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Maarten Janssen, 2014-

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1663. Carta de frei Cristóvão do Rosário para um inquisidor.

SummaryO autor indica em pormenor todos os indícios que o levam a pensar que um cristão-novo que quer voltar a Portugal se converteu realmente ao catolicismo.
Author(s) Cristóvão do Rosário
Addressee(s) Anónimo446            
From Inglaterra, Londres
To Portugal, Lisboa
Context

Este processo diz respeito a Simão Gomes de Almeida, cristão-novo, de 35 anos de idade, acusado de judaísmo. O réu era mercador, filho de Francisco Carvalho e de Brites Gomes, casado com Guiomar Serrana, também cristã-nova, e morador em Londres. Quando o réu tinha 12 anos e vivia com os pais na Guarda, conforme testemunhou, o pai falou-lhe na Lei de Moisés, dizendo-lhe que devia fazer o jejum do dia grande que vem na lua de setembro, os três da rainha Ester que vêm na lua do mês de março, e que jejuasse sempre que alguém morresse. Disse-lhe também que depois do jejum não poderia comer carne e que não devia trabalhar ao sábado, devia vestir camisa lavada à sexta-feira à noite, não devia comer porco, lebre, coelho ou peixe sem escama, entre outros rituais judaicos. Assim, declarou-se judeu e viveu vários anos como tal. Após a sua ida para Londres, apercebeu-se de que desejava ser cristão e decidiu converter-se, tendo disso avisado frei Cristóvão do Rosário, religioso da Ordem dos Pregadores e Pregador da Rainha de Inglaterra, também residente em Londres. As cartas do processo foram entregues como prova disso mesmo.

O réu tinha quatro irmãos e uma irmã: Diogo Carvalho, mercador, casado com Grácia Mendes, António Carvalho, viúvo de Isabel Dias de Almeida, Francisco Carvalho, mercador, casado com Grácia Fernandes, Ayres Carvalho, mercador, solteiro de 24 anos de idade, e Guiomar Serrana, casada com Manoel Gomes Lisboa, mercador. Diogo Carvalho, foi o primeiro a ser preso pela Inquisição, pelo que os outros ainda tentaram fugir. No entanto, Manuel Gomes Lisboa (cunhado) e Francisco Carvalho e a mulher, foram apanhados a caminho de Castela. Mencionado como judeu em processos de judaísmo de alguns familiares e amigos, o réu optou por se apresentar à Inquisição com as cartas que havia escrito e recebido; queria assim provar a sua conversão ao cristianismo após a ida para Londres. Julgava que, apresentando-se, poderia conseguir o perdão e alguns benefícios na sua volta a Lisboa com a família, o que de facto aconteceu. Em auto-da-fé de 23 de julho de 1664 o réu foi sentenciado a abjuração em forma, instrução na fé católica, penitências espirituais e pagamento de custas. Cinco dias depois, foi solto.

Support uma folha de papel dobrada, escrita em todas as faces.
Archival Institution Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Repository Tribunal do Santo Ofício
Collection Inquisição de Lisboa
Archival Reference Processo 2836
Folios 32r-33v
Online Facsimile http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2302767
Socio-Historical Keywords Maria Teresa Oliveira
Transcription Leonor Tavares
Main Revision Clara Pinto
Contextualization Leonor Tavares
Standardization Clara Pinto
Transcription date2016

Text: -


[1]
 carta de VSa de 3 de julho que me foi dada em 15 25 de setem-bro, respondi em 29 do mesmo mes, ou 9 de outubro entregando a carta ao Embaxador marques de sande, pella qual via tinha recebido esta de Vsa.
[2]
elle me significou depois de partido o pro pataxo
[3]
como com a doenca da Rainha lhe esquecera de a mandar nelle, po-rem que a determinava mandar por hum navio que esta pa ir ao porto,
[4]
e avisandome de que avia agora outro pa essa cidade, e pro-metendome de que mandaria esta carta no masso d el Rei, a faso tornando nella a dar conta do negoceo que Vsa me Encomendou cerca de simão gomes d almeida.
[5]
depos que tive a carta de VSa esperei por elle, porque tinha asentado comi-go de me traser este papel, (que aqui mando, e mandei outro na carta que esqueceu) pa eu o mandar a Vsa antes da carta de VSa me chegar
[6]
e sabendo o interecado della do zelo com que VSa lhe acudia, com lagrimas nos olhos deu muitas gracas a ds, experimentando a grande misericordia que com elle se usava.
[7]
direi o que com este homem, antes, e depois desta carta tenho pasado.
[8]
Veyo aqui ha tempos a buscarme com huã carta do conde de ponterve, na- qual lhe disia o dito conde, que VSa tinha remettido o seu negoceo a mim e ao mestre frei Antonio de s bernardino
[9]
respondemoslhe, que tal ordem não tinhamos, e não obstante isto, propos elle o dito negoceo, de como fugira desse Reino, por temer ser preso no sto officio por testemunhos falsos de pessoas que estavão presas,
[10]
e que chegado a esta terra vivera sempre como christão, e que se elle fora judeo de antes, o não fora depois que nestas partes alcansou as parvoises, e maldicois que crião os judeos;
[11]
e que ainda que elle e sua molher podião aqui viver christam, e catholicamente, não obstante as muitas instancias, que os judeos, assim os daqui como os de olanda lhe fasião pa elle ser judeo,
[12]
contudo que tinha tres filhinhos, dos quais temia que pello tempo adiante se aqui se criassem se perdessem infalivelmente,
[13]
e que por Esta resão desejava tronar com sua casa pa portugal,
[14]
em tanto, que pello conde de ponterve, quando daqui por fin escrevera a VSa que suposto elle nunqua fose judeo, con-tudo, que se fose necessario se levantaria ahy testemunho de que o tinha sido pa contestar com as testas que tinhão dado nelle, E que com a seguranca de que o não avião prender, nem castigar em auto publico iria a esse Reino faser sua confisão,
[15]
E que estava espantado do conde lhe es-crever que nos vinha a mim e ao mestre fr Antonio commettido este negoceo, e nos lhe disermos que não tinhamos tal comissão.
[16]
dissesmolhe como na verdade a não tinhamos, e o animamos a conservar sempre a fe, e procedimento catholico:
[17]
e eu lhe acrescentei, que na forma Em que elle tinha escritto offendera muito o sancto officio, porque como escrevera que confessaria o que não tinha feito esse sancto tribunal nenhuã cousa estranhava e castigava tanto, como o não lhe falarem toda a verdade lisamente que por nenhum modo avia confessar o que não tinha sido;
[18]
E que assim disse muito a deus que o encaminhasse, que se Estava innocente, deus lhe abriria caminho a seu bom intento.
[19]
com isto se foi e por alguas veses veyo a esta casa a saber se nos era chegada alguã ordem de VSa sobre o seu negoceo mostrando senpre notaveis ansias de se ver em portugal pa tratar de sua salvacão e da de sua casa affirmando sempre que nunqua fora judeo, abominando tal cegueira, e disendo que se a tivera dantes a não teria depois que conheceo bem a maldicão e toliçes de tal crenca.
[20]
Veyo ao depois com segunda carta do conde de ponterve que me mostrou, na qual lhe disia o conde que falase comigo, que a mim me vinha Remettida ao de VSa
[21]
como eu a não tinha, disialhe sempre o mesmo, estimando de o ver alguãs veses na cappella da Rainha ainda em dias de bolsa,
[22]
nella o vi do pulpito o octavo dia de nossa snra da Asumpsão, e logo taobem no seguinte domingo nas vesporas, e me pediu que lhe quisese dar huã palavra porque andava com grandes desenquietacois de sua conciencia.
[23]
eu lhe disse, que por ventura a dos senhores inquisidores diria ao conde que falasse elle simão gomes aqui comigo, não por eu ter ordem alguã, senão pello eu poder encaminhar melhor nesta materia,
[24]
E assim que com toda a clareza me falasse nella, pa que eu lhe disesse o que mais lhe conviesse.
[25]
disseme que elle não escrevera a VSa toda a verdade, porque negava que elle sido judeo, e que elle o tinha sido, porque assim lho ensinou seu pai, que judeo foi em portugal, e que judeo chegou aqui,
[26]
porem que lendo ao depois que chegou a esta terra alguns livros judaicos, e sabendo mais o que os judeos crem, e , lhe abrira deus os olhos, e fora tal a aversão de semelhante crença, que logo comesara a fazer contas consigo de que vivia enganado, e tratara de viver como bom christão muito de coracão, porque se assim não fora, elle estava huã terra livre;
[27]
e porque assim os judeos daqui como de olanda, aonde dis tem parentes, lhe comesarão a faser grandes instancias pa viver como elles vivião, proposera de se ir pa portugal, porque ainda que aqui elle, e sua molher podião viver catholicamente, seus filhos que aqui se avião criar, se elle qua fiquasse se avião infalivelmente faser judeos, pello que quando daqui se foi o conde de ponterve de ponterve tratou deste seu intento escrevendo por elle a VSa na forma Em que escreveo,
[28]
porem que agora queria escrever noutra confessando toda a verdade,
[29]
e que quer ir pa confessar todas as suas culpas, e tudo quanto tem feito e sabe nessa Mesa pa sua salvacão, da sua molher, e seus filhos que dis ser o mais velho de oito annos
[30]
e que elle me daria aviso das primeiras em-barcacois pa elle mandar por minha via a VSa outra carta nesta forma
[31]
e com esta resolucão se despidia de mim hum domingo a tarde depois do ouitavo dia da assumpsão que qua se celebra pella conta antigua
[32]
depois me veyo ver duas outras veses com grande satisfacão da resolucão que tinha tomado,
[33]
e na ultima vez me avisou de que naquella somana avia navio pa portugal, e que me traria a carta de VSa pa ca a mandar por minha via
[34]
Neste interim me Entregou o Embaxador a carta de VSa, e eu esperei que elle viesse, como me tinha prometido
[35]
E como veyo, pa lhe mostrar o favor o favor que VSa lhe fazia, que elle recebeo com lagrimas nos olhos, e com notavel alvoroco ja trasia a carta feita,
[36]
e eu lhe desse que acresentasse hum capitulo nella Em que agradecesse a VSa a misericor-dia que com ella se negava, e emendasse esse ponto dos quarenta mil reis, que elle dis pusera com boa tenção.
[37]
propus a este homem o quanto me parecia dificultosa huã das condicois que aponta pa ir, qual he o não sair em auto publico.
[38]
respondeume que por nenhum modo veria nesta penitencia, porque elle nunqua fora judeo pu-blico, nem aqui procedera como tal, que sempre devia conservar a fama de que vivera como christão porque determinava viver em Lxa, e nella meter suas filhas em religião, ou casalas com pessoas christans velhas
[39]
e assim que neste ponto de sair a publico, por mais que lhe representei o quanto devia cortar por tudo pa sua salvacão não pude acabar com elle cousa al-gua,
[40]
dis porem que se por falta deste favor que elle espera desse sancto tribunal, for tal a sua desgraça que se não va pa esse reino, que vivera neste como os mais catholicos nelle vivem, e fara quanto em si for, que seus filhos vivão na fe catholica, ainda q o perigo he grande pa elles;
[41]
que elle e sua molher resolutos estão a nunqua a largarem, por mais com-bates que tenhão.
[42]
faleilhe acerqua de sua molher.
[43]
Respondeume que as molheres seguem os maridos, e que a sua estava na mesma resolucão de se acusar nessa mesa.
[44]
na tarde Em que se resolve a escrever nesta forma, pa me representar a forsa que os judeos lhe fasião pa elle taobem o ser, principalmente os de Olanda aonda dis ter parentes me mostrou hum escrito, encobrindo os nomes que vinhão abaixo assignados, Em o qual lhe disião estas palavras.
[45]
vai terceiro aviso a Vm pa ser qual deve ser,
[46]
leia esse papel, e se tiver alguã duvida pode mandala diser pa se lhe satisfaser.
[47]
O papel era huã folha em portugues e o lugar e o lugar do sinal de quem o tinha feito, estava ja cortado,
[48]
continha huã pregacão que algum rabino lhe fasia, em que o reprehendia muito de que tendo elle o sangue dos judeos o não era, e o grande escandalo que com isto dava,
[49]
e que so a lei de moises era verdadeira,
[50]
que abrisse os olhos pa ter a lus de deus com a sua lus como disia o profeta,
[51]
e que se não fosse judeo avia vir sobre elle a maldicão de corê e ulbiron,
[52]
e assim outras parvoisses como estas continha o dito papel,
[53]
e disse que como aquelle, lhe tinhão ja mandado outros, mas que nenhum abalo lhe fasião, nem lhe avião faser com o favor de deus, que tudo guardava pa mostrar nessa mesa.
[54]
o homem he sesudo, de bastante juiso, anda vestido, e bem vestido, e dis ter aqui tanto negoceo como os demais,
[55]
e que se não quer ir por falta alguã, mais que por sua salvacão e da sua casa, e familia,
[56]
e affirma a não ha de misturar por nenhum modo com esta gente, pa que nelle e seus filhos se acabe a maldicão
[57]
são palavras suas, de sua geracão.
[58]
sempre falou comigo na mesma igualdade tirando o que encobriu no tempo referido, abominando sempre o desaforo dos judeos portugueses que aqui mo-rão,
[59]
e de nenhum mostra ter satisfacão na materia de fe ainda que no esterior a professem como duarte da sylva e gomes Rodrigues, mais que de fernam men-des da costa.
[60]
disseme que hum seu irmão estava preso no sancto officio
[61]
, e que este seu irmão fora judeo como elle foi porque assim os ensinou seu pai.
[62]
dis que como for a essa mesa como espera lhe ha de dar muito importantes noticias, e VSa ha de esperimentar o quanto seu animo esta, e ha de estar sempre contrario ao judaismo.
[63]
mostra ter escessivo alvoroco de faser esta sua confissão, e he grande a confianca que mostra ter em deus de VSa lhe faser o favor que pede,
[64]
e ainda antes de Vsa me escrever tinha esta confianca, disendo que lhe não pode deus faltar com o remedio, e usar com elle de misericordia pois lhe abriu o Entendimento pa conhecer a verdade com aquillo mesmo com que os outros mais se embaração,
[65]
e que taobem elle podia seguir a mesma perdicão em que dantes estava se a misericordia divina não fora,
[66]
e por isto esta muito confiado nella que lhe não ha de faltar neste seu intento.
[67]
eu confesso a VSa que tenho dado gracas a deus por me parecer que este homem deveras se converteo,
[68]
poder me hei enganar, mas a sua perseveranca muito anima,
[69]
e se pella conversão de qualquer alma devemos faser muita estimacão, este pobre homem se deveras se converte muito se deve estimar a por sua melhora, como por verem caminho aberto a podela ter, aquelles que sendo tão perdidos como este foi, a quiserem alcansar.
[70]
VSa fara o que for mais servico de nosso snr que guarde a VSa
[71]
Londres 1 de novembro 1663
[72]
fr Chstovão do Rosro
[73]
a propia carta de VSa tenho mandado na primeira reposta.

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