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Maarten Janssen, 2014-

Representação em facsímile

1634. Carta de Jerónima da Graça, freira professa da ordem de Santa Clara, para frei Cosme da Anunciação, pregador e custódio das ilhas.

ResumoA autora reporta o que tem alcançado por meio dos interrogatórios a que tem sujeitado Mariana da Coluna e as revelações que, a custo, esta tem feito.
Autor(es) Jerónima da Graça
Destinatário(s) Cosme da Anunciação            
De Portugal, Açores, São Miguel, Convento de Santa Cruz
Para Portugal, Lisboa
Contexto

Mariana da Coluna, uma freira da Ribeira Grande (Açores), foi acusada de heresia e práticas de feitiçaria perante o Santo Ofício. Segundo confessou, tudo começara à entrada para a adolescência, por volta dos dez anos de idade, quando se apaixonou por um homem e manifestou a sua vontade de o conquistar. Para tanto, dispôs-se a ir comungar e trazer a hóstia consigo, com o objetivo de entregá-la a uma feiticeira, a fim de que esta praticasse uma reza especial para unir os amantes. Na mesma altura fez um pacto com Satanás, declarando-se-lhe fiel num papel que escreveu com sangue.

Durante os cinco anos seguintes, a jovem continuou a servir-se da feiticeira para satisfazer os seus desejos carnais, chegando a confessar que engravidara algumas vezes e usara poções para abortar. Tinha, também, visões de demónios e de outras figuras do Inferno, que a levavam em viagens, e de um mancebo que a visitava durante a noite e que tinha relações sexuais com ela.

Entrada no convento de Jesus da Ribeira Grande, Mariana da Coluna confessou que, durante o seu noviciado, continuara a viver sob a influência do demónio, e que este lhe causara ódio a Deus. O seu confessor recusava dar-lhe absolvição, e a mestra das noviças, Jerónima da Graça, maltratava-a fisicamente, para a forçar a confessar os seus pecados. Desejando salvar a sua alma, a ré escreveu aos inquisidores, para se confessar e foi levada para o convento das Flamengas de Lisboa, onde foi interrogada.

Os papéis apensos ao processo foram inicialmente entendidos como prova da correspondência mantida por aquela mulher, uma década volvida sobre aqueles acontecimentos da sua juventude. Trata-se de uma trintena de bilhetes dirigidos a Mariana, com marcas típicas do discurso amoroso, povoado pela manifestação do ciúme e de diversas queixas, bem como de avisos para que tivesse cautela com a sua mestra, Jerónima da Graça, em quem não deveria confiar. Mariana tudo entregou de forma voluntária à sua mestra que, por seu turno, encaminhou aquela documentação ao cuidado do padre Frei Domingos de Purificação. Na mesma altura foi acusada de usar de práticas pouco ortodoxas, tendo-se descoberto em seu poder certas partículas de uma hóstia consagrada.

Esta suposta correspondência teve lugar num momento em que as averiguações estavam já em curso, entre 1634 e 1635. Os bilhetes são, consequentemente, reveladores do processo de reflexão, reação e resistência da denunciada - a par da negação em confissão. Como se veio a apurar, entretanto, autor e destinatária eram afinal uma só pessoa: a própria Mariana. A assinatura que consta nos bilhetes foi feita a posteriori, na presença de Jerónima da Graça, encarregada pelo Santo Ofício de extrair a verdade e de certificar a proveniência dos elementos, posteriormente apensos na qualidade de provas documentais.

À vista desta revelação afigura-se-nos lícito colocar em causa o pressuposto pacto com um demónio, na medida em que a presente simulação epistolar - no exercício simultâneo de dois papéis distintos - exibe traços de um intenso e dilacerante debate interior. Nos manuscritos de Mariana materializa-se a dúvida entre a consumação da união com Satanás e o desejo de salvação em Deus, entre os favores recebidos e a vida em pecado, entre as práticas profanas e a prática devocionária, própria do bom cristão. Com respeito a este último dado, de salientar a presença, entre os papéis da ré, de um desenho com a representação de Santo António com o Menino. Jerónima da Graça registou - no mesmo suporte – que aquela figura fora entregue por Satanás e desenhada a sangue, embora Mariana da Coluna tenha, posteriormente, explicado que esse desenho lhe fora dado pela sua irmã, também freira no mesmo convento, que o comprara a um artista local.

Do conjunto analisado, sugere-se a leitura da carta PSCR0417, onde se patenteia um dos discursos mais reveladores. O processo contém ainda algumas missivas respeitantes à ré, da autoria de Jerónima da Graça.

Como se confessou voluntariamente, e deu mostras de arrependimento verdadeiro, Mariana da Coluna foi condenada a penitências espirituais no convento da Ribeira Grande.

Suporte uma folha dobrada escrita no rosto do fólio 4.
Arquivo Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Repository Tribunal do Santo Ofício
Fundo Inquisição de Lisboa
Cota arquivística Processo 827
Fólios 4r
Transcrição Ana Leitão
Modernização Raïssa Gillier
Anotação POS Raïssa Gillier
Data da transcrição2017

Page 4r

Simto n alma o não ter eu desa bamda q de v pe me de novas; e o muito dezejalhas me fas tomar a pena na mão, pa q me fasa m dellas que semdo as q eu lhe dezejo as istimarei muito, vou cõtinuãdõ , o negoçio q v pe me deixou ẽcomẽdado, muito trabalho meu, mas muito mas o tẽ na parte, com base, em muitas couzas das que lhe tenho ouvido, vou descubrimdo muito mais do q sabemos, omtem q foi o quarto dia q comesei de fazer a petição ou denuçiação de sua vida, a tive muda q me foi nesçesario darlhe huãs bofetadas, nẽ com isto queria Respõder a prepozito tãto estive com ella por mal, por bem, q no fim de tres oras pasadas me comfessou, q com mais quatro demonios maritavã, os quas , lusifer, barzabu, marticula porteiro mor do imferno, bugia cadela da caza de lusifer, o q me custou o dezerme estes nomes dẽs noso sro o sabe, em tudo pello q vou alcamsãdo q lhe tem dado estes malinos alguma beberajẽ pa a fazerẽ ser como elles tudo semelhãte, dẽs lhe acuda por q he, v pe llẽbrese della seus sacrificios, q bem neçesidade tem esta criatura de oraçois, ainda q ella esta sega de sua culpa q as não quer, eu fico mũi les molestada de a ver tam preza do pecado, não a de fazer verdadeira cofisão, isto digo pellos efeitos q nella veijo, o seu muito calar me fas q eu não mãdo , a petição em cõpanhia desta, mas em na temdo acabada, logo a imviarei, tendo saude dẽs louvada, minha irmã se ẽcomẽda e a besão de v pe, eu faso o mesmo, não me ofereso pa o servir desta bãda porq sei v pe não quer mais q oraçois, para estas me ofereso ẽquãto tiver, a dẽs que me gde a v pe os annos de meu dezejo, ouje 16 de agosto 1634

Sudita de v pe Hirma da graça frei cosme da annũciacão


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