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O Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (DRA) de José Leite de Vasconcelos
3. Características dos materiais
Esta é a primeira edição integral do Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (DRA), de José Leite de Vasconcelos. É uma edição exclusivamente digital, acessível no sítio do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Oferece uma transcrição conservadora de um vasto conjunto de materiais manuscritos, quase sempre autográficos, que fazem parte do espólio de Leite de Vasconcelos depositado na Biblioteca da Faculdade de Letras da mesma universidade, e que tradicionalmente são conhecidos pelo título Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos. A edição é conservadora por manter as grafias, a sintaxe e a estrutura interna dos pequenos textos de Leite, mas não é diplomática, na medida em que regulariza vários aspectos da apresentação, desenvolve abreviaturas, não assinala auto-correcções e, sobretudo, porque organiza os materiais em entradas lexicográficas tão sistematizadas quanto a variabilidade das fontes o permite. Alguns pontos da edição contêm links para imagens reproduzindo verbetes com desenhos de interesse sobretudo etnográfico, da autoria do próprio Leite ou de desenhadores ao seu serviço; ou verbetes notáveis pelos materiais usados ou sua disposição. De modo semelhante, este texto de apresentação permite o enlace com diversos tipos de documentação anexa, que pode ser acedida directamente ou como complemento desta leitura. É o caso, por exemplo, da lista da bibliografia de referência mais citada por Leite, com indicação das siglas que ele atribuía a certas obras, nem sempre de modo uniforme; da descrição das características técnicas da plataforma em que o dicionário é acessível e indicações úteis para a navegação; ou das normas de transcrição da edição. Embora o núcleo desta edição seja ocupado por um dos últimos grandes inéditos de Leite de Vasconcelos, ela não segue o modelo estabelecido para as edições póstumas do mestre que um grupo de discípulos, que o conheceram e assistiram na fase final da vida, foram publicando nas décadas seguintes à sua morte, sob a direcção de Orlando Ribeiro e de Manuel Viegas Guerreiro (ver lista de edições póstumas). A razão é simples: enquanto eles tinham conhecimento directo do pensamento e da casa de Leite, que lhes permitia completar textos inacabados, interpretar projectos esquemáticos, dar corpo a esboços sumaríssimos e substituir a sua voz à do mestre, que ainda ecoava, na presente edição publica-se apenas o que Leite deixou escrito, porque o conhecimento íntimo das suas intenções, que então talvez vibrasse ainda, não mais existe. A história que podemos reconstituir – mais a partir da observação de materiais e processos, e de testemunhos indirectos, que de declaradas intenções do autor – ajuda a compreender melhor as características do dicionário, dos materiais que o suportam e da edição que a partir deles foi possível construir.
Trata-se de um dicionário que foi crescendo ao longo da vida de Leite, mais empenhadamente talvez para o fim. Mas não dispomos de marcos cronológicos precisos. Verbetes, preenchidos e coligidos de várias maneiras, arrumados em gavetas metálicas de ficheiro, constituem o tipo de suporte quase exclusivo: a) muitos verbetes, e dos mais interessantes, são apontamentos tomados espontaneamente ao acaso de uma leitura ou de um encontro de rua (os seus célebres “em flagrante”), em que ao facto captado Leite logo acrescentava uma interpretação e referências para desenvolvimento futuro; são pequenos verbetes que para o efeito levava na algibeira, quando saía, ou são recortes de folhas maiores ou de caderno de notas, que rasgava em pedaços para melhor distribuição, ao regressar a casa; b) outros verbetes, mais homogéneos, parecem resultar de levantamentos de obras percorridas com critério selectivo (p. ex., artigos da Revista Lusitana, secções dos Portugaliae Monumenta Historica, a sua própria edição do Livro de Esopo); c) outros ainda contêm meras remissões bibliográficas, muitas vezes para livros e revistas da sua biblioteca; d) outros, finalmente, apresentam-se como remodelações ou simples cópias limpas de apontamentos apressados e mal escritos. Nem todos são autógrafos, como se explicará abaixo. Em suma, o original do dicionário não se apresenta como um texto seguido e coeso, preservado em suporte físico com aquelas características de artefacto unitário quanto ao corpo e quanto à confecção, que usualmente associamos ao conceito de “original de imprensa”, mas como uma pluralidade de suportes díspares, que só retira algum sentido de unidade do facto de se acharem recolhidos no mesmo local e pela mesma diligência, mas poucas indicações oferece quanto ao resto, para além de algumas evidentes negativas: o conjunto dos papéis não é completo nem fechado, o projecto não foi concluído, a intenção não foi explicitada, o que permitiu desencontros de opinião, o período de execução não é balizável, é imprecisa a transição de competências entre o autor e os seus colaboradores. Até o título se presta a incerteza. Examinemos as menções mais antigas que do dicionário são feitas, para tentarmos perceber como ele parece ter sido concebido pelo seu autor. O escopo deste dicionário parece ter sido muito vasto, e vago, a julgar pela designação que Leite lhe dava – Folhas para um dicionário da língua portuguesa –, assim assumindo como definitivo o carácter fragmentário e aberto de uma obra que tinha por objecto uma “língua portuguesa” não qualificada temporal, nem social, nem geograficamente. Na opinião de Paulo Caratão Soromenho (cf. adiante), Leite usou essa designação uma única vez por escrito, in extremis, no testamento de 1935, quando dá indicações sobre a publicação futura das suas obras literárias: “As obras que tenho em mente ainda a publicar são as seguintes; entendendo-se que das que eu não chegar a publicar fica a publicação a cargo dos meus testamenteiros: [...] – Fôlhas para um dicionário da língua portuguêsa. Está em verbetes.”
Desse mesmo documento é possível retirar alguma informação mais. Leite descreve a massa de manuscritos que serviriam à edição futura das suas obras, e hoje constituem o seu espólio da Faculdade de Letras, nos seguintes termos: “Na minha livraria existe enorme quantidade de apontamentos, sobretudo de Etnografia e Filologia Portuguesas, uns em caixas de cartão, outros em maços, outros de várias maneiras, em estantes, em gavetas, e ás vezes sob a forma de verbetes: é d’aí que os meus testamenteiros farão as minhas obras.”
No particular dos verbetes do dicionário, adianta uma instrução prática: “As estantes móveis dos meus livros ficam à Academia das Sciências, pois pelo menos aquela em que estão os verbetes vocabulares, será precisa aos meus testamenteiros para o seu trabalho.” O testamenteiro que recebeu o encargo da publicação das obras de Filologia foi o professor liceal Gaspar Machado, discípulo e colaborador de Leite. Num artigo de 1958 (“Os inéditos do Dr. Leite de Vasconcelos”, Revista de Portugal, série A: Língua portuguesa, vol. XXIII, 1958, p. 335-38), descreve o espólio que lhe estava confiado em termos que ecoam, em parte, as palavras do testamento: “A parte ainda inédita consta de verdadeiras montanhas de material, felizmente já todo discriminado, arrumado e inventariado, mas nem todo aproveitável para publicação. Há muitos maços já utilizados em trabalhos anteriores e outros que deverão ser rejeitados por inúteis, como aliás fazia também o Dr. Leite de Vasconcelos.”
Merece reservas, como veremos adiante, a afirmação de que o espólio se achava organizado, mas menos cuidados inspira a ameaça de rejeição dos materiais “inúteis”, já que a actuação conhecida de Gaspar Machado se pautou pela inoperância. Esses materiais, tanto quanto se pode observar, mantêm-se instactos no espólio da Faculdade de Letras. Mais interessantes são as referências de Machado ao dicionário, que inclui entre os trabalhos a publicar: “Folhas para um Dicionário de Português Arcaico. É trabalho muito difícil de publicar. Mais abaixo voltarei a falar nele”. O que faz, para recordar que lhe pertenceu em finais de 1953 uma tentativa de edição, gorada, do dicionário. Em alguns raros verbetes, figuram anotações do punho de Gaspar Machado, por ele assinadas, que devem provir desse período. Diz Machado: “E já que escrevo na tão conceituada Revista de Portugal, não desperdiçarei o ensejo de referir a tentativa que fiz junto do falecido director, Álvaro Pinto, para nesta revista de cultura se publicarem as Folhas para um Dicionário de Português a que acima me referi.” Pela resposta de Álvaro Pinto, que Gaspar Machado transcreve parcialmente, percebe-se que uma tentativa anterior já havia sido empreendida por outro dos testamenteiros, Cláudio Basto. Perante este novo pedido, Álvaro Pinto consultou, para avaliação do projecto, o lexicógrafo José Pedro Machado, que teria assistido Leite em sua casa e era colaborador permanente da Revista de Portugal. Mas as dificuldades de execução levaram ao adiamento do projecto, por verificarem que o material não podia servir, no estado em que se encontrava, de original de imprensa: “Álvaro Pinto ainda consultou, como depreendo de carta em meu poder, o nosso comum amigo Dr. José Pedro Machado. Mas não era possível enviar à tipografia os verbetes no estado em que se apresentavam. Além de uma escolha que separasse os termos arcaicos dos modernos e desse a outros artigos a lima de que precisavam, havia a necessidade absoluta de copiar tudo à máquina. Ora o número deles anda por 30 a 35 milheiros! Houve que esperar melhor ensejo, com grande mágoa minha e da direcção da revista.” Estas informações de Gaspar Machado, embora datadas de 1958, não correspondiam à situação então actual, que nos é conhecida por fonte bastante mais sólida, que ele curiosamente não cita. De facto, nesse mesmo ano de 1958, com o propósito de comemorar o centenário do nascimento de Leite de Vasconcelos, saiu o vol. IV da Etnografia Portuguesa, com prefácio e conclusão de Orlando Ribeiro. Era o primeiro volume inteiramente póstumo, realizado com plano e materiais de Leite, pelos seus antigos colaboradores. Orlando Ribeiro, como testamenteiro suplente, assumira as funções que antes cabiam a Cláudio Basto na edição das obras póstumas, nomeadamente coordenando os volumes da Etnografia Portuguesa. A sua introdução ao vol. IV constitui um texto fundamental para a compreensão do modo como essa edição se fez. Datado de Março de 1956, só foi publicado em 1958 (Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. IV, Lisboa, IN-CM, 1958, p. VI-XXVII; também em Orlando Ribeiro, Mestres, Colegas, Discípulos, Lisboa, Gulbenkian, vol. I, 2016, p. 305-322). Orlando Ribeiro, mantendo intacta a terminologia do testamento de Leite, o que retira qualquer equívoco às suas referências, fala por várias vezes dos “verbetes vocabulares”: [p. XII] “Poupado até ao exagero, todas as aparas de tipografia lhe serviam, consoante as dimensões, de laudas, de cadernos ou de verbetes; estes eram de todos os tamanhos: nem os vocabulares, que enchem doze gavetas, têm papel semelhante e acertam rigorosamente no formato! “Toda esta papelada era sujeita a regras rigorosas de arrumação. Os apontamentos soltos seguiam o destino das matérias a que se reportavam, os canhenhos de bolso eram cortados em tiras e estas eram coladas em verbetes ou arrumadas assim mesmo, na confusão aparente dos seus diversos formatos. Os verbetes vocabulares recolhiam a opulenta messe da linguagem popular e da leitura de livros antigos.”
As doze gavetas dos verbetes vocabulares pouco se diferençam das actuais treze, o que nos dá o conforto de saber que o objecto que Ribeiro descreve era, com pouca ou nenhuma variação, aquele sobre que a presente edição foi feita. Com a afirmação de Gaspar Machado de que o espólio se encontrava bem arrumado é que mais colidem as recordações de Orlando Ribeiro: [p. XVIII] Devido a diligências necessárias para a execução testamentária, diz, “a livraria e os maços de apontamentos foram assim, pela primeira vez, manuseados por gente estranha ao estudo, a quem se não poderiam exigir cuidados de arrumação, pois desconhece o valor dos materiais em que mexe. [...] os maços e caixas de papéis, que o Dr. Leite desejava fossem depositados numa sala especial da Academia das Ciências, onde os testamenteiros se pudessem reunir para o seu trabalho, não puderam levar esse destino, uma vez que a douta corporação não dispunha de casa para tal fim. [p. XIX] Provisoriamente foram arrumados no Museu Etnológico e deslocados quando as obras de remodelação do edifício onde ele está instalado fizeram desaparecer a sala que os continha. Daí foram deslocados para outro lugar do mesmo Museu, onde ainda se guardam.”
É provável que esta última informação se reporte a 1956, quando a introdução de Orlando Ribeiro foi redigida. Mas depressa mudou, como informa Paulo Caratão Soromenho (“O Dicionário Inédito de Leite de Vasconcelos”, Revista de Portugal, série A: Língua portuguesa, vol. XXVII, 1962, p. 214-222). Logo em 1958 uma parte do espólio, incluindo os verbetes do dicionário, estava nas instalações do Centro de Estudos Geográficos, ou seja, inteiramente à guarda do próprio Orlando Ribeiro, e assim se manteve durante as décadas seguintes. O Centro estava então em Jesus, perto da antiga Faculdade de Letras e da Academia das Ciências, que repartiam o mesmo edifício. Pouco tempo depois, quando em 1959 foi inaugurado o actual edifício da Faculdade de Letras, ao Campo Grande, para lá se mudou o Centro, e com ele os verbetes e a centena de pacotes que formavam o espólio em uso pelos editores das obras póstumas. Nos dois anos que medeiam entre a arrumação dos verbetes no Museu Etnológico, cujo director, Manuel Heleno, era um dos testamenteiros, e o seu aparecimento no Centro de Estudos Geográficos, deve ter ocorrido uma partilha de responsabilidades e de bens que, a nosso conhecimento, não está descrita nem se acha documentada, mas que pode ser inferida a partir das suas consequências. A massa de documentos que se encontrava na casa de Leite de Vasconcelos foi retirada e levada, certamente na totalidade, para o Museu Etnológico, dado que a Academia das Ciências não se dispôs a acolhê-la nos termos do testamento. Em algum momento entre 1956 (testemunho de Ribeiro) e 1958 (testemunho de Soromenho), essa massa foi dividida em dois espólios separados: um deles permanecendo à guarda de Heleno no Museu de Belém, onde se encontra (Lívia C. Coito e Jane T. P. Coelho, “Nota acerca do Legado do Doutor Leite de Vasconcelos no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia”, Arqueólogo Português, s. IV, 6/7, 1988-89, 333-365) e o outro, constituído pelos materiais considerados necessários às edições póstumas, sendo levado por Orlando Ribeiro para o Centro de Estudos Geográficos. Caratão Soromenho conta, com abundância de pormenores, o que se passou a seguir: [p. 216] “Em Março de 1958 fui nomeado bolseiro da Testamentaria do Doutor Leite de Vasconcelos, para a coordenação dos inéditos de etnografia. O verbeteiro do dicionário, de que o Doutor Orlando Ribeiro nos dá notícia exactamente dois anos antes, encontrava-se agora no Centro de Estudos Geográficos, da Travessa do Arco, a Jesus, nº 13, numa trapeira onde trabalhavam os bolseiros para as coisas leitianas. Pelos começos do Verão o Doutor Serafim da Silva Neto, o notabilíssimo filólogo, aí apareceu para conhecer e cumprimentar o Dr. Viegas Guerreiro. O etnógrafo aproveitou lindamente a ocasião para despertar no linguista o interesse pelo dicionário do Doutor Leite. Silva Neto leu alguns verbetes, e ofereceu-se para a grande tarefa: a sua ordenação e publicação. Algum tempo depois, com autorização dos Testamenteiros, os verbetes respeitantes às letras A e B (se bem me recordo) foram enviados para o ilustre brasileiro. “Em Fevereiro de 1959 o Centro de Estudos Geográficos instalou-se no novo edifício da Faculdade de Letras, na Cidade Universitária. Os verbetes vocabulares fizeram outro passeio até à secretaria do Centro, onde meses mais tarde se desviaram umas dezenas de metros e pararam no Gabinete de Etnologia. Lá estão. [...] “No Verão de 1960 a Filologia enlutava-se com o desaparecimento, tão doloroso quanto inesperado, do Doutor Silva Neto. E já quase terminava o Inverno, quando do Instituto de Estudos Brasileiros, na Faculdade de Letras, eram restituídos os verbetes, que finalmente se reuniam aos outros. O Doutor Silva Neto tinha-os manuseado e fizera uma distribuição conforme a análise deles o aconselhava: mas essa arrumação, tão brutalmente interrompida, era, relativamente à anterior, uma desarrumação. “Creio que os leitores, neste momento, devem estar assombrados: que história tão comprida, que pormenores tão inúteis! A história será comprida, mas é a história duma grande obra; os pormenores não são inúteis, pois explicam que a ordenação, mesmo imperfeita, deixada pelo Doutor Leite e pelo Dr. Viegas Guerreiro, já vai muito longe; e essa primeira tarefa, que sempre há-de fazer-se, será agora mais demorada, após tantos desvios no grande mar da existência do malfadado dicionário.” [p. 119] “Como se encontra tal obra, e que dificuldades se podem deparar a quem se lhe dedique?” Disse o Dr. Gaspar Machado que “havia necessidade absoluta de copiar tudo à máquina”. É verdade. E calculou o número de verbetes em 30 a 35 milheiros. É verdade? Creio que não. Dei-me ao cuidado de fazer o cálculo, e contei numa gaveta 2200; pelo conteúdo aparente das outras, suponho que andará à roda de 22 000 – o que é ainda assustador. Por curiosidade recordo-me de ter ouvido o Doutor Leite falar em 15 000; não me lembro, porém, se o número era referido à totalidade dos vocábulos, se dos verbetes. Inclino-me para o primeiro caso, e assim deve ser pois que temos de retirar inúmeros verbetes repetidos (as mesmas informações obtidas em épocas diferentes, ou cópias em letra mais legível) e inutilizáveis (por insuficiência de informações). O cálculo do autor devia ter sido, pois, sobre a quantidade de artigos (e ele era um homem exacto). “Anote-se agora que, após as andanças, o dicionário precisa duma reordenação cuidadosa... e demorada”.
Três pontos desta extensa transcrição merecem comentário: a) dimensões do material manuscrito. Os cálculos de Caratão Soromenho são confirmados pelos nossos: a nossa reprodução digital dos verbetes eleva-se a quase 26.000 imagens mas, abatida uma décima dessas imagens por redundância, obtemos aproximadamente um total de 23.000 verbetes, muito próximo do que Soromenho calculava. O tratamento editorial desses verbetes obriga a compactar vários numa única entrada lexical, sendo que o total de entradas está estimado em cerca de 16.000, só ligeiramente superior ao que Leite adivinhava. b) intervenção de Serafim da Silva Neto. Este importante linguista brasileiro foi professor visitante na Faculdade de Letras de Lisboa no fim dos anos 50, até ao seu prematuro falecimento em Setembro de 1960. Somos informados de que, nesse breve período, experimentou editar o dicionário, tendo por algum tempo uma parte dos verbetes no seu gabinete, que pouco distante ficava do espólio depositado no Centro de Estudos Geográficos. Não conseguiu isso, mas deixou publicada, em 1959, a 3.ª edição das Lições de Filologia Portuguesa de Leite, para o que usou um exemplar da 2.ª edição anotado e pontualmente emendado por Leite, que se acha no Museu Nacional de Arqueologia. E deixou quase pronto para publicação um volume de dispersos de Leite (Estudos de Filologia Portuguesa, selecção e organização de Serafim da Silva Neto, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1961), em que incluiu textos de etnografia, dialectologia e gramática histórica. Este intenso esforço de reunião e republicação anotada de dispersos leitianos estava na linha de uma eventual edição do dicionário. c) situação do dicionário em 1961. No fim do inverno de 1961, conta Caratão Soromenho, regressaram ao Centro de Estudos Geográficos as gavetas de verbetes que tinham sido emprestadas a Silva Neto. O dicionário estava, assim, novamente completo, mas sempre por editar. Dois anos mais tarde, 1963-64, Manuel Viegas Guerreiro, que continuava a gerir com Orlando Ribeiro a edição póstuma de Leite, encarregou dois estudantes de Filologia Românica da tarefa de reordenar alfabeticamente os verbetes, que estavam muito desarrumados. Os dois estudantes, Daniel Gouveia e Ivo Castro, executaram essa tarefa entre 1964 e 1965, ajudados por António Machado Guerreiro, que era colega de curso deles ao mesmo tempo que assegurava o secretariado do Centro de Estudos Geográficas, onde era o factotum de Orlando Ribeiro e Viegas Guerreiro. As gavetas de verbetes ainda exibem, em algumas transições de letras, fichas manuscritas por Daniel Gouveia, registando a data em que vencera mais uma etapa da tarefa. A alfabetação dos verbetes foi realizada na sala do fundo do Centro de Estudos Geográficos, onde se encontravam igualmente, em estantes metálicas, os pacotes do espólio que serviam para a edição dos volumes póstumos. Por lá passavam, ocasionalmente, os editores desses volumes: o casal Soromenho, Maria Arminda Zaluar Nunes, Maria Aliete Galhoz, o próprio Machado Guerreiro, além de Viegas Guerreiro, que era presença constante, e de Orlando Ribeiro, assíduo, geralmente para consultar verbetes do dicionário para os seus trabalhos. Os verbetes estavam arrumados em treze gavetas de ficheiro dispostas sobre uma banca de desenhador, ao lado de vários maços de papel deixados por Leite para aqueles trabalhos de edição. Em altura posterior, que não sabemos precisar, foi criado por Viegas Guerreiro o Centro de Tradições Populares Portuguesas, com instalações próprias na Faculdade de Letras, para as quais foram transferidos os pacotes do espólio, as gavetas de verbetes, mais algumas gavetas com verbetes temáticos e outros materiais de Leite de Vasconcelos, não inventariados nem descritos. Apesar desta transferência de local, a responsabilidade pelo espólio de Leite de Vasconcelos continuava a repousar na pessoa de Orlando Ribeiro, como último testamenteiro, sendo depois assumida pelos sucessivos dirigentes do Centro de Estudos Geográficos, com destaque para Lucinda Fonseca. O Centro de Tradições Populares funcionava como extensão do de Estudos Geográficos e só adquiriu alguma autonomia após o desaparecimento de Viegas Guerreiro. Ainda em vida de Orlando Ribeiro, e com seu conhecimento, Manuel Viegas Guerreiro convidou Ivo Castro, assistente de Linguística, para juntos retomarem o projecto de edição dos verbetes do dicionário, projecto que estava bastante atrasado em relação às restantes edições póstumas. Essa tentativa não teve consequências imediatas no plano prático (nem foi obtido financiamento, nem houve consenso quanto ao método de editar), mas contribuiu para se fixar um aspecto importante: o título da obra. Percebe-se, comparando o título referido no testamento – Folhas para um dicionário da língua portuguesa – com o título indicado por Gaspar Machado – Folhas para um Dicionário de Português Arcaico –, que havia entre ambos um ponto central de concordância e um sério desentendimento. Os títulos apontavam para uma obra que não era um dicionário pleno, mas um conjunto de subsídios obtidos através de um mínimo de organização, superior à então vigente: o esforço mínimo de converter verbetes em folhas, sem perda do carácter fragmentário. Mas o título de Gaspar Machado, que nenhuma indicação leitiana autorizava, supunha uma intervenção editorial muito aprofundada, que consistiria em retirar, não se sabe com que destino, todo o material de natureza dialectal que constitui uma das riquezas absolutas deste dicionário, reduzindo-o a mero dicionário de arcaísmos. O título que adoptamos – Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos – emana da tradição oral: era assim que Orlando Ribeiro e Viegas Guerreiro sempre diziam, apoiando-se na intenção de Leite, que era a de manter juntos dois mananciais do léxico tradicional português, que mais depressa se entrelaçam e fundem do que destrinçam. Ao adoptarmos este título (que nos era oferecido com os materiais), aceitámos igualmente a contradição que com ele estabelece certa dose de vocábulos modernos, urbanos ou estrangeiros, como lock-out, bolchevique, thalweg ou telefone, cuja presença é mais um traço revelador de que o conteúdo do dicionário não decorria de um processo amadurecido até ao fim. O mesmo, aliás, poderia ser observado a partir da abundância de entradas latinas, como mancipium, abanuens, aedeolum, a menos que se dilatasse irrazoavelmente até à língua etimológica o conceito de arcaísmo. Mas é de ter em conta que, ocasionalmente, o próprio Leite usava o termo dicionário para se referir a este seu conjunto. Por ex., no verbete dedicado a render, pode ler-se: “De reddere, sob a infl. de prendere (prehendere): Suchier, Fr. et prov., § 69, mas cf. § 57 – Já Meyer-Lübke e vid. o meu Dicc. ms.”
Os trabalhos de transcrição de verbetes, sua redução a entradas lexicais e introdução de certas convenções de formato, tiveram início no ano lectivo de 1996-97 e decorreram no âmbito do mestrado em Linguística Portuguesa Histórica, dirigido na Faculdade de Letras por Ivo Castro, que desde então assegurou a orientação da edição, com a ajuda de sucessivas levas de alunos. Manuel Viegas Guerreiro, que viria a falecer pouco depois, patrocinou a estreia e publicou na nova série da Revista Lusitana, que dirigia, um primeiro artigo em que se dava conta da existência e características do dicionário e do arranque da sua edição (Ivo Castro e Paula Estrêla Lopes Mendes, “O Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos (DRA) de Leite de Vasconcellos”, Revista Lusitana, nova série, 16, 1997, p. 91-117). Foi também nessa altura que, graças a Lucinda Fonseca, as treze gavetas foram transferidas para o gabinete de Ivo Castro no Departamento de Linguística, onde os verbetes foram reproduzidos em fotografia digital por Mário Costa. As actividades de edição foram realizadas através dessas fotografias, sendo os verbetes apenas consultados em casos de ilegibilidade ou para descrição material de suportes. Em 2016, terminados os trabalhos de transcrição, as gavetas foram reunidas novamente ao restante espólio, então já depositado na biblioteca da Faculdade de Letras. Na primeira fase de transcrição de verbetes, os trabalhos incidiram sobre a letra A (A – Azurareira) e foram realizados pelos alunos do seminário: Anabela Leal de Barros, Ana Isabel Marcos, Carla Sacadura Cabral, Manuela Florêncio, Maria Manuela Matos, Maria Sidónio Pais, Paula Estrêla Lopes Mendes, Sóstenes Rego, Soraia Aboo Muidine e Thierry Proença Santos. Foi publicado um caderno de 143 págs. com esta letra pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, em 1999. Os mesmos estudantes transcreveram ainda a letra B (Baba – Buzio), que saíu em volume de 78 págs. editado pelo mesmo centro em 2002. A letra C (Ca – Cuzudo) foi publicada no mesmo ano de 2002, em caderno de 165 págs., tendo a sua transcrição estado a cargo de quatro estudantes: Ana Rita Custódio, Andreia Muchacho, Cláudia Piçarra, Inês Batista. A esta leva inicial de publicação, ainda bastante provisória, dos resultados da edição dos verbetes, há que acrescentar a preparação da dissertação de mestrado de Paula Estrêla Lopes Mendes (DRA – O Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos do Doutor Leite de Vasconcellos, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2000, 298 págs.), que foi inteiramente dedicada à letra P. Assim, em 2002, estavam transcritas e publicadas quatro letras do dicionário – A a C, mais P. Todas as transcrições tinham sido realizadas pelos estudantes nomeados, com revisão de leituras e redacção inicial das entradas lexicais por Ivo Castro. A letra P, naturalmente, decorria do esforço pessoal de Paula Mendes, mas seguia as mesmas linhas. Nos anos seguintes, com intervalos, grupos de alunos da FLUL foram participando na transcrição de verbetes, de modo que em finais de 2010 foi publicada uma substancial primeira parte do dicionário, compreendendo as letras de A a L, e ainda a letra P. Os alunos intervenientes, em variável grau de extensão, foram estes: Ana Beatriz Carvalho, Ana Luís Inácio, Emanuel Custódio, Manuela Florêncio, Maria Eduarda Baptista, Maria Manuela Matos, Maria Sidónio Pais, Neuza Campaniço, Petra Teixeira, Sara Daniela Silva, Sóstenes Rego, Soraia Aboo Muidine, Thierry Proença Santos. É possível que haja nesta lista omissão de algum nome, dado o tempo que passou e, porventura, a dimensão da prestação. A publicação fez-se em formato electrónico, no site do CLUL, sob a responsabilidade de João Paulo Silvestre, que realizou também a presente versão. Todo o trabalho, sendo realizado como prática curricular, não fora remunerado. Aliás, como não o tinha sido a alfabetação inicial e como não alcançara financiamento o projecto submetido por Viegas Guerreiro à agência que então tutelava a investigação. Como, depois desses inícios, foi decidido não solicitar mais qualquer subsídio a patrocinadores, e como todos os colaboradores futuros foram, ou investigadores ou estudantes de post-graduação, ou assistentes de cursos livres, resulta que a presente edição do dicionário foi realizada de modo gratuito. Em 1999, na apresentação do caderno A, a forma final do dicionário era ainda idealizada de modo bastante ambicioso, na linha do que Viegas Guerreiro tinha pretendido: “[...] é possível antever que a obra, na sua versão definitiva, alcançará dimensões bem mais importantes, quando lhe forem adicionados os resultados das pesquisas bibliográficas que os verbetes sugerem. “[...] Esta é uma edição provisória por esse motivo, e ainda porque terá de receber pelo menos duas novas revisões: uma última colação com os manuscritos e uma uniformização gráfica mais aprofundada. No presente volume encontra-se apenas o texto escrito pelo Doutor Leite, com algumas regularizações editoriais: desdobramento de algumas abreviaturas (mas conservação das siglas mais conhecidas), redistribuição dos materiais segundo uma sequência de campos que emana dos próprios verbetes como a mais frequentemente usada pelo autor (significado / atestações / discussão / fontes regionais ou bibliográficas), reunião no mesmo artigo dos verbetes subordinados ao mesmo lema (mas manutenção das entradas autónomas que o autor deu às variantes de um mesmo vocábulo), eliminação de duplicações (correntes nos verbetes múltiplos) e outras pequenas modificações gráficas necessitadas pelo carácter ‘impromptu’ de muitos dos manuscritos. “[...] O que não é susceptível de transformação editorial é o carácter espontâneo, ocasional e inacabado destes materiais (inacabada a redacção de muitos verbetes, como inacabada ficou a concepção estrutural do dicionário). Mas esse é o carácter próprio de muitas secções da obra imensa de Leite de Vasconcellos. A qualidade intrínseca destes materiais e a sua utilidade inquestionável como instrumento para o estudo da língua portuguesa nos eixos da variação diacrónica e diatópica justificam que eles sejam divulgados por esta forma transitória.”
Na verdade, o único destes propósitos que ficou por cumprir foi o enchimento das citações sumariamente referenciadas. É um trabalho que poderá ainda vir a ser feito com alguma facilidade, pois a maior parte das obras que Leite usa são da sua biblioteca e continuam depositadas a poucos metros do espólio (são as obras mais vezes citadas no dicionário as que constam da bibliografia de referência; muitas delas levam também a sua cota da Biblioteca Nacional, onde podiam ter sido usadas por Leite, que foi conservador daquela biblioteca durante a maior parte da sua carreira de funcionário). Mas esse enchimento teria tornado muito mais lento o acabamento do dicionário, se de vez o não comprometesse. Assim, quando entrámos na fase final da edição, de M a Z, em vez de retomar o trabalho feito para completar as citações, tivémos antes a preocupação de concluir a transcrição dos verbetes e a edição das entradas lexicais, pois nos encontrávamos pouco passados do meio dessas tarefas. Esta fase final decorreu a partir do ano 2012-13 e nela tomaram parte membros do curso livre Oficina de Edições, que se encontrava então na sua sexta edição: Mário Costa, Margarida Santos, Carlota Pimenta, Isabel Barros Dias, Filipe Moreira, Ana Filipa Gomes Ferreira, Célia Pinto, Carla Sacadura Cabral (que também estivera na fase anterior), Filomena Melo, Margarida Reffoios, Alexandre Dias Pinto, Margarida Alpalhão, Filipa Roldão, Joana Serafim, Marina Castanho. Nesta fase final, tratou-se de transcrever os verbetes de M a Z, de proceder a sucessivas camadas de revisão da totalidade do dicionário e de colaborar na pesquisa e elaboração da documentação acompanhante da presente edição. Como se vê, esta equipa final teve responsabilidades acrescidas, mas calibradas com as suas competências profissionais e académicas: assim, além da transcrição de verbetes, encarregaram-se da elaboração de entradas lexicais, da pesquisa bibliográfica (pois muitas siglas e abreviaturas de Leite careciam de identificação completa da obra), da revisão e correcção das transcrições das letras iniciais. Além disso, deram início a uma série de pesquisas filológicas finais, procurando, a partir da materialidade dos papéis e dos traços de escrita, saber mais sobre o modo como o dicionário foi construído. 3. Características dos materiais
Verbetes Já se falou dos vários tipos de verbetes do dicionário, do ponto de vista do seu conteúdo. No plano documental, pode dizer-se o seguinte. Os materiais utilizados para esta edição consistem em verbetes de cartolina ou papel, que ocupam treze gavetas de ficheiro metálico, actualmente depositadas na Reserva da Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A presente edição foi realizada não sobre esses verbetes, mas sobre as suas imagens digitalizadas. As imagens são 25.884, sendo o número de verbetes ligeiramente inferior, pois aqueles que são opistógrafos (isto é, escritos em rosto e verso) foram fotografados em ambas as faces, sendo que a entrada lexical ocupa apenas uma delas. Também deve ser abatido àquele total de imagens um pequeno número de verbetes anulados por cancelamento do texto escrito. Em grosso, abatendo uma décima das imagens, teremos um número de verbetes aproximado de 23.000 (Caratão Soromenho calculava-os em 22.000). Muitos dos verbetes são encabeçados pela mesma entrada, por terem sido escritos em épocas e circunstâncias diferenciadas ou, mais raramente, por serem cópias uns de outros. A edição procura concentrar numa única entrada todos esses verbetes, pelo que o número de entradas lexicais do dicionário acabou por ser consideravelmente inferior ao dos verbetes originais. Estimamos que ronde as 16.000 entradas. Tipos de verbetes a) simples: O tipo mais comum de verbete é um rectângulo liso de cartolina ou de papel, feito a partir de sobras guilhotinadas em tipografia. A escrita arruma-se ao alto da página, na previsão de novas informações virem a ser adicionadas, como frequentemente acontece. Nos raros casos em que o texto excede o espaço da página, é aberto segundo verbete; o texto nunca continua no verso do verbete. Verbete obrigarb) reciclados: São frequentes também os verbetes feitos a partir de material reciclado, usando para a escrita o verso branco de cartões de condolências, convites para actos sociais ou exposições, convocatórias para reuniões oficiais, outros papéis resistentes. O exemplo aqui dado, verbete zangar, tem a curiosidade de usar para registo da entrada uma face impressa do cartão, que normalmente ficaria oculta; mas trata-se, neste caso, da menos impressa das duas. Verbete zangarc) recortes colados: São verbetes simples de cartolina, em que Leite colou fragmentos de papel recortados de folhas maiores, soltas, ou de caderno, ou ainda de jornais. Verbete observar-seEmbora muitos verbetes tenham sido produzidos em um só momento, especialmente se fazem parte de séries retiradas de alguma fonte bibliográfica ou de uma recolha local, denunciadas pelas afinidades formais e pela proveniência comum, percebe-se em muitos outros verbetes um projecto de construção desdobrado em vários tempos: 1º ou o verbete apresenta vários tipos de letra autógrafa, significando que teve acrescentos ou emendas; Verbete vaqueiro2º ou foi inicialmente escrito por outra mão, com revisão de Leite. O verbete abarca foi escrito pela mão que atribuimos a Viegas Guerreiro, mas deixando bastantes lacunas, que foram revistas e completadas pela mão de Leite. Este caso é raro, pois ao lado do verbete misto encontram-se os dois originais, que ele procurou copiar. Isto evidencia, nas primeiras centenas de verbetes da letra A, que houve um propósito de passar a limpo e de organizar os verbetes de Leite, com vista a futura publicação. Mas também evidencia, nos fracassos do copista, uma das razões por que o projecto não passou desse estágio inicial. Verbete abarca3º ou é formado por diversos materiais transportados para uma ficha de cartolina e relacionados por marcas de escrita subsequente. Esse projecto de construção – que mais não foi que o início da escrita do dicionário – revela-se não só nos tipos de verbetes não-simples, como também na alternância de mãos que os escreveram. Mãos Quase todos os verbetes são manuscritos, exceptuando-se uma recolha de léxico algarvio feita dactilograficamente a partir do vol. VII da Revista Lusitana, que tem a particularidade de todos os verbetes mencionarem «vol. V», em vez de «vol. VII» e todos terem sido emendados a tinta, pela mão de Leite. Face à sistematicidade do erro, poderia conjecturar-se que a recolha tenha sido feita por um colaborador, «à moderna», a partir de provas que eram inicialmente destinadas ao vol. V, mas acabaram por ser atrasadas para o VII. Se esta conjectura fosse verdadeira, então poderíamos situar este episódio da construção do DRA entre as datas de publicação dos dois tomos da revista ‒ 1899 e 1902. Parecendo isso demasiado cedo, outra explicação terá de ser encontrada. a) autógrafos: Muitos verbetes, a sua maior parte, são da mão de Leite. Melhor seria dito «das suas mãos», pois as diferenças de desenho e de firmeza da escrita são acentuadas e permitem, muitas vezes, adivinhar se foram escritos em pé, no meio da rua, enquanto o informante não parte, ou se foram copiados de livro assente em banca de estudo. Comum a todos esses é uma letra miúda, corrente e veloz, quer vertical, quer inclinada para a direita. Nos fragmentos de papel que estão colados em verbetes (já falámos deles), Leite utilizava bastante uma letra de maior módulo, a lápis, própria dos registos em flagrante. b) apógrafos: Os verbetes apógrafos apresentam sintomas que ajudam, se não a identificar, pelo menos a distinguir e agrupar cada uma das mãos: correlação entre letra e a região de recolha (Melgaço, Chaves, Torre de D. Chama, etc.), correlação entre letra e a fonte bibliográfica da recolha (Livro de Esopo, Revista Lusitana, outros periódicos), por aí se sugerindo que o DRA foi feito em parte através de campanhas intensivamente focadas num ponto geográfico ou numa fonte, muito embora também se encontrem várias letras associadas a alguns topónimos (Óbidos, Açores, etc.) ou bibliografia (Arquivo Histórico Português, Portugaliae Monumenta Historica, etc.), o que sugere recolhas recorrentes, de larga duração e envolvendo vários colaboradores. Como seria de esperar, também cada mão está associada a um instrumento de escrita e, por vezes, ao suportes específicos. Na ausência de identificação nominal dos escreventes desses verbetes apógrafos, as mãos mais recorrentes vão etiquetadas toponimicamente, com uma excepção: é muito provável que a primeira série de verbetes da letra A se deva à mão de Manuel Viegas Guerreiro, que tinha sido expressamente convidado por Leite para esse efeito. A série é notável não só por esse vínculo ao idealizador deste projecto, mas também por outras circunstâncias que falam por si: nesses verbetes, foi empreendida uma sistematização e cópia limpa de verbetes originais de Leite (muitos dos quais coexistem a seu lado), com a intenção clara de preparar a edição do dicionário. Os verbetes em causa são relativos a entradas como A artigo definido, A preposição, etc. e, apesar de não excederem duas dúzias (intercalados com parte dos verbetes autógrafos que transcreviam) devem ter sido suficientes para convencer Viegas Guerreiro, se foi ele, de que sem bastante ajuda não levaria a tarefa a cabo. A tentativa de Viegas Guerreiro não foi póstuma: em verbetes como abarca, vê-se que Viegas Guerreiro tinha deixado em branco partes da transcrição, que foi depois revista e completada por Leite. Vê-se também que Leite não foi rigoroso nessa revisão, p. ex. deixando passar erros como Sainéam. c) idiógrafos: Este verbete Abarca, a duas mãos, pertence a um 3º tipo, que se distingue tanto dos verbetes autógrafos, como dos apógrafos. Pode com mais rigor ser classificado como idiógrafo, consistindo geralmente em cópias apógrafas que são revistas, e portanto autorizadas por Leite, que nelas inscreve correcções ou desenvolvimentos. Na edição, estes idiógrafos são tratados como verdadeiros autógrafos. Apenas se destacam os verbetes apógrafos, que são transcritos entre parênteses rectos. a) Critérios de transcrição Foi dito que a edição é conservadora (por manter grafias, sintaxe e a estrutura interna de cada verbete), mas não diplomática, pois regulariza vários aspectos da apresentação, desenvolve abreviaturas, não assinala auto-correcções e, sobretudo, porque organiza os materiais em entradas lexicográficas tão sistematizadas quanto a variabilidade das fontes o permite. Explicando melhor. Quando o material a transcrever e editar é de natureza autográfica, a conservação das características gráficas, sintácticas e discursivas do texto, mesmo quando internamente contraditórias, é a regra. Neste caso, isso significa exactamente que nos esforçámos por preservar a variabilidade das marcas escriptórias de Leite e seus colaboradores. Como, nos verbetes idiógrafos, a revisão de Leite nunca incide sobre esses aspectos, facilmente se conclui que convivia bem com eles. Para mais, sabemos como era céptico em matéria de ortografia. Assim, é de Leite muita da irregularidade aparente nesta edição (ainda que não toda, pois tarefas executadas colectivamente são grandes geradoras de diversidade, por mais repetidas que sejam as passagens da revisão). Mas as inconsistências dos editores serão paulatinamente notadas e apagadas, pois o ambiente digital em que nos encontramos o permite com alguma facilidade, deixando em evidência destacada as do autor. As principais intervenções editoriais foram:
– Os títulos, quer estejam sublinhados ou não, são transcritos em itálico. – As formas linguísticas comentadas, ou dadas como exemplo, são transcritas também em minúscula itálica (ao passo que Leite por vezes representa étimos em maiúscula). – As entradas são representadas em tipo redondo negrito, assim como as formas que remetem, no final dos artigos, para outras entradas do dicionário (uma advertência provisória é aqui devida: não foi possível levar a cabo a verificação de que todas essas remissões são válidas, o que será tratado em revisões futuras). – As significações são marcadas por aspas simples. As citações ou atestações são marcadas por aspas duplas. – Muitas entradas dialectais apresentam variantes fonéticas ou gráficas de formas correntes. Estas são fornecidas e precedidas do sinal de igual ( = ).
a) Edição electrónica O DRA, na sua versão digital, é um corpus textual com estrutura dicionarística, armazenado e disponibilizado numa base de dados do sistema TEITOK, desenvolvido no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Adoptou-se a estrutura dos dicionários XDXF, que corresponde a um formato XML. Esta codificação foi preferida por ser comummente usada por criadores de dicionários abertos, facilitando assim a disponibilização online e a incorporação do corpus em outras bases de dados lexicográficas . Esta versão distingue-se da que foi disponibilizada em 2010, que consistiu numa recolha organizada e indexada das transcrições efectuadas desde 1996, num formato que pode hoje ser comparado ao de um livro electrónico. Todavia, esse exercício foi proveitoso, pois permitiu compatibilizar os diversos formatos do corpus inicial e definiu o modelo estrutural das novas transcrições, realizadas entre 2012 e 2017. Os critérios de transcrição impuseram uma uniformização de estilos, coordenados com as operações de codificação sistemática do corpus. Os textos, preparados em Microsoft Word, foram convertidos para XML e em seguida foi adicionada a marcação XDXF. Esta marcação inclui a delimitação de entradas, as remissões e as ligações a imagens fac-símile. O sistema TEITOK é uma base de dados com estrutura web, que permite a criação de corpora, a anotação e a distribuição/acesso online. Inclui aplicações de processamento de texto e permite personalização, tanto nas ferramentas de pesquisa lexical, como na exibição dos dados. Prevê a incorporação de múltiplas camadas de variação ortográfica dos textos, e a ligação entre o texto e fac-símiles. Há, por isso, condições para que em futuras revisões do corpus se ampliem as possibilidade de pesquisa e relação entre os diferentes campos dos artigos. Para a pesquisa lexical, o TEITOK interage com uma aplicação local de pesquisa em corpus (CQP). A pesquisa incide sobre todas as formas do DRA, não lematizadas, admitindo pesquisas simples de palavra, ou de sequências de palavras; os utilizadores avançados podem inserir pesquisas com a sintaxe específica CQP. Os resultados podem ser ordenados alfabeticamente, pelo contexto à esquerda / direita, ou pela ordem de ocorrência no corpus. Por definição, a pesquisa é sensível a maiúsculas e a diacríticos. O sistema não sugere palavras semelhantes, caso a forma procurada não conste do corpus. Na presente versão, as formas de entrada não estão completamente lematizadas, pelo que as variações ortográficas devem ser consideradas. Não encontrando uma forma, os utilizadores podem percorrer o dicionário na secção LER, onde encontram as 15732 entradas do dicionário divididas pelas sequências alfabéticas.
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