INF Olhe que eu Olhe que eu, infelizmente – ou infelizmente ou felizmente –, já o meu patrão tinha uma confiança em mim doida. Eu achava por mim. Eu achava por mim. E isso, portanto, fazia o inquérito todo que eu podia. Tudo. Mandou-me com dezanove seminaristas que foram tirar a alternativa a Fátima. E eu fui com uma carroça, com um animal engatado a uma carroça, para levar as batinas e os farnéis deles. E eles foram daqui de Constância a pé para lá. Tudo. Eram dezanove e o padre. Que Que eles eram do Gavião.
INQ Rhum-rhum.
INF O padre era o padre Augusto que era o… Tudo. E eu fui eu fui com eles. Chegáramos lá, olhe, foi numa segunda-feira de manhã, eram umas seis horas que a gente estava em Constância, cheguei aqui numa quinta-feira à noite. Andei com eles por aquelas terras e fiquei fiquei no Convento em Tomar.
INQ Rhum.
INF Fiquei em várias as bandas assim, nos conventos e tudo. E eu, graças a Deus, tem-me cabido cá tudo na cabeça, na ideia. Que eu também fiz a comunhão, também sei rezar, sei tudo. Mesmo hoje eu vou à missa, também rezo, canto, [pausa] juntamente as ordens da missa, parte de algumas que eu sei, ajudo a cantar, e essas coisas todas. Tudo. Que eu vi: esta menina foi tomar a hóstia lá acima e veio, logo ali quase ao fundo ajoelhou-se a rezar para cima. Que eu vi-a vir por lá pela coisa abaixo. De maneira que fui lá, [pausa] quando foi p- pela Fátima, eu [pausa] fui lá e, e e fui com eles, mandado por por eles. É claro, eles iam a pagar promessa. Iam pagar a promessa, chegou a pontos que, é claro, não estavam habituados, calçados, com o calçado e tudo, empolou-lhe os pés todos. Foram buscar Fui comprar às às farmácias pasta de algodão em rama para eles enfiarem nos pés, e tudo. Bom, mandado por eles, está muito certo. E quando lá cheguei, foi em Maio, numa altura que coroaram a Senhora, que vieram cá os espanhóis coroar a Senhora, com a coroa de ouro. Não sei se se lembram disso? Veio Vieram cá coroar a Senhora. De maneira que a gente não podia ir pelo caminho a direito para fora. Tivéramos que dar uma volta por cima e, quer dizer, entrei por cima. [pausa] É que entrei. E depois cheguei lá não me deixavam, os membros que pertencem à, à lá à direcção da da Fátima, não me deixavam lá estar com a carroça. [pausa] Não estava lá. Só estava aq- os carros finos. E os carros pesados, e tudo, era tudo cá para fora. Tudo, mas muito longe! Mas eu tinha as batinas, [pausa] tinha os farnéis deles. Eles assim que lá chegaram, foram-se logo tudo embora e não havia meio. Fui à procura do, do do professor deles, do padre Heliogábalo, disse para ele: "Ó senhor prior, está-se aqui a cortar um papel grande. Então pois agora fazem-me ir lá para para longe! Então tenho aqui um cartão para me ir embora acolá para longe. Então depois, por causa das batinas e por causa de [vocalização] do farnel, como é que se há-de isso aí ser feito"? "Pois é, senhor Guilherme. Então como é que isso há-de ser arranjado"? Eu enchi-me de coragem e e digo eu assim: "Se o senhor me ensinar como eu me hei-de apresentar, eu vou pedir ao senhor bispo. [pausa] Se me ensinar, eu vou-lhe pedir". "E o senhor é capaz disso"? "Sou, sou. Mas o senhor ensina-me". É claro que eu não me sabia apresentar a um senhor daqueles, não é menina? Não tinha estudos nenhuns, não tinha coisa, [vocalização] eu não sabia. É claro, ele estava dentro da capela, na parte de cima – já lá foram a Fátima?
INQ1 Rhum-rhum.
INQ2 Já.
INQ1 Já.
INF Eu já lá fui algum- algumas catorze ou quinze vezes já, e com gado! O que eu sofri aí por esses caminhos fora para lá! E de noite, e tudo. E a quererem-me roubar a a calda da dos animais – que é o rabo, chamam-lhe a calda –, a quererem-me roubar aquilo que era para os arreios, que é p- para pôr naquelas almofadas do arreio da carroça.
INQ1 Ah!
INF Que é em cima do lombo do animal. Que eles roubam aquelas coisas para depois ir vender aos arreeiros para tudo. Isto [vocalização] há vida para tudo! Vê, aqui se vai buscar já um ponto atrasado que estava…
INQ2 Dos arreios.
INF Dos a [vocalização] Dos arreios. E de maneiras, chego – mas depois ele ensinou-me como é que eu havia de dizer –, e eu cheguei à entrada da capela, o senhor bispo estava assentado no meio, na na tribuna dele, todo ali estendido, por ali afora, [pausa] com o crucificado aqui estendido em cima da barriga, que ele era mais gordo que a mim, e tinha os escriturários de lado, e mais padres. Estavam ali. E eu cheguei lá, e [vocalização] claro, [pausa] persignei-me, benzi-me e depois fiz assim a minha vénia, e ele mandou-me entrar. Depois entrei. Cheguei ao pé dele ajoelhei-me, ele deu-me o anel a beijar, eu beijei-me e eu persignei-me à mesma, e tudo. E ele: "Levante-se. O que é que deseja"? Depois eu disse, eu disse assim: "Saiba a Vossa Vossa Excelência que eu vinha-lhe pedir… Porque eu Que eu vim com uns seminaristas do Gavião e tenho ali as batas e os farnéis e os membros de cá da direcção não me deixam ficar ali com a carroça que eu ali tenho. E vou para muito longe e como é que eles se podem governar? Não se podem governar de forma nenhuma. E pedia uma autorização que o que o senhor me desse para eu pôr-me aqui em qualquer lado". Eu depois É claro, ele depois disse ao fulano que estava ao lado, escreveu, deu-me um cartão para eu trazer, para eu poder estar. E depois amostrava-lhes. Eles iam lá ao pé de mim, eu mostrava, diziam: "Pronto, está bem. Está com ordem do senhor bispo, está bem. Quando foi a sair, é claro, eu persignei-me na frente dele, ele abençoou-me, tudo. Quando cheguei ao pé da porta, fiz voltei para trás, fiz outra vez a mesma coisa, persignei-me, quando cheguei ao pé da porta. Ali andei de recuar até ao meio da, da da capela; e depois voltei-me e depois ao pé da porta fiz a mesma coisa. Mas eu sei que eles que fizeram mangação de mim. Não sabe porquê? Porque quando eu cheguei ao pé da porta que me voltei, que me persignei outra vez, eles estavam-se a rir e a falar uns para os outros. E a rirem-se. [pausa] Com certeza que estiveram a fazer troça do, do do que eu…
INQ2 Se calhar, não se riram assim tanto, sei lá!
INF Pois, não seria com o defeito com enfim, era…
INQ1 Sabe-se lá.
INF Pois, não era. Eu fiz fiz conforme ele me ensinou. Conforme me ensinou a mim. Pronto. E passei isto. Fiquei no convento em Tomar. No convento em Tomar, entrei, eu fui, fui lá foi-me lá um padre ensinar onde é que eu havia de pôr a mula e tratar: dar-lhe água, dar-lhe a ração, dar o comer, e tudo. Quando vim para cá – eram onze horas da noite, quando a gente lá chegou –, quando vim para cá… Conhece Tomar?
INQ2 Sim.
INF É lá em cima no convento.
INQ1 Mas já não me lembro bem.
INF Bom, foi lá em cima no convento. Eu já lá fui até a um casamento, aqui há uns anos duma sobrinha minha que é médica. Está está no no hospital lá de Santa Maria, lá em Lisboa. É médica, uma sobrinha, uma que eu aí tinha. Que aí tenho. Eu estou entre- entregue a [vocalização] a boa gente, mas eu é que sou o mais ruim. Risos De maneira que eu depois… [pausa] Claro fui p-, pus pus lá a mula, quando vim para cá, o [vocalização] padre disse: "O senhor agora sabe o caminho". "Sei. Direito à cozinha". A cozinha era um salão grande dentro do convento, salão grande, fui direito à cozinha. Depois ch- cheguei ao pé dos cozinheiros, era cozinheiros, era em homens e criados de mesa. Era tudo em homens. Digo assim: "Fazia favor ensinava-me aqui onde é que estava uns seminaristas que vieram na mesma companhia". "Olhe, entre aí a essa a esse corredor por ali fora" – que era assim por o meio [vocalização] da sala fora –, "aí ao lado direito há uma sala para baixo, eles estão aí, estão estão a jantar". Eu fui à mesma! Eu tinha fome! E não era pouca! Fui à mesma! Não estive com mais pés de renda. Mas segui por ali fora, e cheguei. Assim que eu entrei à sala para dentro, lá estava uma mesa de cada banda, e estava sentado. O O professor de lá do do convento de Tomar era o senhor padre Helvécio. Era o nome dele era padre Helvécio. Está no cabeçote da da mesa. Tem o altar, feito em pano e em pintura, e essa coisa toda, Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora, e tudo, e os anjinhos. E ele é ali que ele come. E os outros mais inferiores estão de lado. Assim que eu entrei à coisa para fora, o [vocalização] padre Heliogábalo veio logo caminho direito ao pé de mim. Veio logo caminho direito ao pé de mim: "O senhor agora tem que ir acolá ao pé do senhor padre Helvécio". E eu, claro, fui lá abaixo. Ajoelhei-me outra vez à p- à frente dele, beijei-lhe o anel e persignei-me. Benzi-me, persignei-me. Ele depois mandou-me sentar. Vim outra vez à volta e fui-me sentar. Eu estava a comer, veio a sopa – bem tratado! Bem tratado! –, veio a sopa, veio o cozido, veio a fruta, veio uma garrafa com vinho, e eu depois disse para o, para o [pausa] para o criado de mesa: "Olhe, fazia favor levava o vinho, que eu não bebo. Mas trazia-me uma, um um jarro com água". Que eu, quando estou a comer, gosto de estar sempre… Bebo uma pinguinha de água, bebo com água. "Sim senhora". Fez isso tudo. Eu estava a comer… Eu já há bocadito achava eles todos muito parados, tudo parado a olhar, e ninguém ainda eu estava a comer. Quando eu acabei de comer, o padre Helvécio levanta-se e: "Dêmos graças a Deus". Tudo se benzou, tudo tudo se benzeu e tudo rezou, começou a rezar. Eu levantei-me, comecei a rezar também. Também, graças a Deus, sei. Ainda hoje sei. Já me esqueci esqueceu algumas das coisas, mas a maior parte ainda sei. [vocalização] "Agora vamos rezar o terço, direito à capela". Fomos direito à capela e diz o [vocalização] padre Helvé- o [vocalização] padre Heliogábalo para o : "O senhor padre Helvécio faça o favor de ir para o altar". A capela tinha uns bancos, como tem ali a nossa igreja, e tal, tal, assim por aí fora, eu fiquei cá atrás. Mas ele era fino! Ele em vez de se ajoelhar: "Não, não, não, não, não. O senhor padre Heliogábalo faça favor lá. Eu não vou". E o padre Helvécio foi-se ajoelhar ao pé de mim. Para descobrir se eu se eu era católico ou se não era. Mas enganou-se. Eu di- Eu até voltava a boca para o lado dele para ele ouvir melhor, tudo, porque eu sabia. Não tinha Não tinha receios nenhum de fazer. E depois, é claro, lá estivéramos a rezar o terço, benzêramo-nos, e tudo. Levantáramos, fôramos para um corredor fora, por ali fora. Passei numa sala, pá, [pausa] mulheres, mas mulheres, tanta mulher! Naquilo Naqueles conventos, tanta! Tão estimadas, tão caladinhas, tão bonitas, tão tudo! Não desfaço! Risos Cada qual A gente não se pinta! Deus Nosso Senhor é que pintou a gente! Tudo. Aquilo era um assombro! Era um assombro de anjos que estava lá espalhado dentro daquela casa. Bom, aí passei. Ele foi para outra sala mais para dentro, que era para onde eles iam todos. Iam ter congressos, falarem uns com os outros e aí já não me deixaram ir. Veio um ao pé de mim: "O senhor agora não p-". O padre Helvécio vai ao pé dum dum dos outros padres e disse-lhe qualquer coisa, que ele depois veio ao pé de mim: "O senhor agora não pode vir para aí. Tenha paciência"! "Olhe, eu ia-me deitar. Ia-me deitar se o senhor me fosse ensinar onde era a cama". "Está bem. Sim senhor". Bom, volto para trás, subi por uma porta dentro duma parede, por aí acima. Em cima – um corredor –, em cima, havia uma sala muito comprida com quartos dum lado e doutro. Ele levou-me lá quase para a ponta, para aquele lado, para a ponta. Ensinou-me onde era a casa-de-banho, e tudo. Eu deitei-me, é claro, pendurei o casaco, despi-me, pendurei o casaco. Eu até pus um lenço meu na almofada, porque a cama podia-se lamber mel em cima. Podia-se lamber mel. [vocalização] Limpinho, aquilo era tudo clarinho que era uma beleza! E depois é tempo que eu também não enxovalhei. Eu ia faltado de dormir, conforme me deitei em cima da cama, assim acordei. Não enxovalhei. Quando fosse a [nome], já fazia sol estava … Ah, e de noite, eu ouvia uma grande zoada, umas canas que cá estavam em baixo num rumeiro. "Eh pá, deixa-me lá ir ver, ali àquela janela, ver, para senão vem aqui algum diabo de noite ter comigo, para onde é que eu hei-de fugir? Eu não conheço aqui nada. Eu estou aqui fechado dentro! Como é que isto há-de ser arranjado"? Vou deitar a cabeça, ouvi aquela zoada, mas depois via mas era um telhado em baixo, não via mais nada.