O autor escreve a um amigo a pedir que este apresente a sua carta no Santo Ofício.
[1] |
Louvado seja Ds
E dey a VM. e a todos os sres e servos dessa caza, a qm me recomendo com mtas lem
|
---|
[2] | branças, e á minha velha, com a saude, q tem mto de seu divino amor pa lhe fazerem mtos
|
---|
[3] | servissos: eu com a q possuo estou pa servir a VS.MS. e pa os encomendar a Ds como faço.
|
---|
[4] |
Meu sor confesso, q tenho algũa semelhança com a jumenta de Balaão
|
---|
[5] | e com Inez da Conceyção. Com a jumta porq ésta ainda q com facilidade consentia
|
---|
[6] | sterni, et capistrâri, e sem a menor rezistencia seguia qualquer caminho em q éra pos-
|
---|
[7] | ta, lá houve occazião, em q não quiz, ou não pode seguir o caminho, por onde Balaão
|
---|
[8] | a quiz levar, e rezistiu de maneyra, q nem antes, nem depoys de a castigar com gol-
|
---|
[9] | pes se lhe sujeytou a ir por elle. E não lhe ficou elle em pequena obrigação, porq se
|
---|
[10] | ella não fizéra o q fez, sem duvida se iría elle meter nos fios de huã espada q em castigo
|
---|
[11] | de haver tomado este caminho estáva aparelhada contra elle nas maos de hũ Anjo, q el-
|
---|
[12] | la vía, e elle não, sem embo de q eélla éra huã jumta e elle hum Propheta. Balaam
|
---|
[13] | vendo ésta rezistencia, sem advertir, q éra extraordinarea e nunca vista na jumta como
|
---|
[14] | ella lhe disse arguindoo, e elle ainda sendo qm éra, advertindolho, o não negou; e sem adver-
|
---|
[15] | tir, q por extraordinarea, éra erro sem desculpa o querela regular pelas regras ordina-
|
---|
[16] | reas, ou não suppor, q a jumta experimentáva alguã força extraordinarea, q a não dey-
|
---|
[17] | chava ir por esse caminho: mas pondo os olhos somte no q se lhe reprezentou à pra vis-
|
---|
[18] | ta julgou ainda q mál, q a jumta éra desobediente, teymosa, e cabecuda, e q tinha mto
|
---|
[19] | bem merecido tudo qto elle lhe havía feyto: mas feyto éra assim, ou vice versa, vejase o q
|
---|
[20] | diz o Textu. E vejase a providencia de Ds em acudir pola innocencia, ainda de huã ju-
|
---|
[21] | menta açoutada por qm não só estava obrigado a na-na açoutar pelo q fez, mas por
|
---|
[22] | isso mesmo q fez, lhe estáva tam obrigado, como tenho dito. E vejase o cuidado q Ds te-
|
---|
[23] | ve de reprehender a Balaam dando palavras a huã jumta não só pa fallar como gente
|
---|
[24] | e pa mostrar a sua innocencia, mas pa erguer, vencer, e attar a hum Propheta em pre
|
---|
[25] | zença dos mesmos, q a havião visto castigar. E ainda Balaam ficára mto peor, se ven
|
---|
[26] | do o q a jumta fez, e ouvindo o q a mesma disse se não dêra por entendido, e fizéra como
|
---|
[27] | devia o q fez a tempo conveniente. E vejase tambem o cuidado q Ds teve em dispor q
|
---|
[28] | este cazo se escrevesse pa q fosse notorio em todo o mundo com todas as suas circunstan-
|
---|
[29] | cias assim louvavens pola parte da jumta como reprehensivens pola parte de Balaão
|
---|
[30] |
E Inez da Conceyção padeceo como a jumta e mto mays; mto mays, porq a jumta
|
---|
[31] | teve contra si hum só, e éslla teve contra si mtos a jumta padeceo em hũ só breve espaço, e élla
|
---|
[32] | padeceo em mtos espaços, e mtas horas, em mtos dias, em mtos mezes, e em mtos annos; a jumta
|
---|
[33] | padeceo em hũ despovoado e ella padeceo em huã corte; a jumta éra huã jumta e ella
|
---|
[34] | éra, ao menos huã mer de bom juizo. E sem embo de ter valor pa padecer tanto, lá pa
|
---|
[35] | rece q houve tambem occazião em q não quiz, ou não pode seguir o caminho, por on-
|
---|
[36] | de a querião levar e devia ser o caminho de se disdizer do q havia dito confessando
|
---|
[37] | q o q havia dito nem éra de Ds nem do Diabo, mas fingido por ella propria, e parece
|
---|
[38] | q o rezistiu de maneyra q nem antes nem depoys de ser castigada com gólpes se sugei
|
---|
[39] | tou s ir por elle, etc.
|
---|
[40] |
E eu tenho como disse alguma semelhança com as duas innocentes |
---|