Sr Dezor Jozé da Cunha Fialho
Sinto na minha alma, que a primeira vez que aparesso
a VSa por algum modo seja em taes circonstancias: Sendo certo, que
há mto tempo, que eu respeito o nome de VSa e tenho inveja as pessoas,
que tem a fortuna de tratalo. Como foi percizo dar parte a minha
Sobrinha do dezacordo do Reytor desta terra, era necessario que ella
me informasse do que passou com o Sr Siabra, e que fora avizo a VSa
para conhecer sobre o cazo acontecido: como não vi a petição, que se
fez em Lisboa, e pello amor, que tenho a verdade queira desculpar que
eu vá fazerlhe huma carta comprida.
O Reytor, que está nesta
terra há hum anno, e em todo este tempo me tem devido toda a casta
de obzequio, e defeza , e devo confeçar que eu ignorava que mtas vezes
se toldava com vinho ; a sangue frio no terceiro Domingo da qua
resma pos na porta da freguezia, o Edital, que julgo seria a VSa reme
tido, e com a circonstancia de vir jantar comigo, e outroz Prez nesse
mesmo dia, chegarão ellez, e o Edital ao mesmo tempo julguei eu
que o nome era suposto, e elle logo portestou que o fizera, e que o puze
ra, eu na maior ademiração lhe respondi, e o dezpedi: Sem em-
bargo de que o ditto Reytor desde que aqui chegou tem recebido de hum
malvado Irmão, que tem, que se chama João Pimentel , este hum
homem atróz, e o outro Leve , todaz az aleivozias, falcidades, e injuriaz
asim mesmo há os mais solidos indicios para se julgar que foi in
duzido pello seu Irmão, e pello seu inimigo a fazer huma tal
dezordem. Queira VSa confinar emquanto ao Edital, ou cartáz es-
teve pregado, o dito João Pimentel, que da porta da sua Taverna o via
Ler aos que entravão na Igreja, dezia para os que estavão na mesma
taverna com a maior satisfação "o Edital pequenino desmente
o Edital grande, eu tenho mto dinhro rezervado para gastar com
o Diabo" e aqui acrecentou outraz coizas de pervercidade da sua
Lingoa sendo ouvintes Manoel Simoens Moleiro: Antonio Nu
nes: Jozé vieyra; Antonio filho do cabeça, e outroz muitoz.
VSa ha de pormeter para melhor eu fazer a inha deducão, que
eu debuche o retrato deste gigante de maldade. Empobreceo seu Pay
furtando-lhe deolhe, e o tratava no maior desprezo, ouve quem dicesse
isto a huma pessoa, de quem o seu interesse dependia, vem buscar o
Pay, e a Madrazta, que a todo o mundo se queichavão destas insolenciaz
permetelhe amor, e dinheiro, pede-lhe huma certidão de filho obedien-
te, passalha o extontiado Pay, falo melhorar pouco de fortuna, percegue a
Madrazta depois de viuva athé a morte; porem com huma certidão fal-
ça foi desmentir hum conto verdadeiro. Este Irmão Reytor foi
dezacomodado pello mesmo em Lisboa para vir ser aqui Parroco, e
para a sua caza, onde não esteve 24 horaz porque trazendo comsi
go, ou por caride ou por tolice hum menino de quatro annos, filho de
Pais mto honrados, a quem o tal João Pimentel conheçia e hera obri
gado, expalhou o tal Pimentel nesta freguezia que o rapaz era
filho do Irmão dezacreditando, e injuriando aleivozamte os seus ver
dadeiros Pais, e correndo por estes contornoz a noticia mandou o Rey
tor a Lisboa buscar a Certidão do Bauptismo, que leo aos seus fre
guezez no Lugar, em q lhe faz az estaçõens. O mesmo João Pimentel
tem Taverna, e tenda onde os pezoz, e medidas todos são falceficados,
manda deitar e deita muita agoa no vinho, e quando se vay algum cria
do, que desconfia contará esta manobra, publica que o despedio porque
furtava ao povo. Hum tal homem aforou a 8 annos ao Hospital das
Caldas hum prazo, daqui vem o motivo originario da questão, e já fiz
conhecer a VSa pello que fica dito a boa fé que se pode esperar delle:
Estava o dito prazo perdido, plantoulhe huma boa vinha, e hum
carreiro de pé posto, que havia sobre a mota do ryo cuidou logo
em embaraçalo, neste cazo o povo costumado aquelle tranzito fez-
lhe atraveçadoiro pella vnha, recorreo aos meios da justissa pozeram
se editaes, veio o Juis de fora fazer a vestoria porparousse o intereça
do com teztemunhas porparadas por elle, que hé iminente em az porso-
adir em jurarem, o que elle quer, não tiverão ocazião de falar; porque
nimguem se opoz; da mesma sorte que tendo huma fazenda chamada
a Gafa, e fazendo nella hum valado imenço ficaramlhe dentro gran
dez pedaços de fazenda de Jozé Cordro da Sa Torrez, de Leandro Lavra
dor, de hum Almeida Empheteuta do Marquez de Angeja, e de Jozé
Ribro das Lamaz, todoz se queichão, maz athé aqui elle oz defructa.
Eu devo explicarme a VSa eu não sei se a ley dos atrevessadoiros
está a favor deste homem, só não tenho duvida que a caridade, e a rezão
está ofendida por este porcedimento, se huma pessoa habil, e intiligen
te falasse pello povo na ocazião da veztoria devia dizer que o carreiro
de pé posto sobre a mota do ryo huma vez que fizesse o mesmo, que
Frco da Fonceca praticou com outra q hé vezinha tapando-sse mto
bem, deichando ao povo aquelle pequeno secorro, secorro que os mais antigos
herdarão por huma posse immemorial, secorro, que todos sabem que a
inda naz grandez inchentes deicha passage Livre para duaz pontes
az gentes que do sanguinhal quizerem vir a ezta terra buzcar não só
comestiveis, maz cirurgião, e Botica, e emfim devia fazerlhe aprezen
tar o Tombo do prazo, que segundo julgão oz antigos não hé demarcado com
o Ryo, maz sim a mota hé que fica Livre a serventia do povo, como
se emudecerão todoz não só tirou o caminho, maz formou huma valla
de 80 palmos de alto, e 10 de largo sobre elas uzurpado a hum menino
filho do capam mor da Lourinhã para o que mudou marcos, e asim forte
ficado disse a João Crespim que agora os passageiros ou passassem pello
Inferno ou morressem afo
gados no ryo; e isto asim feito entrou a espalhar pello povo que as terras des-
ta caza, que ficão do outro lado do Ryo hé q erão obrigadas a serven
tia, contra a verdade, e athé contra a rezão natural: neste cazo foi
percizo que o procurador de minha sobrinha fizesse hum requerimento,
para embaraçar esta novidade, e seguiosse o Edital, e a este o Cartáz
do Pe Reytor.
Devo dizer a VSa hum incidente, que me ma
gou extremamente: na noite do dia, em que se pos o Edital re
lativo a esta caza, entulharão huma pequena porção da dita val
la, e diz o dito João Pimentel, que lhe deicharão ficar huma carta
em que o dezcompunhão mto e ameaçavão: eu que conheço a aleivo-
zia daquelle homem senti logo o meu espirito aflicto, porq sem
embargo, do que aquella acção só era propria de canalha disse a
mim mesmo em segredo, que o meu nome seria talvez ultrajado
dizendo o tal Pimentel que eu lhe mandaria fazer aquella obra pa
mim tão indecoroza, e tão ofenciva a honra, que todos sabem, com
que eu tenho vivido: não me consta comtudo que elle diga cla
ramente o meu nome, o que eu dezejava saber, mas quaze que
o explica. Se tenho pervenido a VSa tambem o tenho emcomodado, torno a
rogar a VSa que desculpe a hum doente, que athé não pode fazer ezta por mão
propria. Eu jámais fui, nem quero ser algóz de pessoa alguma, mas
em taes circonstancias calarmehei? Se VSa quizer emformarse da scena
que passei com o Reytor, de dois Religiozos, que estavão comigo, hum que
se chama Fr Jozé da Soledade asiste nesta terra. Devo adevertir a VSa
que tal e qual hé João Pimentel alguma gente canalha tem devoção
com elle, todoz sabem quanto eu tenho referido a VSa, maz ainda mal
poucoz são capazes de juralo. Se VSa ouvir Franco da Fonceca
esse tem inteligencia, e não depende delle. Como não sei athé onde
se lemita o requerimto de minha sobrinha, pode ser que eu tenha feito aqui
escrever coizas desnecessarias.
Tenha VSa quantas felecidades mere
se, e eu lhe dezejo como quem hé
De VSa
Affectivo Venerador
Martinho Affonso Henriques de Mello
P.S Agora sei que VSa se apozenta no
sanguinhal cuja terra hé a mais porju
dicada se VSa se quizer emformar com
o Pe Franco de Matos unico Clerigo, q
tem o Bombarral com o dito Franco da
Fonceca, com Joaqm Pra desta terra; maz
emfim eu não sei qm lhe nomei, to-
doz sabem a verdade, maz Ds me livre
de negocios, que dependem do povo, e dos ju
ramtos delle ea.