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Enxara do Bispo, excerto 14

LocalidadeEnxara do Bispo (Mafra, Lisboa)
AssuntoNão aplicável
Informante(s) Borromeu

Text: -


[1]
INF Cavava-se.
[2]
Antigamente cavava-se muito à mão.
[3]
Sabe porque é que cavava à mão?
[4]
Porque os patrões convinha-lhe, porque a pessoa a cavar à mão cavava o dobro.
[5]
INF A [pausa] troco duns copinhos, e o patrão, [pausa] um espelho que a gente tinha adiante dele,
[6]
que era sempre um espelho à frente, sempre à frente
[7]
Estava sempre à frente com um olho naquele que que fazia malandrice ou que não que não, não
[8]
Se a pessoa se atrasasse com a enxada dizia logo: "Olha,
[9]
olha
[10]
Olha
[11]
,
[12]
olha que tu não estás a ser camarada de-, do do
[13]
Estás a castigar o teu camarada, hem"!
[14]
A gente, oh !
[15]
[vocalização] A gente éramos guiados como se fosse um animal.
[16]
INF Um animal!
[17]
Era uma escr- Era uma escravidão, ai Jesus!
[18]
INF Se esta gente agora
[19]
tenho dito às minhas filhas.
[20]
As minhas filhas não acreditam.
[21]
Não acreditam.
[22]
INF não acreditam!
[23]
andaram sempre calçadinhas,
[24]
que eu era sapa- eu fui sapateiro;
[25]
andaram sempre vestidinhas;
[26]
beberam sempre leite;
[27]
comeram sempre um bocadinho de pão com manteiga.
[28]
[vocalização] Eu?!
[29]
[pausa] Eu?!
[30]
Eu comia pão de milho
[31]
e era a minha mãe ir buscá-lo à arca,
[32]
não era
[33]
"Ó mãe, dê-me um bocadinho de pão"!
[34]
"Espera, porque depois, quando for para a hora, não tenho pão para todos.
[35]
Espera para"
[36]
Agora?!
[37]
Elas as minhas filhas alguma vez souberam o que é que foi a vida!
[38]
INF E trabalhar ali por diante.
[39]
A trabalhar ali doze, treze horas e
[40]
E escravidão!
[41]
Eu fui Eu fui servir a primeira vez, ganhar dez tostões por dia.
[42]
com onze anos ou doze, não havia sola,
[43]
[pausa] e fui servir, pasta- pastar cinco ou seis vacas para dentro duns matos e apanhar erva para lhe dar.
[44]
Eu é que tratava delas.
[45]
E ia dar vinho a um cordão de homens;
[46]
ia buscar vinho com uns barris às costas
[47]
que eu não podia nem com a metade, mas tinha que levar.
[48]
E todos os dias levava uma tareia de porrada do patrão ainda.
[49]
INF Uma vez caí dentro do poço,
[50]
fui uma vez ao fundo
[51]
Como não tinha força para tirar água ao cambão, que era aq- à picota, a picota atira comigo ao ar, tumba,
[52]
eu de cabeça abaixo pelo poço abaixo.
[53]
Se não está o abegão dos bois, se não fosse ele me tirar
[54]
Eu fugi para a casa do meu pai
[55]
[pausa] Tiveram que me tirar a água que eu estava quase morto quando me tiraram ,
[56]
e [vocalização] quando eu recuperei, fui fugi para a casa do meu pai,
[57]
levei uma tareia dele,
[58]
tive que ir para outra vez!
[59]
INF Levei uma tareia mas uma senhora tareia!
[60]
E descalço em cima de mato.
[61]
[pausa] Os jacões nos pés!
[62]
Se [vocalização] Se fosse a explicar
[63]
O que é um jacão?
[64]
INF Os pés, de andar descalço, [pausa] chega a pontos que tri- apanha um vidro e aquilo faz um corte e trilha, faz aquele trilhão, não é?
[65]
Começa a criar,
[66]
eh , faz ali um buraco,
[67]
a gente anda ali de bico de , ali mais de um mês para curar!
[68]
Nem vai a médico nem vai a nada.
[69]
Ali a purgar aquilo.
[70]
Ele chama-se aquilo um bojacão.
[71]
INF Anda- Andava naquelas misérias.
[72]
INF Eu cheguei a andar de bico de meses inteiros!

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