INF1 Mas olhe que foi verdade. Isso é o que não foi mentira. Olhe, e depois fomos lá dormir… Assim, já há muito tempo, que eu não me dou nos carros, sabe? Não me dou. [pausa] Cheguei lá d-… Fomos dormir a casa de um irmão que eu lá tinha. [pausa] Ainda pior! Aconteceu-me outra pior! [pausa] As melgas [pausa] morderam-me lá toda. Morderam-me nos olhos, morderam-me na cara, morderam-me na testa. Olhe, não parava! De noite, roubaram-me a medalha do meu cordão.
INQ Ah!
INF1 Oh! Olhe que linda Lisboa eu fui a passeio.
INQ As melgas?
INF1 Fui lá pa-. Não, as as melgas morderam-me. Não. Não é? Mas entrou lá um sujeito qualquer, que ele era meio… Hã?
INQ Sim.
INF1 Eu tinha a minha carteirinha pousada ali, a minha malinha…
INQ Não faz mal.
INF1 A minha malinha estava pendurada [pausa] e eu tinha lá setenta escudos. Foi. Calhou não levar o cordão, que eu deixei-o em casa. Mas levei eu levei – eram cem escudos –, destroquei, fiquei com setenta escudos. E comprei, não sei se foi um tercinho no caminho ou não sei o que foi. E [vocalização] E levava setenta escudos na carteirinha.
INF2 Eu já chorei a rir.
INF1 E levava a medalha… A medalhinha que até era da tia Emília, que Deus lhe perdoe, aquela medalhinha.
INQ É isso é que…
INF1 Mas só tinham não tinha… Dum lado não tinha nada. [pausa] E depois era para a mandar compor. Pôr-lhe lá o meu retrato e o do Eneias. [pausa] Depois olhe, foram lá roubaram-me a me- a medalhinha e o dinheiro. Pronto, fiquei sem nada. Foi uma tristeza que eu sei lá quando eu dei conta daquilo.
INF2 Foi o que tu passaste em Lisboa.
INF1 É verdade. E depois lá fomos dormir, de manhã quando me levantei… Eu não parava de noite. Mordia-me, isto mordia-me a cara, mordia-me… Eu não estava bem nem em casa, nem em nada. "Ó senhor Júpiter, quem me dera daqui para fora de Lisboa. Estou cheia de Lisboa, já estou tonta da cabeça"! [pausa] Olhe, eram só bolhas de água, que tinha na cara, nos olhos. Incharam-me os olhos. Depois meti-me na carreira, não saí mais da carreira, vim-me embora e vinha cheia… Olhe, estive aqui dois, três dias que ainda tive que ir ao médico. Ainda levei injecções. Por causa daqui- daquilo que me lá mordeu na ca- na cara lá na… Eu não via nada lá em Lisboa! E quê? Não chamam melgas àquelas coisas?…
INQ Sim senhora.
INF1 Ai, como eu me lá pus! Foi preciso ir aqui ao médico, ainda levei umas duas ou três injecções. Então a cara, até até saía água a cair em fio! Só bolhas de água. Os olhos! Pois eu não parava de noite! Eu mordia-me, eu coçava-me; eu mordia-me… "Eh, mas que raio de Lisboa, como isto está!… Que é que para aqui há"? Fui lá para umas quintas, lá para trás…
INQ Pois.
INF1 Não sei lá. Foi o que fui a fazer a Lisboa. Foi o que vi em Lisboa. Olhe que eu não vi lá mais nada. Vi lá muita gente, e muitos carros, e pronto. E casas muito altas. [pausa] Mas o que mais gostei foi daquilo. O que mais gostei foi de ver pa- de vir [pausa] o navio, ali ver passar aquelas pessoas, e então aquelas tropas. Isso é que eu gostei muito! Foi a coisa que eu gostei mais. Ele não me ensinaram mais nada! Pois então eu fui doente, eu não me dou nos carros. [pausa] E que via umas tais coisas. Não vi nada, pois. Eu havia de lá andar um dia ou dois a ver tudo. Fomos, chegámos lá tarde; [pausa] depois dormimos lá; depois viemos ao outro dia embora, só vimos uns civis, só. Na hora em que eu estava para vir embora é que vi aquilo, quase ma- quase mal.