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Maarten Janssen, 2014-

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1805. Carta de Manuel Pereira Graça, médico, para Bernardo de Vasconcelos.

ResumoO autor explica perante o destinatário as razões pelas quais teme um processo inquisitorial e pede a sua ajuda.
Autor(es) Manuel Pereira da Graça
Destinatário(s) Bernardo de Vasconcelos            
De Portugal, Esgueira, Vouga, Macinhata de Vouga
Para S.l.
Contexto

Processo relativo a Manuel Pereira da Graça, solteiro, graduado em Medicina na Faculdade de Coimbra, filho de José Pereira da Graça, lavrador, natural e morador em Macinhata do Vouga de Serém no Bispado de Aveiro. Foi acusado de heresia por supostamente dizer que sentia mal da fé católica e que na confissão sacramental não havia obrigação de confessar todos os pecados, que a alma morria com o corpo, que a fornicação simples não era pecado mas sim coisa própria da natureza e que se servia disso para poder persuadir as donzelas que queria corromper. Segundo a Inquisição, Manuel Pereira da Graça não cria em indulgências nem no patrocínio dos Santos. O réu terá sido também denunciado porque em Macinhata do Vouga tinha má fama em relação a assuntos religiosos. Segundo consta da apresentação do réu, o mesmo teria vivido em Coimbra, depois teria passado uns tempos em França e mais tarde voltaria a Coimbra para se doutorar em Medicina. Teria assim vindo influenciado pelas terras onde passou, sendo que nas suas práticas e conversas se notavam ideias contrárias ao Papa, aos bispos e ao estado eclesiástico em geral. Várias testemunhas disseram que o ouviram dizer proposições heréticas. Luís da Assunção, um religioso do Convento de Serém, disse que não formava bom conceito do réu em matéria de religião católica por o ter ouvido dizer que sentia mal da sua religião em pontos de fé e que tinha oposições contra a religião e as coisas sagradas, que este maliciava sobre as pessoas que frequentavam os sacramentos da confissão e comunhão e que não ouvia missa nos dias de preceito. Em vez de ir ouvir missa, o réu ficaria em casa (mesmo tendo a igreja perto) ou então desaparecia. Disse-se também que se sabia que Manuel Pereira da Graça murmurava das indulgências e dizia ser inútil dar esmolas aos santos e rogar-lhes pela saúde dos enfermos porque aos santos não lhes importava que sarassem. O reverendo Luís da Assunção também teria dito que sabia que era de conhecimento público que Manuel Pereira da Graça tinha tido uma disputa acesa com o padre João do Livramento e que nessa ocasião chegou ao cúmulo de puxar de uma faca porque o dito padre tinha dito a algumas pessoas para se não fiarem nos ditos do médico. Segundo um leitor de Teologia, Manuel da Virgem, o réu teria também escrito um pequeno livro manuscrito em que fazia declarações contra as ordens regulares e maldizia do celibato e das orações aos santos. O livro andava a circular por entre as mãos dos estudantes. Outra das acusações teve a ver com o facto de o médico ter deixado morrer alguns enfermos sem os mandar sacramentar como seria obrigado. Estas e outras queixas foram formuladas por religiosos de Macinhata do Vouga de Serém. O próprio Manuel Pereira da Graça escreveu à Inquisição dizendo que estava a ser vítima de um conluio por parte dos seus inimigos religiosos e que os ditos nunca tinham tido o propósito de maldizer da fé e da igreja católica. Conteúdo do seu testemunho: teria dito por várias vezes que os frades eram inúteis e mesmo prejudiciais pensando no estado temporal, que o excessivo número de eclesiásticos não só era pesado para o Estado como também para religião, que por isso perdia o seu esplendor; que as esmolas dadas aos padres não eram as mais proveitosas e que antes se deviam dar aos pobres enfermos, que seria mais do agrado de Deus; que numa ocasião quis espancar um frade por ele andar a insuflar a revolta de pacientes contra si sem dizer a verdade; e que vendo que um grande número de moças solteiras corriam todos os dias para se irem confessar, muitas vezes enganando os pais e faltando ao trabalho e que depois apareciam grávidas e faziam coisas contrárias à fé, tinha dito que não lhes servia de nada a confissão e que mais valia estarem a trabalhar nos campos, mas que com isto apenas quis dizer que as moças faziam confissões sacrílegas; que em uma ocasião disse a um eclesiástico em tom de brincadeira que não jejuava porque não tinha apetites carnais e que um dos principais efeitos do jejum era macerar a carne para evitar a concupiscência; que também tinha tido algumas discussões com eclesiásticos relativamente a pontos da religião, mas que o fazia apenas para argumentar e experimentar a ciência e capacidade dos ditos eclesiásticos e nunca por contumácia; e que tinha dito uma vez que nem todos os milagres que se diziam ser o eram e que na altura já era raro Deus fazê-los ou que pelo menos nunca tinha visto nenhum. A 10 de Dezembro de 1799, o réu foi condenado a abjuração leve supeita na fé, mas foi absolvido ad cauthelam da Excumunhão. Recebeu penitências espirituais e instrução ordinária e teve de pagar as custas do processo.

Suporte meia folha de papel dobrada, escrita no rosto e no verso.
Arquivo Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Repository Tribunal do Santo Ofício
Fundo Inquisição de Coimbra
Cota arquivística Processo 7770
Socio-Historical Keywords Rita Marquilhas
Transcrição Leonor Tavares
Revisão principal Cristina Albino
Modernização Clara Pinto
Anotação POS POS automático
Data da transcrição2009

Texto: -


[1]
Bernardo de Vasconcellos
[2]
Como me acho prezo com homenagem para não poder sahir da comarca d' Aveiro, vou por este meio pór nas mãos de vsa, a fim de que vsa se digne representa-lo ao Tribunal do Santo officio o seguinte acontecimento
[3]
Foi-me necessário ir pessoalment requerer aoaudiençia de Serem na comarca d' Aveiro no dia 16 do corrente mez, e como o juiz me não qui-zesse tomar os meus testos, nem acceitar o aggravo, que por isso delle dara, ouverão rezões de ua e outra parte de sorte que elle me autuou, e deixou prezo na mesma cadeia, aonde estavamos;
[4]
requeri-lhe a ma homenagem, a qual elle não so me senegou, mas passou a fazer as maeores vexações de sorte que me foi necessario recorrer ao corregedor, o qual lo-go me concedeu homenagem em toda a comarca.
[5]
No pouco tempo que esteve prezo na da cadea mostrei sempre alegria e tanto que cogigitava de enterter e divertir com ditos as muitas pessoas que me- vizitavao pedindo esmola a quem passava, fazendo que pendurava o cesto pa as esmolas, ja dizendo avia fazer e vender do halcaser
[6]
mas entre estas e outras couzas tive a indescrição de tirar da de cavalleiro da ordem de N Sr Jezus Christo e pola da pte de dentro da janella
[7]
e lembra-me que disse que visto estar o dono prezo e ella não lhe grangeia homenagem a ttirasse como elle ,
[8]
e queria pendurar tãobem ali o capelo e a esmola,
[9]
porem tudo isto era dito e feito com tanto rizo e sem animo nem intenção de injuria, desprezo ou offença
[10]
que as relegiozas do convento da mesma villa, alguns eccleziasticos e seculares, que estavao de vizita, se se escandalizam
[11]
porem como tenho mtos inemegos que consertados com o tal juiz tem pertendido por todas formas vingar-se de mim, e o protestão fazer, podem desfigurar o facto, e culpar-me peraante o santo Tribunal da Inquizicao, recorro ao mesmo sto Tribunal supplicando humildemente perdão da indiscricao e inadevertencia, que tive, que confesso não ouve amimo de insultar a sagrada integreza, nem adevertencia que ouvesse escandalo.
[12]
que o sto tribunal por sua piedade me - faça saber se tenho maes algua couza a dizer sobre este objecto para eu promptamente obedecer
[13]
A vsa em particular supplico me, e que desculpe o não ir pessoalmente pela rezão da homenagem, que limita so aquela comarca.
[14]
e por caridade rogo a vsa se estando dezembaracado necessito ir a prezenca de vsa ou da meza
[15]
Sou De vsa attento cro e humilde C Manoel Pereira da Graça Macenhata de Vouga 22 de Agosto de 1805

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