Há três fontes documentais e uma monografia que permitem
contextualizar a personagem histórica de Rosa Maria Egipcíaca, bem
como o círculo em que se movia: trata-se dos processos 2901, 9065 e
18.078 da Inquisição de Lisboa, arquivados no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, e uma monografia da autoria do antropólogo Luiz
Mott (Mott, L. 1993. Rosa Egipcíaca, uma Santa Africana no Brasil. Bertrand Brasil). As pessoas envolvidas nos processos 2901 e 9065
enquanto réus são Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, escrava forra
(natural da Costa de Ajudá, de etnia courã e residente no Brasil), o
Padre Francisco Gonçalves Lopes (português, residente no Brasil) e o
Padre João Baptista de Capo Fiume (italiano, residente no Brasil).
Os primeiros dois conheceram-se em São João del Rei (Minas Gerais),
ainda Rosa era escrava. Segundo o seu testemunho, em 1748
converteu-se à vida religiosa guiada pelo Padre Francisco Gonçalves
Lopes e abandonou um passado de prostituição. Afirmou à Inquisição
ter sentido “invasões espirituais malignas” e ter sido exorcizada
pelo padre. Alguns acontecimentos foram contribuindo para a
crescente má fama de Rosa e para a desconfiança das autoridades em
relação a ela. Em 1749, numa igreja, estando Frei Luís de Peruggia a
discursar, Rosa levantou-se e gritou algo sobre os demónios
presentes no local, caindo depois no chão. Foi imediatamente
exorcizada, mandada prender pelo bispo e açoitada no pelourinho da
praça pública, episódio que a terá deixado paralisada do lado
direito. Depois disso não havia quem a confessasse e Rosa pediu uma
audiência ao bispo de Mariana para provar a sua sinceridade. Foram
feitas provas de exorcismo na presença de vários sacerdotes, mas a
escrava não conseguiu convencê-los de que estava possuída. Vendo o
seu desespero, o padre Francisco Gonçalves Lopes convenceu Pedro
Rodrigues Arvelos ‒ um lavrador amigo de ambos – a comprar Rosa à
sua proprietária, e assim a escrava foi trocada por um “moleque”. Em
1751, Rosa e Francisco Gonçalves Lopes decidiram ir para o Rio de
Janeiro, dada a sua fama de "velhaca" em Minas, e segundo o
testemunho do Padre Filipe de Sousa, próximo dos réus, porque
quiseram fugir a um possível julgamento de Rosa. Foram vivendo em
casa de amigos do padre e a escrava mudou de nome, acrescentando-lhe
"Maria Egipcíaca da Vera Cruz". Em 1751, Rosa aprendeu a escrever
com Maria Teresa do Sacramento. Há dois documentos originais da sua
letra nos processos da Inquisição, ao lado de muitos outros de que
foi autora mental por os ter ditado à sua mestra de escrita. O seu
director espiritual passou a ser Frei Agostinho. Em 1754, Rosa, o
padre Francisco, frei Agostinho e alguns patrocinadores fundaram o
Recolhimento de Nossa Senhora do Parto. O bispo do Rio de Janeiro,
Dom António do Desterro, nomeou como primeira regente Maria Teresa
do Sacramento (de 28 anos, natural de Lisboa), embora fosse Rosa a
verdadeira responsável pela instituição. O Recolhimento seria
destinado "a mulheres pecadoras que nos confessionários diziam que
tinham ofendido a Deus por não terem casas para morar" (p. 42 do
livro de Luiz Mott) e teve diversas recolhidas de várias idades.
Maria Teresa não se sentiria como total regente, e, juntamente com
Frei Agostinho cujos exorcismos não resultavam com Rosa, denunciou a
africana ao bispo pelo seu comportamento estranho. Isto porque Rosa
continuava com frequentes ataques e desmaios, chegando a agredir e
maltratar quem estivesse por perto, necessitando de muitas atenções
e diversos exorcismos, descritos por algumas testemunhas do processo
inquisitorial. Frei Agostinho deixou de ser seu director espiritual,
também por ter adoecido, e foram nomeadas outras pessoas para essa
função. A fama de Rosa agravou-se também porque, estando numa igreja
a assistir à missa, viu que estavam duas senhoras a conversar e
avançou sobre elas. Destas duas pessoas, uma pertencia à elite do
Rio de Janeiro (Dona Quitéria), o que fez com que, por ordem do
bispo, Rosa fosse expulsa do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto
(1758). Dificilmente a ré se livraria da fama de embusteira, mas
para que Rosa não recebesse nova sentença de açoites ‒ que teria,
como escrava -, pediu a Pedro Rodrigues Arvelos a sua carta de
alforria, e tornou-se liberta. Nos sete meses seguintes, Rosa viveu
em casa de uma amiga, e depois na casa do padre Francisco Gonçalves
Lopes, anexa ao Recolhimento. Entretanto, ficou como seu director
espiritual Frei João Baptista, e durante este tempo Rosa disse ter a
premonição de um dilúvio. Houve alguma expectativa em relação a esse
acontecimento e, quando ele se deu, cresceu ainda mais a sua fama.
Voltou a entrar para o Recolhimento sem explicação aparente (mas
como na época o bispo estava doente, pode ter havido um
aproveitamento da sua debilidade). No ano de 1759, as quatro filhas
de Pedro Rodrigues Arvelos e Maria Teresa Arvelos entram para a
instituição (Maria Jacinta, de 13 anos, Faustina, de 16, Genoveva,
de 19, e Francisca Tomásia, de 11). Rosa era motivo de adoração, tal
como as suas relíquias (dentes, sangue, cabelos, cartas, roupas e
saliva, com que se faziam bolinhos para alívio das meninas que
sentissem maus espíritos). Chegou-se a mandar fazer um retrato de
Rosa para ser adorado na igreja, mas a Inquisição nunca o conseguiu
encontrar. Já em 1762, a 22 de Janeiro, Dom António do Desterro
pediu que Rosa e o padre Francisco Gonçalves Lopes fossem presos por
culpas de heresia formal. Coube ao Promotor do Juízo Eclesiástico
local, Dr. António José Correia, formalizar o auto de denúncia,
levando a portaria a casa do Padre António José dos Reis Pereira de
Castro (principal representante da Inquisição no Rio de Janeiro),
que tinha sido já quem ordenara a sua anterior expulsão do
Recolhimento. Não há indicação da causa de uma acusação formal
repentina, mas, segundo Luiz Mott, seria por Frei Manuel da
Encarnação ter sido eleito em 1761 Vigário Geral, e ter sido ele um
dos que pressionaram o bispo para que punisse Rosa na altura do
incidente com Dona Quitéria. Ao todo foram ouvidos no Rio de Janeiro
doze homens e sete mulheres, sendo o primeiro o Padre Francisco
Gonçalves Lopes, que relatou episódios passados com a ré, mas sem a
acusar. No entanto, a maior parte dos testemunhos foram
incriminatórios e o comissário declarou haver fundamento para um
mandado de prisão, que foi dado a 4 de Fevereiro de 1762. Mais nove
testemunhas foram ouvidas até ao dia 13 do mesmo mês, também elas
maioritariamente incriminatórias. No dia 20 começou o interrogatório
a Rosa, e o padre acabou também por ser detido a 8 de Março do mesmo
ano. No dia 6 de Março, Maria Teresa Arvelos apresentou-se ao
inquisidor e entregou-lhe 55 cartas que ela e seu marido tinham
recebido em São João del Rei (26 ditadas por Rosa, 22 do Padre, 4 de
Maria Jacinta e 3 assinadas por Faustina, ambas filhas dos Arvelos),
bem como um manuscrito que relatava algumas visões da ré. A 12 de
Março foi a vez de seu marido se apresentar, procedimento comum na
época, pois quem tivesse relação com um réu auto-incriminava-se, já
que os arrependidos ou confessados podiam ter a condescendência do
Tribunal do Santo Ofício. Rosa e Francisco Gonçalves Lopes estiveram
presos durante um ano seguido à espera de ordens de Portugal. O
único bem confiscado ao padre foi inexplicavelmente o seu escravo
Brás, que por causa das acusações contra seu senhor também foi
preso. Foi leiloado em Agosto, e do processo consta o "Auto de
Arrematação do Mulato Sequestrado do Padre Francisco Gonçalves
Lopes", que foi vendido por 510 réis. A 1 de Março de 1763, o
escrivão deu os autos como conclusos, pois da parte da justiça do
bispo já não se poderia actuar. A 29 de Março do mesmo ano, o
Comissário António José dos Reis Pereira e Castro determinou a
remessa dos presos para o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. As
despesas da viagem foram pagas com o dinheiro conseguido com a venda
do escravo Brás. Chegaram a Lisboa a 2 de Agosto de 1763 (a viagem
terá demorado cerca de três meses) e foram encaminhados para os
cárceres da Custódia. Foram revistados e o que confiscaram ao padre
foi: uma caixa de tabaco velha de prata, um breve de marca com seu
cordão, tudo em ouro, um garfo e colher de prata, 60 réis e um
lenço com um embrulho de papéis. Ainda nesse dia foram transferidos
para os Cárceres Secretos. A partir de 19 de Outubro, Rosa foi
ouvida, mas o padre adoeceu, de modo que passou um ano até ser
interrogado pela primeira vez. Na sala de audiências estariam o réu,
os guardas que controlavam as saídas, um inquisidor e um notário.
Rosa teve seis sessões de interrogatório muito espaçadas, que
decorreram até 4 de Junho de 1765 (ano dos seus 45 anos) ficando
sempre presa no cárcere inquisitorial. A Mesa pediu que todas as
onze testemunhas do Brasil voltassem a ser inquiridas e que se
encontrasse o terceiro réu do processo, Frei João Baptista de Capo
Fiume. Mandou também que se procurasse o retrato de Rosa que era
adorado no Rio. Quanto a Frei João Baptista, o familiar responsável
disse ter procurado o sacerdote, mas os que o conheciam disseram que
tinha voltado para Itália (terá falecido em 1786, em Bolonha, no seu
convento, aos 74 anos). Quanto aos interrogatórios feitos ao padre
Francisco, esses tiveram início a 29 de Março de 1764. O réu tentou
desresponsabilizar-se alegando que tinha sido enganado por Rosa e
pelo crédito de que ela auferia, enquanto santa, da parte de
sacerdotes com posição hierárquica superior à sua. Entretanto,
descreveu no processo as experiências vividas com aquela ré,
chegando inclusivamente a relatar um episódio em que Rosa o terá
tentado seduzir. A Mesa conclui que o réu seria culpado, suspendeu-o
de confessor e de exorcista, obrigou-o a orações diárias e
condenou-o a cinco anos de degredo em Castro Marim. Permitiu, no
entanto, que continuasse a celebrar missa. A 24 de Março de 1766, o
sacerdote partiu para o degredo, mas o facto de ter adoecido em
Castro Marim levou a que lhe fosse autorizada a transferência para a
sua Beira natal. O processo de Rosa ver-se-ia prejudicado pelas
novas audiências às testemunhas do Brasil, na sua maioria
desfavoráveis à sua libertação. Este processo termina com um escrito
de Ana do Coração de Jesus (rapariga recolhida no Rio de Janeiro)
com acrescentos ao seu depoimento.
O processo 18.078 consiste na minuta da certidão da fé de
notários e auto de falecimento da ré Rosa Maria Egipcíaca e nele
pode ler-se: "Em o dia de hoje doze do prezente mez de outubro do
prezente anno de mill setecentos e setenta e hum fomos ambos
chamados aos carceres secretos desta inquizição e indo em companhia
do guarda António Bapstista e dos digo que serve de Alcaide do
Medico e mais guardas ao carcere da cozinha nella achamos hum corpo
morto que reconhecemos ser da preta Roza Maria Egisiaca contheuda
nestes auttos na qual se achava preza aqueles ditos Medico Alcaide
guardas nos foi dito que ella tinha falecido de sua morte natural
originada de varias molestias que padesia complicadas com achaques e
que for a vezitada pelo nosso medico e cerurgião administrandoselhe
varios remedios neçessarios para a dita enfermidade e recebera o
sacramento dascensão de que se pasou esta certidão que asinamos em
os ditos doze do corrente mez de 1771 Manoel Ferra. De [Mez.]".