INF Cavava-se. Antigamente cavava-se muito à mão. Sabe porque é que cavava à mão? Porque os patrões convinha-lhe, porque a pessoa a cavar à mão cavava o dobro.
INQ1 Pois.
INF A [pausa] troco duns copinhos, e o patrão, [pausa] um espelho que a gente tinha adiante dele, que era sempre um espelho à frente, sempre à frente… Estava sempre à frente com um olho naquele que que fazia malandrice ou que não que não, não… Se a pessoa se atrasasse com a enxada dizia logo: "Olha, olha… Olha vê lá, olha que tu não estás a ser camarada de-, do do… Estás a castigar o teu camarada, hem"! A gente, oh pá! [vocalização] A gente éramos guiados como se fosse um animal.
INQ1 Pois.
INF Um animal! Era uma escr- Era uma escravidão, ai Jesus!
INQ2 Rhum-rhum!
INF Se esta gente agora… Já tenho dito às minhas filhas. As minhas filhas não acreditam. Não acreditam.
INQ1 Não sabem, não sabem o que eram essas coisas…
INF Já não acreditam! Já andaram sempre calçadinhas, que eu era sapa- eu fui sapateiro; andaram sempre vestidinhas; já beberam sempre leite; já comeram sempre um bocadinho de pão com manteiga. [vocalização] Eu?! [pausa] Eu?! Eu comia pão de milho e era a minha mãe ir buscá-lo à arca, não era… "Ó mãe, dê-me um bocadinho de pão"! "Espera, porque depois, quando for para a hora, não tenho pão para todos. Espera para"… Agora?! Elas as minhas filhas alguma vez souberam o que é que foi a vida!
INQ1 Quando se tem fome, pronto!
INF E trabalhar ali por diante. A trabalhar ali doze, treze horas e… E escravidão! Eu fui Eu fui servir a primeira vez, ganhar dez tostões por dia. Já com onze anos ou doze, não havia sola, [pausa] e fui servir, pasta- pastar cinco ou seis vacas para dentro duns matos e apanhar erva para lhe dar. Eu é que tratava delas. E ia dar vinho a um cordão de homens; ia buscar vinho com uns barris às costas – que eu não podia nem com a metade, mas tinha que levar. E todos os dias levava uma tareia de porrada do patrão ainda.
INQ1 Ai meu Deus! Que horror!
INF Uma vez caí dentro do poço, fui uma vez ao fundo… Como não tinha força para tirar água ao cambão, que era aq- à picota, a picota atira comigo ao ar, tumba, eu de cabeça abaixo pelo poço abaixo. Se não está lá o abegão dos bois, se não fosse ele me tirar… Eu fugi para a casa do meu pai… [pausa] Tiveram que me tirar a água – que eu estava quase morto quando me tiraram –, e [vocalização] quando eu recuperei, fui fugi para a casa do meu pai, levei uma tareia dele, tive que ir para lá outra vez!
INQ1 Que horror! Meu Deus!
INF Levei uma tareia mas uma senhora tareia! E descalço em cima de mato. [pausa] Os jacões nos pés! Se [vocalização] Se fosse a explicar… O que é um jacão?
INQ1 Não sei o que é. O que é?
INF Os pés, de andar descalço, [pausa] chega a pontos que tri- apanha um vidro e aquilo faz um corte e trilha, faz aquele trilhão, não é? Começa a criar, eh pá, faz ali um buraco, a gente anda ali de bico de pé, ali mais de um mês para curar! Nem vai a médico nem vai a nada. Ali a purgar aquilo. Ele chama-se aquilo um bojacão.
INQ1 Ai meu Deus!
INF Anda- Andava naquelas misérias.
INQ2 Um bojacão?
INF Eu cheguei a andar de bico de pé meses inteiros!