Illmo Snor
Assim pa obedecer a Va Illma pa o q estou sempre pronto,
como alentado da alegria q recebi á vista da sua firma por
considerar estar Va Illma com a boa dispozição, q todos os dias
ainda q indigno de ser ouvido lhe peço a Deos fui a Folha-
doza, na forma q me ordenou, e fis a informação pedida da
vida, procedimtos, e costumes da mer relatada na carta, como
tambem da qualidade dos paes, condição dos bens, e do q tem
o espozo q a pertende por mer, de q qualidade he, se ella fes
o voto q dis, e se o pai a constrange. Principiei
a informação com cautella pa q não descobrisse o voto da
quella mer, se fosse oculto, e logo achei, não aver pessoa
naquelle povo sem noticia de q ella tinha feito voto de
castidade; he de vinte e nove annos de idade, ocupasse em
costuras, e no officio de tecedeira, está pa com o mundo em boa
opinião, de bem procedida, e virtuoza. Os paes são chris
taons velhos, de gente honesta, bem aparentados, nobres não,
poes q o pai lavra com hũa junta de boes, não só em fazen-
das suas, mas tambem nas alheas por jornaes, e q se criou
servindo amos na provincia do alem Tejo, e tem de seo
duzentos mil res em bens de rais se bem está empenhado
em cem mil res, chamasse o tal homen Mel Ferrão. O espozo
q a pertende por mer he de igual geração oriundo de Sen-
domil, e nacido em Torresello, esteve servindo mtos annos
na predita provincia do alem Tejo, da qual se recolheo
pa sua patria trazendo mil cruzados, q com cem mil res
que tinha de legitima, fazem quinhentos mil res, pouco mais,
ou menos. Depoes desta informação com pessoas fidedignas
fui á Igra tomar depoimento a mer relatada nessa carta
carta, e perguntandoa secretamte se era a q por si, ou por outrem
tinha escrevido a Va Illma pedindolhe conselho q estado tomaria,
respondeo q sim, mas q logo no dia seguinte depoes de mandar
remeter essa carta, instada pello benefficiado Mel Gracia seo parente
e cominada por seos paes, se resolvera a tomar estado de casada,
e lhes fizera essa promessa, se a livrassem de escrupolos de conciencia
E advirtindolhe eu q visse o q fazia, poes q confessava na carta q a Va
Illma escreveo se despozara com Jesu Christo fazendo votos de castidade
e q nosso Snor a poderia castigar renunciando o maes perfeito estado sem
necessidade, poes estava informado, q suposto lhe morreo hũ irmão,
lhe ficarão dous, hũ q tinha ido pa o alem Tejo, outro q tinha em
casa: respondeo, q não avia noticias do q foi pa o alem Tejo, e q o q esta
em casa por achaques q padese he incapaz de casar no q achei falar
menos verdadeira por ser contra o q achei por informação, e conheci estar
ella, sem esperar por resolução de Va Illma, determinada a tomar estado
conjugal. Naquelle pouco tempo q estive falando com aquella
mer, descobri nella mta vontade de estar em opinião de santa sem
renunciar amor proprio, porqto me disse, q quando Deos lhe nam
despachara as peticoes dandolhe vida ao irmão de q fas menção na carta
lhe fizera queixas, dizendolhe, basta Snor q com esta minha virtude
não mereci ser de vos ouvida. E q logo pa dar a intender a não
queria naquelle estado celibado, a deixara em sequidoes na oração men-
tal por mto tempo, achandose até ali por mtas vezes interiormente conso-
lada. E fazendolhe eu advertencia, q pa ter sequidoes na oração bastavão
peccados viniaes q esfrião o fervor do Espirito, ou quererlhe Deos casti-
gar algũa soberba espiritual, e q não devia pertender q elle a despa-
chasse á vontade propria, mas querer o q elle fosse servido dispachar
por sua santissima vontade, e q Sto Anselmo, expondo aquelle lugar
da escritura q affirma fizera S Paulo tres peticoes a Deos sen q fosse
ouvido, comentara, q não era grande o despacho q Deos dava á vontade
das creaturas, mas só aquelle q lhe dá qdo despacha o q he utilidade
dellas. E q não tivesse pa Si, fora inspiração divina aquelle pensamto
pensamento en q se lhe representou, q o estado da virgindade
era vida ociosa, poes he o estado en q se serve mto a Deos, e q
a poderia castigar no estado de casada por faltar ao voto
q tinha feito dandolhe tribulaçoes da carne como adverte
o Apostolo, e permitindo q o homen com quem queria casar
lhe fizesse má companhia. e respondeume q tudo sofreria
com pasiencia pa marecer, q assim o mandasse eu dizer a Va
Illma. Á vista da tal resolução, pergunteilhe de q modo
fizera o voto, se com algũa condição, se por tempo determi
nado, se por engano, ou intimidada de algũa pessoa. respondeo,
q o fizera absolutamente por vontade com toda a delibaraçam
com animo de nunca em toda a vida deixar de viver pura,
mas q não fizera este voto em presença de pessoa algũa, nem
com palavras exteriores, mas só com os pensamentos do
intendimento, e com os affectos do coração. E lembrandome
eu ser esta hũa questão mto controverssa, como Va Illma
sabe melhor q eu, pa lhe dar plena informação, lhe
repliquei, se fizera na idade de dezoito annos só propo-
sito de guardar castidade interiormte, ou se áquelle Deos
q he escrutinador de corações fizera voto absoluto de cas-
tidade! E disse, que não fora proposito, mas promessa interior,
e q tomava aquelle estado poq seo pai a constrangia, o q
achei ser verdade, por ser publico, q o pai dizia lhe
avia de cortar o pescoço, se ella repugnasse aquelle casa-
mento. He o q com toda a verdade descobri sobre o re-
latado nessa carta q veio inclusa Em a de Va Illma
a quem Deos nos conserve por m an Ervedal 23
de agosto de 1701
Humilde servo de va Illma
Antonio Nunes Alvares