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Maarten Janssen, 2014-

CARDS2024

1765. Carta de frei José de Lemos para frei Agostinho de Jesus Maria.

SummaryFrei José de Lemos conta ao destinatário que certas mulheres de Salzedas andaram a dizer estarem possuídas por almas de defuntos, pedindo depois missas, romarias e esmolas aos parentes dos mesmos. O objetivo da carta era o de fazer chegar o aviso ao Tribunal do Santo Ofício.
Author(s) José de Lemos
Addressee(s) Agostinho de Jesus Maria            
From Portugal, Lamego, Salzedas
To S.l.
Context

Dentro do fundo do Tribunal do Santo Ofício existem as coleções de Cadernos do Promotor das inquisições de Lisboa, Évora e Coimbra. O seu âmbito é principalmente o da recolha de acusações de heresia. A partir de tais acusações, o promotor do Santo Ofício decidia proceder ou não a mais diligências, no sentido de mover processos a alguns dos acusados. Denúncias, confissões, cartas de comissários e familiares e instrução de processos são algumas das tipologias documentais que se podem encontrar nestes Cadernos. Quanto ao crime nefando e à solicitação, são culpas que não estão normalmente referidas nestes livros.

Support uma folha de papel dobrada escrita em todas as faces.
Archival Institution Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Repository Tribunal do Santo Ofício
Collection Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor
Archival Reference Livro 402
Folios 171r-172v
Transcription Leonor Tavares
Contextualization Leonor Tavares
Standardization Catarina Carvalheiro
POS annotation Clara Pinto, Catarina Carvalheiro
Transcription date2008

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J M J Rmo Sr Fr Agostinho de Jhs Maria

Meu Irmão e Sr sempre da ma especial veneração estimarei que Va Pe logre saude, para com ella fazer mtos serviços a Ds e se sirva da q me assiste em o que for de seu agrado. Amigo ja ha tempos, que ando com alguns estimolos na conciencia, q me obrigão a escrever esta, porq sei q em Va Pe esta prudencia capacidade, e segredo pa ponderar o que quero relatar-lhe. Lembrado estara Va Pe que ha perto de 2 anns ou couza q o valha que eu vi de hũa carta que Caetana Umbelina deste Lugar de Salzedas lhe inviou, pedindo-lhe certos suffragios pa haver de se salvar a alma da maỹ de Va Pe a Sra Maria teixeira: Va Pe como Religo amo e prudente me inviou proguntar, que arenga era aquella? suppondo q poderia ter, ou alcançar algua notícia; e não se enganou, porq tinha tido cabal conhecimto da arenga respondi a Va Pe o q sabia no cazo, q era hũa Maria de Ramos deste Lugar Va de Manoel Miz, q andava com aquellas invençoens, de propositos, ou delirios. E inclinando-me a piedade, julguei q aquillo erão fatuidades de molherinhas, que poderia ter emenda com dizer-lhe a doutrina, e verdes de nossa sta . Assim o fis a ella, mas mal aceito; e dei a entender a Va Pe q não acreditasse o dito de doudas como não acreditou. Como politico respondeu a tal Caetana da Umbelina (hoje cazada com João dos Aos) como devia responder; e eu lhe entreguei a tal carta, q a mandei chamar a Igreja pa lha dar, e tambem hua aspera correção sobre o seu falso zelo. E como a carta confirmava o q e dizia, e tinha dito, tambem o estimei, pa q visse q lhe dizia a verdade. Porem isto importou de pouco, porq sempre ficou no seu errado conceito, respondendo-me como por escarneo,: que sim seria tudo como eu dizia, q o q ella passava, so Ds o sabia, dando-me a entender q a tal alma tambem lhe cauzava suas dores. Emfim como vio, q eu era contra, disfarçou o q pode, e entendo q com as Sras Irmãas he q mais se declararia, porq como neste negocio era procuradora de Ma de Ramos havia de fazer as ptes mto bem feitas pa as capacitar a fazer os tais pedidos. Esta carta, q foi a Va Pe escreveo-a hum cleriguinho, q abaixo direi, q este merecia com hũas boas diciplinas por concorrer, e fomentar estes dilirios, a fim de comer, e do lucro de alguã missa. As Sras Irmãas como tinhão a ocazião de alguãs vezes se virem confessar a esta igreja bastantemte me custou despresoadi-las do medo com q andavão, e falsa preocupação, dizendo-lhe a verdade, e intimando-lhe q antes pecavão se concorressem inda com esmollas por tal motivo; que as fizessem sim mas como suffragio pellas almas do purgatorio, e tambem de sua maỹ, porq a bondade de Deos a acceita; e que todas aquellas pessoas, q lhe persuadião os tais suffragios pedidos pella bocca de outra, ou outras como vozes de alma particular as reputassem por doudas, dilirantes, ou invencioneiras etcra Nisto ficarão certas; se bem não sei se depois lhe mandarião dizer alguãs missas, esmollas etcra porq o sr Pay tambem abominava isto. Cuidei eu q semilhantes couzas estavão soccegadas, qdo não ha muitos tempos torna a tal Maria de Ramos a fingir que tinha em si a alma da mer de Joseph Montro lavrador, que para haver de se salvar era precizo taes, ou tantas missas, tal romaria etcra e a persuadir, ou a mandar persuadir isto os filhos, e filhas de tal defunta Verbi gratia a molher de Silvestre de Aguiar, e outras parentas, que promptamente fizerão tudo, e o cleriguinho acompanhando o farrancho as romarias, e pondo os preceitos para falar etcra Ora va vendo. Passado pouco tempo torna com outro despreposito dizendo que dentro em si tinha, ou nella falava a alma de Bernardo de Oliveira por alcunho o fas mister , (este moço cazou com Clara Maria deste lugar filha de Eria de Cravalho, era soldado auxiliar, morreu de hũa bala no cerco de Almeida) persuadindo a tal viuva, que seu marido como morrera daquella desgraça não tivera com quem repartir a sua vida, que andava a 3 annos por aquelles montes, ou monte de Santa Elena desemparado que assim queria tantas missas, taes esmolas, e romaria a Santa Elena, e que la se dissesse missa e que asim iria para ceo. Logo a molher e mais alguns parentas, e a tal Maria de Ramos com o clerigo forão satisfazer o pedido a romaria, missa, onde (me dizem) falou o que quiz, e o zote do Clerigo a por o preceito para falar etcra tambem se havião de dar esmolas etcra Agora dizem-me, que tem dado a entender, que tambem a alma de Eria de Carvalho falecida havera hum anno may da vila que asima digo anda pedindo alguãs, ou certas couzas; porem como ja obrão com tal resguardo, e segredo não posso ter caval noticia do que se passa no cazo. A esta Maria de Ramos o primeiro despreposito, que lhe ouvi, e conheci foi havera 5 annos dizer ella, que a alma de seu marido Manoel Moniz viera despozar-se com ella outra ves, porquanto o primeiro matrimonio em vida nao fora bom por ser feito por amores, ou ella o obrigar a cazar; e o mais que ja me não lembra, porque como tomei aquillo por delirio, pusme a rir, quando mo disse, e não menos que me mandou chamar a sua caza para se confessar, porque dizia ella que estava muito doente; eu lhe disse, que se curasse, que se emcomendasse a Deos que então se confessaria; que quem asim dizia aquilo, não estava capaz de confissão etcra logo a mer desconfiou de mim. Depois forão-se seguindo as arengas pella ordem que relato He de saber que esta molher nas ocazioens em que ella dis a apertão mais as almas para pedir, ou falar, finge, certos ou verdadeiros, huns dias soluços, em outros falta de vista, dores, fastios, etcra e que anda muito agil, tendo para si, que so o seu remedio são os preceitos, e exorcismos, ou rezas como ellas lhe chamão, e que por força delles fala, come, e passa milhor etcra e sobretudo o satisfazer-se o que ella pede para a alma a deixar de molestar, porque emquanto o não satisfazem lhe anda cauzando aquelles effeitos; depois segue-se dar parte disto a quem toca para a satisfação que entendo ha de ser o padre dos exorcismos para o recado ter mais efficacia. Como ella não he de todo pobre tem sua pipinha, bolos de Lamego em que trata, sempre no fim da reza se molha a bocca, merenda etcra. E asim nunca lhe faltara desta rele de ignorantes, como são quasi a mayor parte dos clerigos destes coutos, quem lhe faça a imaginada caridade. Porem a quem nisto julgo culpado he ao Padre Luis Monteiro seu vizinho, que Vossa Paternidade conhece muito bem, que de 15 ou 16 annos se foi ordenar com reverendas falsas, e como vão sem sciencia, e capacidade asim ficão, asim vivem e os desgraçados Prelados desta caza por amor de quatro empenhos, tudo passão, e como alcanção Licenca de dizer missa ficão navegados que em conciencia alguns, como este a não podem dizer sem dispensa; e com presumçoens de exorcista oculto , (que eu não sei que tal Licenca se lhe de) e proguntado elle testemunha pello contheudo no conjuro disse nada, ou o que quis. Tambem presumo, que os confessores, ou confessor a esta molher lhe aprovão estes dilirios, porque se ella achasse hũa universal repulsa se desenganaria Aqui vem muitas vezes o Padre Santos de Meixedo, que he outro tal como o de sima e demais alcançou licença para confessar, por valimento do Capitam mor, que me parece mal distinguira o portugues; eis ahi posto com estas molherinhas, o que la passão não o sei eu, mas como muitas vezes quando vem molha a palavra tudo serão louvores, e aprovaçoens; porque se ella falando nestes despropositos como ja lhe disse lhos despresuadissem, e não aprovaçem isto não teria sequito della, e de quem a acompanha. Olhe Vossa Paternidade a Ozoria molher de Thome de Crasto, tambem aqui andou com estas parvoices, com huns acidentes, com huns gritos na missa, dizendo que era a alma de Manoel Soeiro capitam Mor que foi destes coutos, e era a sua teima dizer que era precizo hir a Senhora da lapa estar la de novena etcra. Tive eu a ocazião de lhe falar dentro, e fora de confissão, e intimar-lhe a verdade, e como o Santo Tribunal castigava isto, parece-me que se emendou, se he que por velha ja não tem tanto geito para a historia. Outra mais antigua a Engracia molher do Frutuozo, tambem se sahio com o dizer que nella estava a alma de sua Irmãa molher que foi de Joze Bento, e graça he que lhe mandarão cantar hũa missa a senhora da piedade para haver de hir para o ceo, não tornou a sahir com outra fornada, porque me parece que se lhe falou ao dipois pella porta dianteira, ou da verdade todas estas couzas ja ha tempos me andão fazendo meu escrupolo, porque vejo os graves damnos, que daqui podem nascer na liverdade destes rusticos; (he que na de alguns ja não tem nascido) porque para tirarem consequencias mas he o demonio fino para lhas ensinar Verbi gratia que podem furtar, e passar, e depois de mortos virem restituir. Que como depois da morte neste mundo as almas fazem penitencia que podem viver nos peccados. E que não sera tam certo o que dizem os livros, e a fe que as almas são julgadas conforme o estado em que acavão etcra estes, e outros erros, que Vossa Paternidade pode conhecer o demonio se não descuida de ensinar com as suas malditas sugestoens me rosolvi a escrever esta a Vossa Paternidade debaixo de todo o segredo natural, e tal qual a materia o pede, pellos gravissimos damnos, que de o não guardar podem resultar para o que da parte de Deos lho imponho, que nem diretamente, nem indiretamente o de a entender fora de seu confessor, que buscara douto, e pio, inclinando-se mais nesta materia ao douto, relatando-lhe tudo isto, e com a mesma carta parecendo-lhe, para que se nesta materia entender, que se deve denunciar ao Santo Offício Vossa Paternidade o faça em meu, ou seu nome em quem nesta parte descarrego a minha conciencia na de Vossa Paternidade e tudo o que relato passa na verdade e lho affirmo sendo neccessario in verbo sacerdotis.

Salzedas 6 de 9bro de 1765 De Vossa Paternidade Irmão muito venerador e affectuozo Frei Joseph de Lemos

Legenda:

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