INQ1 Como é que o senhor se chama?
INF1 Geraldo Isaías Isidoro.
INQ1 E tem setenta e cinco?
INF1 A 7 de Julho é mais um. [pausa] Não sei o que hei-de fazer, se fuja daqui para ele não vir ter comigo. Risos
INQ1 Acho que sim.
INF1 Ai minha mãe!
INQ1 Olhe, e os seus pais, portanto, eram daqui também?
INF1 Eram, nascidos no Parral. É aquele monte grande ali.
INQ1 Ah, ali em baixo?
INF1 A minha mãe foi ali nascida. O meu pai era do Barranco – um monte que chamam o Barranco – [pausa] mas é cá na freguesia.
INQ1 E o senhor também nasceu aqui?
INF1 Nasceu. Tenho sete Éramos sete irmãos.
INQ1 E ficou sempre a viver aqui?
INF1 Sempre.
INQ1 Ou já, ou andou por outros sítios?
INF1 Não. Fui à tropa só.
INQ1 Pois.
INF1 A Setúbal.
INQ1 Sim senhor.
INF1 A senhora não é de Setúbal?
INQ1 Não, sou de Lisboa.
INF1 Lisboa? [pausa] Fui lá à tropa, e fui tirar lá a carta e agora vou lá, não não sei onde estou, não conheço nada daquilo. Risos
INQ1 Pois. Andou à escola, o senhor?
INF1 Não. Eu aprendi a ler e a escrever sem ninguém me ensinar.
INQ1 Ah sim?
INF2 Em cima da mula, não foi?
INF1 Ia fazer os mandados em cima da mula, à vila, buscar tabaco ao meu pai, e coisas, e levava o livro e ia estudando. Quando sabia, estava a mula queda lá à porta da cocheira em Santiago, é que sabia… Risos Mas o meu pai ensinava o meu irmão Gerânio. [pausa] E a gente estávamos à roda do lume, lá no campo – aqueles lumes para a noite, no Inverno.
INQ1 Pois.
INF1 E então decorei o livro todo. [pausa] Risos
INQ1 Rhum.
INF1 Por exemplo, [vocalização] ainda me lembra a lição mais velha e a regra do "a, bê, cê".
INQ1 Como é que era?
INF1 Tinha aquilo tudo decorado. [pausa] Pedi ao Gerânio, que é o meu irmão, para ele dizer onde é que era, bom, aprendi a conhecer as letras todas. Mas tinha de começar além no "a".
INQ1 Pois.
INF1 [vocalização] Queria saber uma letra que estava ali primeiro já no fim, tinha que começar no "a": "a, bê, cê, dê, é, fê, guê, agá, i, gê, lê, mê, nê, ó, pê, qê, rê, sê, tê, u, vê, xis, fulano, zê". Era uma coisa assim, não era?
INQ1 E tinha que correr…
INF1 Aprendi a conhecer as letras todas. E depois [vocalização] as lições também as tinha todas decoradas.
INQ1 Pois.
INF1 [vocalização] A maior lição do livro do João de Deus… Isso não fazia falta, não é?
INQ1 Não, mas diga, diga.
INF1 Parece-me que era assim: Hino de Amor. Andava um dia em pequenino, nos arredores de Nazaré, na companhia de São José, o Deus Menino, bom Jesus. Eis senão quando vê no silvado andar piando e esvoaçando o rouxinol, que uma serpente de olhar guloso, resplandecente como [pausa] resplandecente como o sol e penetrante como diamante, tinha atraído, tinha encantado. Jesus diz: "Desgraçado passarinho sai do caminho". Corre a pensar que quebra o encanto, tão soluçado ou entre pranto, tão repassa- tão repassado de gratidão, uma alegria e uma ve- veemência e uma carência que que me comovia o coração. Com melodia, assim foi indo e foi seguindo de tal maneira que, noutro dia, numa palmeira que havia perto onde morava Nosso Senhor em pequenino, era já certo, estava lá. Estava a pobre ave cantando o hino terno e suave do seu amor ao salvador.
Esta era a última lição.
INQ1 Sim senhor.
INQ2 Como ainda sabe, rhã?!
INQ1 Ainda se lembra!
INF1 Tinha aquilo tudo decorado, tudo, o livro todo. Sabia a lição. As letras que diziam o nome eram mais esbranquiçadas, as outras eram mais vermelhas. [pausa] Aprendi aquilo, [pausa] sem ninguém me ensinar nada.
INQ1 É verdade.
INF1 Escrevia. Eu era era mecânico de fazer isqueiros, [pausa]mandava vir coisas do Rocha-Mar Latino, de Lisboa. Nunca me veio nada errado. Agora já não sei nada. Deixei esquecer já.
INQ1 Pois.
INF1 Estou já no ferro velho.
INQ1 Está!!
INF1 É isso tudo.