[fig1]
Temeridade he molestar a Vossa Illustrissima hũ sogeito, que ainda que
subdito, se acha imcapax, assim pella rezão do sexo, como pella de
sua humilde esphera; animao contudo a tomar este atrevimento
a benignidade de tão santo, e vigilante Prelado, e Pay spiritual, e a
necessidade em que se vê meu spirito, que por não querer tirarsse do que for
vontade de Deos, para segurança da salvação consulta com Vossa Illustrissima
o estado em que deve ficar, e isto porque o seu comffessor, e parocho,
talves com algũ temor de molestias temporais, que lhe podem
sobrevir, a não quer dezenganar.
Meu Pai e senhor com a boa vinda de Vossa Illustrissima
deste Bispado e com a do parocho que hoje assiste nesta freguesia, que com
algũa clareza explicava a doutrina conteuda na pastoral de Vossa
Illustrissima, e no livro da concordia spiritual, e tambem com algũas
praticas, assim do mesmo, como com as de hũ religiozo
comissario dos terceiros do convento de gouvea, sendo de pouca idade me fui
affeiçoando, a querer servir a Deos, e sem embargo que tinha muitos
impedimentos, por viver debaixo do patrio poder, me rezolvi a pedir
licença a meos Pais para entrar por terceira de s. francisco e dandoma
professei findo o anno, e querendo fazer voto de castidade; como
fis na dita profissão pedi para isso licença, e me não lembra se meos
pais ma derão, e estando na idade de 18 annos quando fis a profissão
consagrei minha virgindade ao spozo verdadeiro das almas xpo
Jezus, de quem por meio da oração que tinha quazi continua
sem que deixasse de servir a meos pais no que permetião minhas
forças, recebia particulares favores no interior, aborrecendo
sempre o estado dos cazados; padecendo porem algũas
enfermidades e hũa doença grave, sahi della a dita virtude da
pureza com mais afferro, sendo que padeci muitos tempos
sequidões para os exercitios spirituais não me faltando contudo
o senhor com bons affectos, dezejando eu sempre fazer o que fosse
vontade de Deos. no principio do anno sancto me achei
com algũas tentaçois de que a vida que intentava de guardar
pureza, era ocioza e que o senhor queria outra cousa de mim, e se
bem me vi aflita fui continuando com a oração, e
confiança em Deos com o mesmo intento de conservar a pureza;
[fig1] Succedeo enfermar hũ irmão em quem tinha confiança que tomando
estado me serveria de arimo no cazo que meos pais morressem, para que eu não
desfalecesse no meu intento, e assim pedia com instancia na sua
doença a Deos que mo livrasse da morte, foi contudo vontade sua levallo para si com
cujo successo se me reprezentou que Deos me não queria neste estado que eu
pretendia, e vivi con tão grandes desconsolaçois e desconfianças depois
deste successo que considerava não serião minhas obras agradaveis ao
mesmo senhor em forma que passou maior parte de hũ anno sem receber a
sagrada comunhão e poucas vezes me confessei, costumandoo fazer ameudo
vivi nestes tempos com siquidois graves, e na oração se me reprezentava
que Deos me queria em outro estado, e que ficando no de cazada poderia
gerar creaturas que sendo religiozas louvassem muito a Deos, e que tambem
ficaria emparedada faleçendo meos pais, isto me apertou mais na somana
sancta passada e logo deste tempo, ou por me quererem emparar, ou por
remirem algũas dividas estes me solecitarão espozo sem pedirme
consentimento; o que sabendo eu repugnei, e repugno tomar estado de
cazada, por entender faço agravo ao melhor spozo, e que não será
este o estado em que me aja de salvar, e tambem pello voto que fis e
sempre dezejei conservar, sem ter inclinação em tempo algũ ao
contrário não porque eu o merecesse mas porque o spozo Divino me
dava alentos para vencer o que neste particular se me offrecesse. por
outra parte me fas escrupolo a molestia que dou a meos pais e
parentes não consentindo no cazamento que tem tratado, o que não
recuzo fazer por querer outro spozo temporal, pois o não merecia, e
menos as riquezas que me dizem ter, mas pellas cauzas assima referidas
E porque não quizera fazer senão o que fosse mais vontade de Deos, e esta
me he oculta consulto a Vossa Illustrissima para que me diga o que devo fazer neste cazo
pois o meu confessor me não quer dar nelle dezengano pello temor
referido o que pesso a Vossa Illustrissima con toda a sumição e humildade como
verdadeiro pai das almas e vigilante Prelado me remedee esta
aflicção do spirito ordenando o que mais for serviço de Deos, que sendo o
como eu quizera ficar no estado do celibato, não me dera dever
com que meos pais me lançarão fora de si; sem embargo que não quizera
deixar de servillos e alimentallos com o meu trabalho contanto
que comserve a pureza a qual me parece deficultoza de conservar
nestes tempos no estado de cazada, pois não considero no espozo que me
querem dar o spirito de santo Henrique marido de santa Cunegunda, nem
o de Santo Elzeario, e Santa Delphina. Pesso a Vossa Illustrissima perdão deste atrevimento
[fig1] Atrevimento e molestia que nesta lhe dou o que faço para
segurança de minha alma, e alivio do spirito, pois não hé
justo em semelhante cazo, resolverme sem guia, e torno
a declarar a V Illma que só quero o que mais for vontade
de Deos para segurança de minha alma e que nenhũa
vontade sinto de tomar estado conjugal. A Pessoa de
Vossa Illustrissima guarde Deus como dezejo para emparo de todos, a
quem com toda a humildade peço a benção. Folhadoza
e de Agosto 12 de 1701
Humilde escrava de Vossa Illustrissima
Maria solteira