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1823. Carta de António Simões Machado, capelão, para o provedor.

SummaryAntónio Simões Machado pede ao provedor que entregue ao corregedor a carta em que relata o assalto de que foi vítima.
Author(s) António Simões Machado
Addressee(s) Anónimo 25            
From Portugal, Coimbra, Murtede
To S.l.
Context

Este processo diz respeito a uma quadrilha de ladrões que atuava em vários locais do país (em feiras, mercados, estradas e propriedades), assaltando negociantes, comerciantes e casas particulares. A acusação era a de roubo, espancamento e assassinato de algumas das vítimas. Embora o processo envolvesse vários queixosos, o suplicante era Rodrigo José dos Santos, ourives, que se encontrava muito temeroso perante a possibilidade de um dos acusados, José Gomes Figadal, vir a ser libertado pelo Tribunal da Relação do Porto. As cartas incluídas no processo remetem para vários episódios que ilustram a extensão e a violência dos crimes cometidos por esta quadrilha. No caso de Rodrigo José dos Santos, sabemos que o seu filho, Manuel José dos Santos, se encontrava acamado e incapaz de se deslocar junto do escrivão António Ciriaca de Carvalho e do cirurgião Ismael Maria Freire de Andrade, que deveriam proceder aos autos de exame. O cirurgião, que tal como o escrivão teve de se deslocar à residência da vítima, pode confirmar que os ferimentos foram feitos com um instrumento cortante e perfurante. Uma outra testemunha, entretanto arrolada, confirmou o roubo feito ao filho do ourives, o qual, para além de ter sido roubado em ouro, foi brutalmente espancado, encontrando-se em risco de vida. Essa mesma testemunha acrescentou que o assalto fora de facto feito por José Gomes Figadal (um dos membros da dita quadrilha). Um outro caso é o de António Simões Machado, também ele agredido com bastante violência. No dia 18 de junho de 1823, no lugar de Murtede, o escrivão Jerónimo Ferreira Barjão e o cirurgião Joaquim José Gonçalves Morim dirigiram-se a casa de António Simões Machado (que se encontrava fisicamente debilitado) para proceder ao auto de exame do corpo de delito. Aí verificaram que este tinha várias feridas no rosto, nas mãos e pernas, nódoas negras nos olhos e marcas de unhas no pescoço. Conforme explicou o próprio António Simões Machado numa das cartas, estando a dormir com a janela aberta (com o objetivo de acordar cedo para partir para Coimbra), acordou, por volta da meia-noite, com 3 ou 4 indivíduos a apertarem-lhe o pescoço e a taparem-lhe a boca. Na luta subsequente, foi ferido por uma faca. De seguida, o queixoso referiu que os assaltantes ameaçaram as sobrinhas, que entretanto tinham chegado ao quarto. Uma delas terá conseguido fugir, enganando o ladrão, que, ao persegui-la, se deparou com o sobrinho de António Machado. Vendo-o, o ladrão fugiu pela janela, tendo os companheiros seguido o seu exemplo. António Simões referiu ainda estar convencido das intenções homicidas do grupo de salteadores, cujo número cifrou em 12 indivíduos. Um outro caso refere-se ao assalto feito à loja onde trabalhava José Caetano dos Reis, no lugar da Cordinhã. Aí terão roubado cinco couros de sola, trinta e nove vaquetas, cinco bezerros, vários retalhos de couro e uma égua aparelhada. De acordo com o parecer das testemunhas, o prejuízo rondava os 150 mil réis. Consta ainda do processo a menção a um inglês, Roger Bidgood Whitney, que foi assassinado pela mesma quadrilha, perto de Rio Maior, e cujo corpo também foi examinado. Mais tarde, e perante a possibilidade de os presos serem libertados, um grupo de pessoas, identificado como «o Povo», e sobretudo Rodrigo dos Santos, escreveram um requerimento ao rei pedindo que os criminosos fossem degredados pois estavam certos dos atos de retaliação de que seriam alvo. Este caso, como muitos outros, prova quão corretas estavam as referências feitas pelos viajantes, portugueses ou estrangeiros, à criminalidade que grassava pelo reino nas primeiras décadas de Oitocentos. A atividade desenvolvida por esta quadrilha é particularmente interessante pela amplitude da área geográfica abrangida, de Cantanhede a Rio Maior.

Support uma folha de papel dobrada escrita em todas as faces.
Archival Institution Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Repository Casa da Suplicação
Collection Feitos Findos, Processos-Crime
Archival Reference Letra J, Maço 142, Número 2, Caixa 373, Caderno [4]
Folios 43r-44v
Transcription Leonor Tavares
Main Revision Cristina Albino
Contextualization Leonor Tavares
Standardization Catarina Carvalheiro
POS annotation Clara Pinto, Catarina Carvalheiro
Transcription date2007

Text: -


[1]
Illmo Snr Dr Provedor
[2]
Dizem-me agora não ser VSa, mas sim o Snr Dr Corregedor déssa cide o encarregado de conhecer ácerca dos ladroins da Carapinheira, e campo de Coimbra; e q este Snr me mandara dizer por Frco Pinheiro da Porcarissa, dipois de o inquirir, q lhe partecipasse eu qm me parecia serem os que vierão a ma caza, pa matar-me, e roubar-me.
[3]
Supposto pois q não posso dizer fizicamte qm forão os agressores,
[4]
comtudo, exporei o juizo q fasso, e nelles não costumo enganar-me, principalmte como n'este, onde deduzo de principeos.
[5]
Admitti em ma caza, de cama, e meza, á ma meza, huns forasteiros Martinho Jose Fontoura, e seu filho Thomé Luiz Fontoura, soltro pa me fazerem hu Orgão de parede na ma Igra, sem ajuste algũ
[6]
mais q dando-lhe eu cama e meza, e a seu fo, e de comer a duas egoas suas fizesse orgão como quizesse, e lhe desse o q quizesse;
[7]
tendo precedido qdo pro falei em ajuste, q elle me pedio 12 moedas, por accrescentar o Orgão desbaratado q havia; e 20 por me fazer Orgão novo.
[8]
Dito isto por mim ao Povo, na Igra, diante delles, concorreo este com as suas esmolas.
[9]
Passado tempo, disse-me q queria mdar buscar a Evora a sua familia, mulher, fa, e outro fo
[10]
Emprestandose-lhe humas cazas, foi elle, e os fos dormir , ficou sua filha de cama, e meza, no quarto de mas sobras, porq disse elle terem as cazas pouca capacide;
[11]
passei então a dar-lhe pa 8 arrs de vaca por semana, carne de porco corresponde tb huma garrafa de vinho, e pão de 40 rs ao jantar, e o mmo á noite; vindo elle almossar todos os dias com sua fa, e tambem os dois filhos; e ao jantar vir elle sempre pa a ma meza.
[12]
Disse-me dipois q queria comprar humas cazas, e estabelecer-se aqui;
[13]
dipois queria accrestallas; e lhe fui dando dro , dizia elle q por não trocar, até 16 moedas;
[14]
e então tive com elle hũa fala, dizendo-lhe q não obstante ter-me elle confiado o arbitrio de dar-lhe o que quizesse, de suas maos, pela factura do Orgão, q como elle tinha pedido pro 20 moedas, essas mmas tinha eu tenção dar-lhe;
[15]
e porq tinha crescido da pra tenção o ficarem as trombetas pa a frente no q elle havia dito ter mais trabalho, por este, mais 10 q herão 30 moedas, q eu tinha na ma tenção completar-lhe.
[16]
Respondeo-me q nem hera mto nem pouco.
[17]
Continuando a receber por parcellas; acabadas de receber as 30 moedas, travou dezordem de de maior; e veio ter comigo dizendo ter-lhe eu promettido a 2400 por dia;
[18]
e citando-me tractamos a cauza;
[19]
e vendo elle q ninguem lhe dava razão, vozeava q eu lhe havia de pagar; ou por huma sorte, ou por outra: e q mmo á cama me havia de vir tirar a vida.
[20]
E com effeito estando a demanda pa dar-se a meu favor, segdo as testemunhas contraproduccentes, foi então a ma catastrofe.
[21]
Fr Miguel, Franciscano, daqui natural, ans andando por aqui apostata ( como agora ) amancebado, fazendo roubos de toda a ordem; não se attrevendo o Provincial a vello prezo pelos Leigos q mandava pa isso, o fiz prender por Meliciannos;
[22]
e querendo rezistir às baionetas, em caza da concubina, prezo disse : tenho penna não o saber meia ora antes, pa fazer hir cear com o diabo, sugeito.
[23]
Foi pa o convto de Lxa; porem de logo pa o de Gouvea, e dahi pa o da Povoa de Sta Cristina, junto ou perto de Tentugal, por ser perto da sua terra:
[24]
e logo passou a viver em caza de Luiza Rama, sua concubina, no cazal do Méco, ahi perto, onde he o acoito dos ladroins, de qm elle he o capataz, sgdo a voz publica, e constante.
[25]
E como o do organeiro q he por fora mansa ovelha, e por dentro lobo devorador, procurou perder-me por todos os lados, e até malquistar-me com amos meus; e metter intrigas pa com todos aquelles q de mim tivessem algũ recentimto em algũ tempo: he o meu juizo q elle fosse ter com o do Frade, pa se vingarem matando-me segdo o promittido; e roubando-me, segdo o seu officio; pois o do Martinho está criminoso em Bragança, por morte e roubo, alem do q se não sabe.
[26]
Demais, achando-me eu, qdo no pro sono, com mãos crueis, a afogar-me; saltou logo a acavalar-se em mim q fincando-me as mãos no pescosso, a querer-me afogar tambem, disse por trez vezes - oh cão
[27]
e logo aqui o coração me dictou q ninguem hera capaz de mostrar-me aquella vingança, senão o do Frade;
[28]
e mmo pelas pernas grossas a cavalo em mim, o ajuizei como certo.
[29]
Logo disse da pte de fora da janella - ahi vai a faca -
[30]
servente de dentro do quarto, a foi buscar, e a deu ao ameaçador;
[31]
e então nascendo dos pez da cama, hũa luz, de lanterna de furta fogo alumiou por mim assima , me metteo a faca pela face direita abaixo, encaminhada ao pescoço;
[32]
então agarrei a faca pelo corte, e lutando com a mão esquerda, q a agarrava, concegui tirar-lha;
[33]
e logo deixando-me elles, a deitei pela janela fora; mas empeçando no peripeito, cahio no sobrado, á cabeceira da cama;
[34]
então disse o tal de fora : ahi vai essa pistola:
[35]
o servente lhe pegou, e a viio dar ao executor; e tornando a nascer a luz, estando pa atirar-me, disse o servente : está a faca, esta a faca ;
[36]
consegui tornar a tirar-lha: mas embrulhando-me capotes o braço, e mão, ma tirarão:
[37]
tractou o aggressor outro meio; passou pa parte da parede, e fincando-me as mãos no pescosso pa arremessar-me pa fora, ajudando os outros, afogando, e puxando outros, me vierão trazendo;
[38]
e vindo eu com o corpo meio fora da cama, vi abrir a porta do quarto, entrar ma Pra, e logo seguindo-a, ma sobra mais velha: e logo disse aquella : não matem meu Pro, matem antes a mim.
[39]
logo se lhe arremeçou ao pescosso, e a deitou no sobrado o do servente, e disse: agarrem tambem pa aquelle diabo;
[40]
Ma sobrinha fugio com o capote rasgado; empeçou na mais nova q tambem vinha, e a offendeo no peito;
[41]
e ou porq elles as viessem procurar, e não soubessem o corredor, ou porq viessem tomar posse, supondo a morte feita, eu vi qdo meio deitado no sobrado, dois, ou trez, na salla do jantar: e estando o agressor a cavalo em mim, e a luz a alumiar, pa se me meter a faca no pescoço, então saltarão seguidamte trez de fora, rapidamte passando entre mim, elles q me seguravão, e a parede, a saltar pela janella fora;
[42]
e ao passar, dizendo: fora , fora
[43]
Logo q estes trez passarão, foi o servente aldravar a porta do quarto, segurando a aldrava, emqto os mais hião sahindo; o qual foi o penultimo q sahio; e o ultimo, foi o agressor, q ao levantar-se de sima de mim, poz a mão na parede, onde ficou, e está esculpida a mão com o sangue, e juntamte a manga, q bem se ser de abito, pela largura.
[44]
O meu juizo pois he q o agressor foi o do Frade:
[45]
O q da pte de fora ministrava, hera o do organeiro; e o servente q agarou ma Pra e ficou dipois a segurar a aldrava, hera o fo deste; e mto mais porq os da Carapinheira q vierão nunca me entrarão em caza, e por isso não sabião da aldrava ali, nem aldravão com tanta presteza como este q tem dormido, e assistido em ma caza mezes;
[46]
e a vonte q mostrou a ma Pra e sobra foi por terem lançado fora honestamte a da filha do Organeiro, por não convir em caza, do q mto se escandalirão, por não comer, mas não mostrarão o escandalo, senão dipois de recebidas as 30 moedas, porq se lhe acabou a chupança.
[47]
O instrumto de q a Provida se valleo, pa obrar o evide milagre de me não acabarem de matar, foi q passando os dos trez a salla do jantar, dahi por entre as portas q estavão justas, virão luz na salla; e a passear escarrando, Parente meu;
[48]
e por isso logo q o perceberão, partirão: fora fora -
[49]
Eis aqui em qm tenho suspeita.
[50]
Emqto aos companheiros do do Frade, os da Carapinheira, isso he decedido; porq, tendo sido vistos rodear-me a caza, e se hirem, forão nessa noite roubar a Jose Caetano, de Cordinhaã , do que agora se está conhecendo em cantanhede, pelo Menistro dali ,
[51]
e na vespera do dia da ma infelicide, da meia noite, pa huma hora, forão vistos passar no Lugar da Penna, e no de Cordinhaã, com nu-mero de 15, affora os que os esperavão,
[52]
pa o q derão aquelles tiro, nos pinheirais, aqui perto, q eu ouvi.
[53]
e pencei ser á espera da lebre; bem como tinha ouvido outro, no dia em q vierão, e não puderão fazer a empreza, q hera a 3a vez q vinhão, segdo lhe ouvio huã pastora.
[54]
Eu fui avizado, de q me tinhão revistado as cazas, mas D Franco cruzio, em quarto, sua Mana, em outro, seu Mano, na salla; e mas sobras e Pra em outo, em cazas pequenas, q poderia temer?
[55]
E como a VSa mandei a primra partecipassão, pençando, como me havião dito, ser o Menistro encarregado, e agora me dizem ser o Sr Dr corregedor, rogo a VSa por bem do publico, queira fazer-me a Mercê de entregar esta ao do Sr; pa q sendo verde o ter-me mandado o avizo do lhe sirva esta.
[56]
Aos mesmo tempo offereço a VSa e ao do Snr a ma inutilide
[57]
Sou De VSa com todo o Respto Cappellão; e mto attento affo vndor e obrmo Antonio Simoens Machado Rezida de Murtede 18 de Dezbro de1823

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