. Vocês são os rappers, onde é que vocês vão. Nós quando saiamos do bairro, onde é que vocês vão tocar. Às vezes nem íamos tocar, íamos ao centro comercial. Mas tínhamos esse estatuto. É fixe. Isso dava-te assim alguma aura, eles não, eles são rappers.
Se não tivesses que pagar impostos…
Pois, pois, sim, sim.
Nunca sentiste descriminação?
Descriminação, não senti muita, mas foi mais porque eu tinha uma atitude de não admitir, e foi um bocado isso. Acho que sentia como coletivo, como vocês todos do bairro. Uma coisa assim, mas não tanto individualizado. Na escola por estas razões, pelo futebol, estás a ver. É um fenómeno que tanto acontece na escola como na sociedade portuguesa. Sabes, o Nelson Évora é o teu negro do gueto, sabes, é o nosso Évora. Então este universo que tu vês na vida portuguesa acontece na escola, sabes, começa ali, eu não, tu não és como eles. Acho que há essa aura, mas isso não te isenta de seres descriminado, claro. Mas eu acho também que, acho que há uns fatores que te protegem como esta história do futebol, ou a história da música, ou a história dos resultados escolares, mas não deixas de ser. Eles podem não te dizer, mas falam entre eles. Não sei, pode existir isso. Eu na escola fui muito de grupinhos, estive sempre num grupo, que era sempre um grupo estranho, não tinha lógica. Há pouco tempo encontrei-me com os meus colegas do secundário, Isabel, Sónia, e andávamos sempre juntos, não tinha explicação nenhuma, mas eu e essas duas estávamos sempre juntos. risos E não tem lógica, não tem lógica. Encontramo-nos depois de não sei quantos anos, vi por acaso uma delas no supermercado e foi logo Isabel, e estávamos com os nossos filhos, eles a olharem um para o outro risos. É engraçado isso. Mesmo quando eu estava a fazer o curso de informática eu tinha um grupinho, pessoas que estavam sempre juntos. Não tinha explicação também. Mas de alguma forma essas pessoas tinham alguma coisa de minoria, ou porque um era muito excêntrico, sabes, maluco da cabeça, outro porque era gótico, ou outro porque era portador de uma deficiência qualquer, ou outro porque era grande demais, tinha qualquer coisa.
Tens conhecimento mais grave que te tenha ficado na cabeça e que tenha marcado de alguma forma?
Do quê?
Descriminação ainda?
De assistir já vi… já vi muita, não é. Estou a tentar me lembrar de algum caso em concreto. Já, já, já, várias vezes. Eu acho que um dos símbolos da beleza feminina do ocidente é a mulher loira, não é, é tipo aquela coisa. Eu risos… estás-te a rir, não é, eu por ter tido algumas namoradas aí, eu senti que estava a fazer assim uma coisa assim qualquer no ocidente e no imaginário dos homens. Completamente, é tão claro isso. Sobretudo, sobretudo nos homens. Sim, e aí eu lembro-me de estar nas ruas de Lisboa e de ouvir bocas, de gente revoltada e era aquilo, aquele símbolo do ocidente que estás ali a mexer e que não podia ser. Tudo menos isso, sabes. Como se pegasses na Merlin Monroe, sabes, quem és tu para tocares na Merlin Monroe.
Se pudesses escolher outra profissão o que é que serias?
Não faço a mínima ideia. Até porque todas as coisas que me interessam são as que eu faço. Já fiz coisas completamente diferentes.
Nas competências que tenhas?
Nas competências que eu tenha… eu gosto do mundo da educação, gosto desta coisa da liderança, gosto deste trabalho comunitário, adoro criatividade. Gosto de uma boa comunicação, de um bom comunicador e percebo por vezes o poder que tenho a comunicar em algumas situações, às vezes até eu fico ah, ah. Ah, eu percebi o poder da comunicação quando voltei de Inglaterra para Portugal. Eu não tinha essa perceção, das coisas que mais feedback recebia era quando falava ou comunicava, por exemplo na televisão ou num auditório ou qualquer coisa assim, e eu não sei porquê, mas parte do que poderá ser ´expetativas. É tu esperares ver um negro e esperares que ele fale bacoradas, sabes esse horizonte e depois com elas a falar e as pessoas dizem ele não está a falar bacoradas. Então não sei se por a expetativa ser tão baixa parece que é fantástico ou se é fantástico. Have my idea, sabes. Mas sistematicamente há isto. Fiquei inspirado, ou qualquer coisa, e não sei se isso tem a haver com a expetativa baixa. Não sei se isso é bom ou mau. Mas como eu não estava à espera de nada de ti mesmo, parece que é bom. Pronto, não sei.
E planos para o futuro?
Planos para o futuro… eu não sei, mas eu gostava, gosto desta ideia de ser independente. Gosto desta ideia de pode ir a mais países e contribuir com as minhas coisas. Gostei do meio da televisão, nunca tinha pensado em estar na televisão e achei fantástico, até porque eu fui parar à televisão porque estava a trabalhar na fundação EDP e fui a um projeto e a RTP foi-me entrevistar e eu falei o que eu achava. O administrador da fundação na altura era o Sérgio Figueiredo, que é o atual diretor da informação da TVI e ele disse, tu ficas bem na televisão. Fico bem na televisão? Sim, a camara gosta de ti. Acho que foi essa coisa de ele ter dito isso, eu não acho, mas de ele ter dito isso, está em vou experimentar e fiz esse programa… fiz o programa mais porque eu sentia necessidade de haver televisão coisas que inspirassem as pessoas, principalmente os PALOP a serem mais, sentirem-se mais inspirados para fazerem mais e não havia. Por isso é que eu fiz os inovadores sociais. Foi assim. Acho que cumpriu o seu propósito. Depois decidi parar umas semanas, mas porque também porque pessoas do meio da comunicação me disseram, tu não devias estar ali a um canto da RTP Africa, o que tens para dizer tem de estar num canal mais generalista, num canal mais alargado e toda a gente precisa de saber estas coisas. Não é tipo ali, eles não têm produção forte. É um canal que está ali no seu cantinho. As pessoas associam sempre a uma coisa que é só para africanos. Eu levava gente do Brasil, sabes… às vezes pensava é um bocado redutor estar aqui, porque o canal em si não tem essa ambição, não tem esse propósito. Às vezes vias o programa todo e tinha tipo o gajo que cantava desafinado, depois tinha isto e de repente aparecia aquilo e o formato e não sei o quê. Depois acabei por não querer continuar, mas acho que África precisa, e África tem essa inovação e não precisa estar num canto, precisa estar numa plataforma global representando a sua parte.
E se te tivesses que te descrever como pessoa?
Sei lá… acho que a maior parte das vezes dizem que és uma pessoa calma e transmites serenidade, eu sou um turbilhão, eu sinto-me completamente… mas é como as pessoas te vêm, aquilo que vêm de fora. Às vezes sinto-me completamente um alto turbilhão. Descrever-me… eu sinto-me imensamente grato de estar vivo, mesmo, imensamente grato de estar a fazer estas coisas que estou a fazer. eu acho que tenho coisas para dar e acho que estou a tentar dar essas coisas e absorvo imenso as pessoas e quero representar possibilidades. É isso.
E defeitos?
Defeitos? Ah… deixa ver defeitos. Um dos defeitos mais famosos meus é o estar sempre a pensar em projetos.
Não é defeito?
É, é. É porque tu não queres estar com alguém… o feedback que eu tenho é, fogo tu choves… risos Acho que isso é um defeito que é estar tão focado nessas coisas que tu tens de dar a volta de pessoas que te entendam assim e não que tentem mudar no sentido de porque é que tu não estás mais em casa, ou porque é que tu não estás mais… sabes, mas viver isso como que fixe, estás a seguir o teu propósito e deixa seguir também o meu e bora lá. Isso tem sido constante, que pode ser um defeito, por estar com esta missão, não é. Embora não tenha desenhado assim, a minha missão, vou salvar o mundo. Mas faço muitas coisas… risos Faz muitas coisas que para quem não tem nenhuma sensibilidade social é estranho. what the hell you doing, your brocke. Esse defeito… devo ter milhares… sei lá, eu acho que estou sempre a mudar. Quando penso em mim, estou diferente disto e diferente daquilo, que depois é difícil posicionar-me em termos de defeitos. Acho que vão mudando. Não é. Tenho defeitos novos é isso. risos
Isso é bom.
Por exemplo, falar como eu falo, pode ser um defeito. Uma pessoa muito paciente vai querer que eu diga logo as coisas todas, não é. Eu gosto de estar ainda a ver o que eu vou dizer. Para algumas pessoas eu falo rápido demais, para outras, falo muito devagar, com muita calma. Então varia. Então sabes o defeito é aos olhos de com quem eu estou.